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Impressões sobre os factos mais marcantes da Vida e Obra de Marcelino dos Santos

1. Desde muito jovem Marcelino abraça a causa do nacionalismo moçambicano e da Luta contra o colonialismo e o fascismo: dá provas disso ainda em Moçambique e depois na sua passagem por Lisboa (1948 – 1951), onde se destaca na Casa dos Estudantes do Império e no Centro de Estudos Africanos.

2. Perseguido pela PIDE, por causa das suas actividades políticas e para escapar à prisão, acabou por ter de abandonar Portugal, por volta de 1951, partindo para França. Aí aprofundou a sua amizade com Mário Pinto de Andrade e participou com este, em muitas acções contra o colonialismo. 

3. Em França estabeleceu relações de amizade e camaradagem com quase todos os dirigentes dos Partidos das antigas colónias francesas de África que levaram os seus países à Independência. Participou em várias reuniões internacionais da Juventude onde denunciou os crimes do colonialismo português e defendeu a causa da Independência Nacional e da Libertação das colónias. 

4. Teve um papel preponderante na mobilização de muitos intelectuais franceses, que escreveram a Salazar a exigir-lhe a Independência para as colónias e a libertação imediata de Agostinho Neto, que estava preso. Esta carta acabou por ter influência, pois Neto acabou por ser liberto, enquanto os outros coacusados cumpriram longas penas de prisão. 

5. Juntamente com Mário Pinto de Andrade, Amílcar Cabral e Aquino de Bragança, teve um papel muito importante na criação da CONCP (em 20 de Abril de 1961) e em convencer o Rei Hassan II, de Marrocos, a apoiar a Luta de Libertação das Colónias Portuguesas, aceitando o estabelecimento da CONCP em Rabat e apoiando-a política, diplomática, material e financeiramente. Desse modo, foi nomeado Secretário Geral da CONCP. 

6. Nas vésperas da Conferência Constitutiva da CONCP, quando tomou conhecimento da criação da UDENAMO, através duma conferência de imprensa, em Dar-es-Salaam, feita por Adelino Guambe, mandou-lhe imediatamente um convite e este ainda veio a tempo de participar nesta I Conferência da CONCP. 

7. A CONCP teve uma grande importância, porque foi uma maneira de fazer uma frente única dos oprimidos, contra o colonialismo português. Umas das técnicas do salazarismo era tentar dividir para reinar e o estado de desenvolvimento das lutas de libertação nos diversos países era diferente, o que era propício à divisão. Marcelino dos Santos foi a figura de proa desta frente unida dos Movimentos de Libertação e dos povos das colónias portuguesas. Sempre que, na opinião pública internacional, surgiu uma dúvida sobre a unidade dos Movimentos de Libertação Nacional, a CONCP sempre apareceu, no momento oportuno, a mostrar que essa unidade era real e efectiva. 

8. Em Marrocos, Guambe convidou Marcelino para ser o Chefe do Departamento das Relações Exteriores da UDENAMO e também o convidou para ir visitar a sede da UDENAMO, em Dar-es-Salaam. Aí, Marcelino constatou que a UDENAMO não tinha estatutos e escreveu os estatutos da UDENAMO. Em 1962, Marcelino dos Santos voltou a escrever os Estatutos da FRELIMO, que são uma adaptação e um rearranjo dos da UDENAMO. Como Chefe do Departamento das Relações Exteriores da UDENAMO, usando todo o prestígio internacional que já tinha granjeado, colocou a UDENAMO no mapa político mundial. 

9. Juntamente com Aquino de Bragança, Marcelino teve um papel relevante em convencer o Primeiro-Ministro, da União Indiana, Jawaharlal Nehru a fazer a ocupação das Possessões Portuguesas na Índia, pelas Forças Armadas da União Indiana. 

9.1. Salazar apregoava a unicidade, indivisibilidade e inviolabilidade do Império Colonial Português, mais tarde baptizado «Ultramar Português». Os dirigentes da CONCP consideravam necessário que o Império Colonial Português explodisse num sítio qualquer. Consideravam que isso seria uma ajuda para a luta de todos os povos das colónias portuguesas. Uma primeira tentativa tinha sido feita, em 1960, para convencer o governo do Daomé (actual Benim), para expulsarem o administrador português e seu pessoal, da feitoria de São João Baptista de Ajudá e assim, se demonstrar, ao mundo, que o Império Colonial Português se começava a desagregar. Com Mário de Andrade, Marcelino foi o grande protagonista desta iniciativa. 

9.2. As autoridades do Daomé acolheram esta iniciativa e intimaram os ocupantes portugueses do forte, a abandoná-lo, tendo o administrador e seus colaboradores sido expulsos do Daomé. A ideia era de fazer uma campanha mediática a mostrar que o Império Colonial Português, se começava a desagregar, mas isso não foi conseguido, como era desejado. A Feitoria de São João Baptista de Ajudá era muito pequena, não tinha qualquer valor económico ou social; unicamente valor histórico para o povo do Daomé. A ocupação deu-se de forma pacífica. A imprensa internacional não achou a notícia de interesse. 

9.3. Mas os dirigentes da CONCP, não desistiram. 

9.4. Desde a Independência da União Indiana, em 1947, que a União Indiana reivindicava a soberania sobre estes territórios sob administração portuguesa (Goa, Damão e Diu e os enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli) e desde 1954, que o Primeiro-Ministro, da União Indiana, Jawaharlal Nehru, ameaçou de utilizar as forças armadas para recuperar a soberania sobre essas possessões. O Representante da Índia nas Nações Unidas (Krishna Menon) voltou a fazer idênticas ameaças, mas tudo não passava de ameaças. 

9.5. Em 1961, quando foi criada a CONCP, Krishna Menon já era Ministro da Defesa da União Indiana. 
Era considerado o segundo homem mais poderoso da Índia, logo depois do Primeiro-Ministro Nehru. Aquino de Bragança conhecia muito bem Krishna Menon e tinha boas relações com ele. Então Marcelino apoiado por Aquino passaram à acção. Viajaram para a Índia, contactaram Krishna Menon e convenceram-no, que a Índia devia cessar as ameaças de invasão e passar à acção. Krishna Menon levou o Marcelino e o Aquino a falarem com o Primeiro-Ministro Jawaharlal Nehru e conseguiram também convencê-lo.

9.6. Assim, depois de novas ameaças de invasão, no dia 17 de Dezembro de 1961, as Forcas Armadas da União Indiana iniciaram a ocupação de Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar-Aveli por terra, ar e por mar. Desta vez a ocupação de Goa e outros territórios teve um grande impacto mediático em todo o mundo, o que era o objectivo da CONCP. O próprio Governo português contribuiu para isso, pois apresentou queixa nas Nações Unidas. Estava quebrada a unicidade, indivisibilidade e inviolabilidade do Império Colonial Português. 

9.7. A libertação de Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar-Aveli pelas forças armadas indianas teve grande impacto no movimento nacionalista, em Moçambique. 

10. Outro aspecto que nunca podemos esquecer é a colaboração de Marcelino dos Santos, com Mondlane, na construção e manutenção da Unidade Nacional. Quero deixar aqui bem claro que o verdadeiro Arquitecto da Unidade Nacional é, de facto, Eduardo Mondlane, mas, sem dúvida nenhuma, teve em Marcelino dos Santos o mais importante adjunto nessa tarefa hercúlea.

10.1. Para que a unidade acontecesse e, mais importante ainda, para que essa unidade se consolidasse, se mantivesse e não viesse a ser destruída, foi um trabalho muito difícil. Mondlane encontrou sempre em Marcelino dos Santos o colaborador muito dedicado, a esse tão importante objectivo. 

10.2. Muitos não sabem e outros sabem, mas deturpam: a preceder a reunião constitutiva da FRELIMO, em Junho de 1962, em Dar-es-Salaam, houve uma outra reunião, em Acra, que foi realizada à margem da «All Freedom Fighters Conference», que se realizou de 31 de Maio a 02 de Junho de 1962. Marcelino dos Santos participou, nessa Conferência, em tanto que Secretário-Geral da CONCP, mas levava a incumbência de Mondlane, que não pôde participar nesta reunião, de tudo fazer, para que os dirigentes da UDENAMO e da MANU cumprissem, o que tinha sido previamente acordado, isto é, que assinassem um memorando de entendimento de que, aceitavam o princípio da UNIDADE e que iriam trabalhar para a unidade. 

10.3. Krumah e Nyerere tinham muitas divergências, mas é muito menos conhecido que eles tinham alguns pontos de acordo. 

10.3.1. Era absolutamente necessário que se lutasse, usando a via armada, já que Portugal já tinha dado provas cabais de que não queria negociações, nem queria conceder a Independência. 

10.3.2. Os dois percebiam que aqueles Movimentos de Libertação de Moçambique eram fracos, não tinham uma rede de militantes no interior do país e as suas lideranças, não tinham a capacidade política, nem académica, para conduzir a luta. Era preciso uma reformulação profunda da Luta de Libertação em Moçambique, com a fusão dos partidos existentes e era preciso fazer surgir uma nova liderança, mais instruída e com capacidade e visão políticas. Aos olhos de ambos (Krumah e Nyerere), Eduardo Mondlane e Marcelino dos Santos eram a solução para uma nova liderança dum partido unificado. 

10.3.3. Mas, cada um daqueles pequenos líderes viu a sua liderança ameaçada com a união. Portanto, a UNIDADE tinha de ser praticamente «imposta pelos padrinhos», isto é, Nyerere e Nkrumah, que tinham meios poderosos de pressão, respectivamente, sobre a MANU e a UDENAMO, pois eram o Governo de Tanganica e o Governo de Gana, que financiavam, respectivamente, a MANU e a UDENAMO. Por isso, os dirigentes da UDENAMO e MANU foram a Acra com a imposição de, terem que chegar a um acordo para a unidade, senão, não haveria mais dinheiro, nem do lado de Gana, para a UDENAMO, nem do lado de Tanganica, para a MANU. As lideranças daqueles partidos viviam à custa da política, quer dizer, a política era um pretexto para a sobrevivência, para receber dinheiro. A ameaça mais eficaz era a de lhes cortarem o financiamento. 

10.3.4. Portanto pretendia-se que as lideranças dos 2 maiores partidos (a UNAMI não participou) assinassem um memorando de entendimento de que, aceitavam o princípio da UNIDADE e que iriam trabalhar para a unidade. E nada mais! Desde o início estava estabelecido que se voltariam a reunir, em Dar-es-Salaam, a 22 de Junho, para formalizarem e darem contornos concretos a essa UNIDADE. 

10.3.5. Como Mondlane não podia ir a Acra, encarregou Marcelino de actuar em sua substituição. Marcelino saiu-se bem pois participou nesta reunião, teve um importante papel em facilitar a aceitação, por todos, do princípio da UNIDADE e o memorando de entendimento foi assinado. 

11. Marcelino teve um importante papel na criação do Departamento de Organização Política e Ideológica da FRELIMO, na sequência das decisões do Comité Central da FRELIMO de Outubro de 1966, no sentido de que era «necessário intensificar a formação de quadros para as tarefas de acção política armada, assim como a formação de quadros necessários para as tarefas de construção nacional, em particular, as da produção». Marcelino foi designado para chefiar este Departamento. 

12. Se até aí Marcelino tinha sido um elemento chave em todo o processo da Luta de Libertação de Moçambique e tinha tido um papel extraordinariamente marcante, em elevar o prestígio exterior da organização e do seu programa de acção para a libertação total do homem moçambicano, dignificando sempre a nossa Pátria em todos os «fora» internacionais, a partir daí Marcelino intensificou esse seu papel de elemento chave e orientador na Direcção da Luta de Libertação Nacional. 

13. A sua transferência da Chefia das Relações Exteriores para a Chefia do novo Departamento de Orientação Política foi, de facto, a consagração do reconhecimento da necessidade que a FRELIMO tinha da sua experiência, no plano interno. Com efeito, nessa altura e, em grande parte graças a Marcelino, o prestígio externo estava consolidado e era necessário realizar um grande trabalho de orientação política dos militantes e mesmo dos dirigentes. Foi essa pesada tarefa que lhe foi confiada. E ele meteu mãos à obra com sucesso. 

14. A sua posição também se consolidou cada vez mais, pela sua ponderação, pela sua grande experiência política, pela sua constante defesa das posições justas, pela sua extraordinária dedicação e engajamento à causa popular. Ele tornou-se, no plano interno, uma referência, aquele a quem todos nós nos dirigíamos quando precisávamos de um conselho ou uma orientação e donde sempre saímos, não só esclarecidos e mais confiantes em nós próprios, mas também confortados com uma palavra amiga. 

15. Em 1 de Julho de 1970, o Papa Paulo VI recebeu em audiência, Agostinho Neto (MPLA), Amílcar Cabral (PAIGC) e Marcelino dos Santos (FRELIMO), no termo da “Conferência Internacional de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas”, realizada em Roma. Esta audiência foi um dos momentos mais altos do sucesso da CONCP. O gesto do Papa Paulo VI teve um enorme clamor mediático. O Papa quis corrigir a má impressão na opinião pública internacional, incluindo dos católicos de todo o mundo, da tão estreita associação da Igreja Católica portuguesa com o colonialismo português, que, em 1970, já estava sobre grande crítica internacional, nas Nações Unidas. 

16. Não poderia terminar este comentário sobre este grande homem contemporâneo, sem sublinhar a sua modéstia e sua falta de ambição pessoal. Marcelino sempre foi correcto para os líderes com quem conviveu de tão perto, sempre os respeitou e sempre pautou pela honestidade. É de todos os dirigentes políticos que conheci, o que mais respeito sempre teve pelas estruturas em que se integrou e pelas decisões colectivamente tomadas.

17. Marcelino foi sempre um individuo de uma afabilidade extraordinária. Era capaz de se relacionar com toda a gente, desse os intelectuais, ao povo, aos estrangeiros que se relacionavam com a FRELIMO e, depois da Independência, com o seu Ministério, que também era responsável da cooperação internacional e aos empresários e quadros que vinham tratar de relações económicas. 

18. Marcelino sempre foi e mantêm-se ainda hoje, uma referência ideológica, um indivíduo de um bom senso ideológico; só falava no fim e falava bem. Porque apreendia tudo aquilo que as pessoas diziam e foi sempre um homem dedicado ao povo e à causa popular. 

19. Mas sobre o Marcelino dos Santos no pós-Independência muitas outras pessoas podem testemunhar. 

20. Finalmente Marcelino foi poeta. É considerado um dos mais insignes autores da poesia de combate. Os seus textos, assinados com os pseudónimos de Lilinho Micaia e Kalungano, inspiraram várias gerações de escritores. Com estes pseudónimos tem poemas seus publicados no Brado Africano e em duas antologias publicadas pela Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Com o seu verdadeiro nome, tem um único livro publicado pela Associação dos Escritores Moçambicanos, em 1987, intitulado “Canto do Amor Natural”.

 

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