O País – A verdade como notícia

“Murmúrios” e “Incêndios”: possíveis diálogos*

O livro faz o sentido e o sentido faz a vida.

In O prazer do texto, de Roland Barthes.

 

Ao longo destes anos que me dedico ao ensaio, tenho a felicidade de contar com a confiança da Fundação Fernando Leite Couto para apresentar livros e/ou moderar conversas com autores. Os nomes são vários, mas ficam aqui alguns exemplos: Luís Carlos Patraquim, Carlos Reis, Mia Couto, Álvaro Carmo Vaz e Virgília Ferrão. Para mim, que até antes de ontem nem sequer ousava sonhar com estes momentos tão envolventes, tem sido uma experiência agradável poder cruzar percepções e ainda deixar-me levar pelos universos infinitos proporcionados pelos artistas da palavra.

Apesar de reconhecer nos convites da Fundação um privilégio, entretanto, sinto que vêm sempre carregados de muita responsabilização, pois ser uma figura intermediária entre os autores e os leitores exige de nós o que, geralmente, não conseguimos dar na plenitude. E hoje, em particular, a minha missão é ainda complicada, porque o meu amigo Celso Muianga ligou-me há dias a “intimar-me” para apresentar O descalço [dos] murmúrios, de Gibson João, e Incêndios à margem do sono, de Óscar Fanheiro. Se apresentar um livro já é um assunto complexo, imaginem dois?

Em todo o caso, aceitei o desafio e quero agradecer à Fundação Fernando Leite Couto por estas possibilidades que me dá de estar e conviver com autores.

Ainda hoje, pela tarde, aconteceu-me uma coisa muito bonita. O Gibson João, que se estreia em livro, pela primeira vez, assinou um autógrafo. Quis o destino que eu fosse o escolhido neste contexto em que o poeta está a iniciar o seu percurso literário. Desde hoje, tanto faço parte da sua história quanto ele faz parte da minha. Talvez, por isso, o nosso poeta premiou-me com as seguintes palavras no autógrafo que me concedeu: “Para o José dos Remédios, com carinho, escute os meus murmúrios”.

A seguir, proponho-me partilhar convosco o que escutei…

***

O descalço [dos] murmúrios, de Gibson João, e Incêndios à margem do sono, de Óscar Fanheiro, são obras laureadas (ex-aequo) na quinta edição do Prémio Literário Fernando Leite Couto. Com muita satisfação, eu integrei o júri que, com muita naturalidade, decidiu premiar os dois originais. Não houve grandes dúvidas em relação a essa decisão porque, desde o princípio, sentimos que estávamos diante do que felizmente a literatura moçambicana nos pode proporcionar em termos de qualidade poética. Em relação aos outros livros, os “Murmúrios” e os “Incêndios” demarcaram-se com muita notoriedade. Conforme se lê na acta do júri, tal é a complementaridade que, alguns de nós, julgamos que eram originais do mesmo autor. Mas vamos por partes.

Em O prazer do texto, Roland Barthes afirma que “O livro faz o sentido e o sentido faz a vida”. Se concordarmos com esta afirmação, facilmente podemos deduzir que a cada leitura de um livro desenvolvemos uma forma diferente de pensar o mundo. E se o livro em causa for muito bom, como é o caso de O descalço [dos] murmúrios, o sentido é algo múltiplo e cheio de perspectivas interiores e exteriores. Quer dizer, nesta sua estreia, Gibson João dá-nos alguns pontos de fuga, os quais são decisivos para reflectirmos sobre a relevância dos efeitos visuais da palavra.

Em Gibson João, a construção do sentido, na verdade, é um evento árduo e contrastivo. Num momento, a poesia é a circunstância e, no outro, é imensidão. Nesse intervalo, flutuamos como um pêndulo à procura de direcção ou de dois pólos onde morar simultaneamente. E o melhor disso tudo é que podemos contrariar as leis da Física e ocuparmos, paralelamente, dois espaços no mesmo instante em que diferentes sentimentos nos ocorrem. Quer dizer, não somos a mesma vida quando lemos este livro que nos surpreende pela sua acutilância e autenticidade.

O descalço [dos] murmúrios é um exercício sobre o lugar que habitamos e que nos habita por associação. Nesse aspecto, facilmente identificamos uma relação intertextual com Os ângulos da casa, de Hirondina Joshua, ou com “Inventário de imóveis e jacentes”, de Luís Bernardo Honwana. Afinal, o espaço doméstico é o principal destino de uma partida iminente numa permanência constante. O poema “O bolor da casa”, que agora será bem lido pela Matilde Uelissene, quase imita a interpretação que estou a tentar expressar nesta apresentação:

 

a casa acorda no polo mais vertiginoso do meu sonho

com as suas ramelas obscuras

com os hematomas vivos do encéfalo e

com o bolbo alucinado pela vida

 

a casa sonha chuva que morre na cobertura

que silencia a sede dos campos herbívoros

como a mãe, pelo vácuo elementar das mudas

fruteiras da casa

 

a noite morreu, na calefacção negra da epiderme

da inocência. O resto, é medo e treva fria

por cima

como o sofá sombrio do pai

 

eu digo que a casa é um casulo de infortúnios –

um celeiro de gritos,

de monólogos degenerativos como o dos móveis

como o de enfermidades entre enfermidades

 

é com isso que:

– a dor argumenta lágrimas (p. 25).

 

Enquanto em Nós matamos o cão-tinhoso temos um “Inventário de imóveis e jacentes”, neste O descalço [dos] murmúrios, o inventário é de angústias. Pois, a casa simboliza um espaço crítico, tornando os sujeitos de enunciação elegíacos. Aliás, a elegia aproxima o tom poético de Gibson João a de autores como Luís Carlos Patraquim ou Sangare Okapi. É na elegia de Gibson João onde morre o silêncio, onde as vozes se rebelam contra os objectos, as emoções, os sentimentos e as definições previsivelmente felizes. A elegia corrói o âmago do sujeito e, nessa degeneração do corpo e da alma, a dor e o espanto se confrontam em prol de uma poesia incisiva.

Neste O descalço [dos] murmúrios, pouco importa a mancha gráfica dos poemas que perfazem 75 páginas, o desassossego, inclusivamente naquele carácter whiteano, atravessa todo o livro. A questão que se coloca é: porquê os sujeitos poéticos de Gibson João são desassossegados e angustiados?

À pergunta retórica aqui colocada, vou responder mais à frente. Por enquanto, convido-vos a segurarem este Incêndios à margem do sono sem temerem queimar.

Quando li o original de Óscar Fanheiro, ainda projecto, lembrei-me imediatamente d’O livro da dor, como sabem, da autoria de João Albasini, publicado a título póstumo em 1925. Quer isto dizer que o nosso poeta conseguiu, inconscientemente, fazer-me recuar 100 anos da nossa história para do séc. XX, digamos assim, resgatar uma das vozes importantes da cultura moçambicana. Particularmente, gosto quando os livros me permitem constatar diálogos com o tempo, com o espaço e com tantas outras dimensões da nossa existência colectiva. Isso torna a lembrança possível e daí a memória pode rejuvenescer com certa amabilidade.

Em primeiro lugar, lembrei-me do célebre O livro da dor devido ao monólogo como registo de proa nesta navegação pelo mar das letras. Do mesmo modo que naquele livro as cartas de Albasini são dirigidas a um amor confesso, porém não correspondido, um cenário igualzinho se verifica em Incêndios à margem do sono. No entanto, aqui o amor não é uma disputa de afectos, mas uma impossibilidade por causa da eterna partida… Sempre prematura.

Segundo me disse Óscar Fanheiro, quando conversamos mais cedo, este livro também é uma homenagem à sua irmã, que a perdeu para a morte de uma forma ingrata. A morte sempre é uma ingratidão e isso piora porque nunca aprendermos a lidar com esse estado final que nos atormenta. Então, como se pretendesse cruzar a fronteira de uma Missão impossível, superando até todos os recordes de Tom Cruise, Fanheiro escreve cartas em forma de poemas em verso e em prosa poética para as enviar ao além, onde todos nós temos ou teremos uma musa presa. No inferno ou numa cela de Zeus.

Dito de outro modo, Incêndios à margem do sono é uma tentativa de chegar ao infinito, de tocar o intangível e de buscar respostas onde apenas sobram perguntas. Num tom rebelde, amuado ou contrariado, os sujeitos do poema se exprimem como se a lógica das coisas dependesse da presença de quem está ausente. Consequentemente, a resignação, o inconformismo e a angústia (uma vez mais a angústia) formam uma espécie de tríade inabalável para a tempestade perfeita. E com isso se gera na atmosfera da poesia esse efeito monólogo evidente. Tomemos como exemplo o texto “Blackout”, na leitura de Matilde Uelissene:

 

São três da madrugada e preparas-te para mais um black-out,

mas antes visitas a cela de Zeus

o lençol em que as lágrimas se precipitam,

visto que já não se pode suportar a letargia das manhãs,

sobre os molares da alma.

 

E, mesmo assim, carregas contigo a raiva do mundo,

o desejo sanguinário de resolver a pau as coisas com Deus,

e, p’ra isso, tens no silêncio a tua secreta arma

– o poço fundo onde invocar a ruina interior desses verbos celestiais –

a eterna magia de colocar o medo a vigiar

a memória polvorenta dessas mãos agoniadas

e a casa onde os ventos conduzem os olhos

para o fim dos tempos, repito, para o fim dos tempos,

ou para o beco onde o caos de todos

os (corpos e) nomes se anuncia:

Agosto, Agosto, Agosto.

Que rufem as nuvens no inferno das nossas horas (p. 15).

 

Neste poema, podemos tomar “black-out” e “cela de Zeus” como expressões que incitam a revolta contra a morte e contra o abismo. São apenas dois exemplos do que faz do Incêndios à margem do sono um livro sobre a densidade do silêncio e da noite. Nesse aspecto, claro está, Óscar Fanheiro faz soar a velha constatação de Gérard Genette, quando firma que “A valorização poética da noite é quase sempre sentida como reacção, como contra valorização”.

Ao trabalhar a noite, com efeito, Óscar Fanheiro investe numa linguagem dura, descomprometida com a delicadeza. Sem medir os versos e o tamanho da sua prosa poética, os sujeitos textuais questionam, confrontam e inquietam-se sem muita moderação. Antes pelo contrário, são impulsivos e irreverentes porque, aparentemente, perderam mais do que ainda podem ganhar. Portanto, Incêndios à margem do sono é um longo poema dividido em partes. Cada parte é um suspiro, um choque e um drama que não cabe na singularidade semântica de uma língua. Logo, o que não se consegue expressar em português, as palavras inglesas aparecem num registo denso, mesmo à semelhança da poesia de Mbate Pedro e de Álvaro Fausto Taruma.

Resumindo, o que estou a tentar dizer é o seguinte: a beleza da escrita de Óscar Fanheiro encontra-se precisamente na liberdade da expressão poética, nessa imprevisibilidade malandra a ameaçar o caótico.  A questão que podemos colocar é: porquê os sujeitos poéticos de Óscar Fanheiro são desassossegados e angustiados?

Bem, na Crónica dos anos da peste I, Eugénio Lisboa sugere que José Craveirinha é um poeta das suas próprias circunstâncias. Quando penso nessa ideia, concluo que boa parte da resposta à pergunta sobre a razão do desassossego e da angústia em O descalço [dos] murmúrios e em Incêndios à margem do sono tem a ver com a impossibilidade de Gibson João e Óscar Fanheiro desligarem-se do seu mundo interior e da vida à volta. Os poetas absorveram, com a poesia, as instabilidades de ordem socioeconómica e política de Moçambique. Os autores sentem a nuvem carregada de trevas, não escapam às crises nacionais, desde o que se passa em Cabo Delgado à fome e à incerteza que se repete em tantas outras províncias.

Os sujeitos poéticos de O descalço [dos] murmúrios e em Incêndios à margem do sono são feitos de desassossego e angústias, igualmente, porque o país não está bem. Como pode estar, se há gente a morrer sem saber porquê e não ter o que comer? Como podem os poetas escreverem sobre flores e borboletas se a sua alma é afectada pelas suas dores e inerentes àqueles que morrem à busca da esperança?

A essa pergunta, não vou responder. Mas, antes de terminar, deixo cá ficar uma sugestão aos meus amigos Gibson e Óscar. Na verdade, a minha sugestão é apropriação de um verso da música “Não espero o sol”, da cantora brasileira Becca Perret: “Não esperem o sol para a felicidade acontecer”. Claro, vocês não têm nada que seguir esta minha sugestão, porque, a escreverem assim, a felicidade é uma certeza.

 

*Texto escrito de cor na sequência da apresentação dos livros O descalço [dos] murmúrios, de Gibson João, e Incêndios à margem do sono, de Óscar Fanheiro, no dia 30 de Agosto de 2023, na Fundação Fernando Leite Couto, Cidade de Maputo.

 

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