Texto: Elton Pila
Quatro filmes depois, Yara Costa coloca uma instalação na Ilha de Moçambique. “Nahota e a sereia” é um happening, não apenas para Ilha, mas também para circuitos de arte mais experimentados. Se temos um assombro pelo formato, o lugar para onde a experiência nos leva é um wake up call. A instalação imersiva nos faz olhar para o património marítimo da cultura suaíli e propõe caminhos de regresso a um passado que era já futuro. É a arte interventiva, a tentar fechar a última comporta antes do mundo se esvair dentro da sua própria lama.
Odeio a ideia de começar por aqui. Mas tem de ser. Quem é a Yara Costa?
Tento responder a essa pergunta através dos trabalhos criativos que faço. Os meus filmes e agora esta instalação artística são a forma de me ir descobrindo, definindo e de dizer quem eu sou.
Sou cineasta, com uma formação em jornalismo. Mas não é isso que me define. Não saberia dizer o que me define, mas posso dizer o que me move.
E o que lhe move?
A história, cultura, identidade, no sentido de saber o que era no passado, perceber o que acontece no presente para ajudar a revelar o futuro. E como é que todas as coisas estão interligadas. O que faço através do meu trabalho artístico ajuda a conectar todos esses pontos, ajuda-me a perceber quem sou eu neste mundo neste período histórico, neste agora e perceber qual é o meu papel e qual acho que deve ser o meu papel neste mundo.
E isso é uma preocupação até identitária?
Meu pai é da Ilha de Moçambique, o vínculo que tenho com a Ilha é através dele. Meu pai é nascido na Ilha e os meus avós são de Goa, na Índia, que teve muita ligação com a Ilha de Moçambique.
Lembramos que, durante um longo período histórico, a Ilha de Moçambique esteve sobre a governação da Índia.
Do lado da minha mãe, a minha bisavó é da Tanzânia, ela foi levada para Índia ainda criança, depois da sua aldeia ter sido atacada e ela se ter perdido dos pais. Depois de ter estado na Índia, chegou de barco a Maputo. A minha mãe é neta de duas mulheres negras africanas, que tiveram filhos com homens europeus. Parte da família da minha mãe é de Inhambane um lugar que eu gosto muito. E, na verdade, parte da ideia deste projecto nasceu quando eu estava lá em Inhambane durante a pandemia da Covid-19.
Fui nascida em 1981 na cidade de Maputo, no momento em que o país também está tentar formar-se de certa maneira. Não sei quem me deu, se os antepassados ou Deus, eu nasci assim numa incumbência de tentar encontrar respostas para estas linhas da história que determina quem somos e como os outros nos vêem.
Mas achava que era tentar encontrar respostas. Só depois percebi que não é sobre encontrar respostas e sim sobre fazer perguntas certas.
E, recentemente, depois que eu decidi me instalar na Ilha de forma definitiva passei a ter muito interesse na costa Suaíli, nesta identidade que eu acho um pouco invisibilizada em Moçambique.
Sempre me senti como se estivesse de costas para o mar. Apesar dos 3 000 km do mar, quando a gente vai ver o que está escrito nos livros, até a própria noção do país, construção do pós-colonialismo, é de costas para o mar, é como se esta identidade não existisse. Mas a maior parte das pessoas vem de lá. No mundo, 3/4 da população vive na costa e em Moçambique também muita gente vive na costa, e isso nāo é limitado apenas à actividade económica de pesca, mas é muito mais. Tudo isto pode nos servir hoje para entender como é que está a ser a transformação do planeta, do clima e de todas as mudanças que estão a acontecer. Então, tudo isso me faz quem eu sou, sou uma pessoa que está sempre a mudar. A Yara de há dois ou três anos não é a mesma. Aprendi muito durante estes 3 anos com as comunidades costeiras e hoje, tenho mais perguntas que ontem.
Sempre teve esta inquietude em relação a quem é desde a infância ou foi se desenvolvendo com o tempo?
Sempre tive inquietação sobre tudo, de entender porque é que as coisas são como são.
Qual era a tua Maputo?
A da Sommershield, não podia ser mais privilegiada. Ainda que a minha família não venha necessariamente desse lugar de privilégio, começou a estar a partir daquele momento em que se definiram as linhas do país, nos anos 80. Mas, na casa dos meus pais, entrava e saía muita gente, com muitas histórias sobre o que estava a acontecer na guerra. A minha irmã adoptiva mais velha tinha perdido os pais na guerra, o pai tinha pisado numa mina e a mãe tinha sido queimada. Eram histórias que tinha dentro de casa. E talvez posso também ter juntado com alguns filmes que via na altura. Mas sentia uma tensão de que isto pode chegar mais perto. Lembro que, quando acabava energia, o meu avô dizia Afonsinho não está contente hoje. E eu me perguntava quem era este Afonsinho que trabalha na EDM. Levei muito tempo a perceber. É engraçado que, depois de formada em Jornalismo, a minha primeira entrevista foi com Afonso Dhlakama. Aquilo foi conhecer o Afonsinho da minha infância.
A inquietação, o colocar perguntas teve alguma influência na escolha de Jornalismo para a formação?
Eu não sabia bem o que eu ia fazer. Comecei por fazer antropologia social. Mas depois andei a pensar o que ia fazer com o curso. Tinha poucas opções como dar aulas na universidade, mas eu não gosto de dar aula. Eu sempre fui uma pessoa de pessoas, de sentar e ouvir falar, não me imaginava sentada num escritório fechado. E foi um amigo que sugeriu que tinha de fazer jornalismo, porque eu tinha muitas perguntas. E eu sempre tentava imaginar como seria se Moçambique não tivesse sido colonizado, se a África não tivesse sido colonizada. Eu sempre a querer questionar estas coisas e esse amigo disse que eu daria uma boa jornalista. Então, vi que haviam anunciado no jornal um convênio Moçambique-Brasil e que podias escolher o curso que querias e a faculdade que querias, tinhas que só fazer provas na altura. Então, fiz o curso de Jornalismo e Comunicação dentro de um Instituto de Cinema e Arte da Universidade Federal Fluminense. A Escola de Jornalismo estava lá dentro, então isso permitiu-me que tivesse professores de Cinema, de Jornalismo e Comunicação. Aprendi muito sobre olhar o mundo e como fazer as perguntas certas. Eu não sabia mexer numa câmara ou fazer uma reportagem, mas deram-me as ferramentas sobre como indagar ainda mais. Isso é o mais importante.
Já via muitos filmes na infância. Vai fazer a formação em Jornalismo e calha em um Instituto de Cinema e Arte. O caminho para tornar-se cineasta estava já traçado?
Talvez. E há outros episódios.
Vivia numa rua onde havia uma produtora de Cinema, a Ébano filmes. Eles estavam numa produção, acho que era uma das primeiras grandes produções com co-produção internacional. Era uma co-produção com Zimbabwe e com Estados Unidos. O filme era “Uma criança que vem do Sul”, era um pouco inspirada na história de Eduardo Mondlane e chamaram a Chude Mondlane para fazer parte da produção. O filme era muito de memória e era preciso encontrar uma criança mais ou menos parecida com a Chude para fazer o papel da actriz principal enquanto pequena. Fizeram o anúncio para o casting de crianças. E eu fui fazer o casting. Eram dezenas de crianças. Eu tinha 8 anos e o realizador gostou e disse vais ser tu e agora estas contratada para três meses de filmagens. Eu não sabia nada do que era aquilo, mas achava tudo incrível porque eu estava a dobrar o papel da actriz principal.
E, depois, veio um documentário. Eu fui assistente de um realizador senegalês, o Moussa Sene Absa já experimentado em filmes e o contrataram para fazer um filme sobre mulheres e microeconomia. O filme foi filmado na Índia, Colômbia, no México, Brasil, Senegal, Congo e Moçambique. No México, ele filmou num bordel de prostitutas reformadas. O filme era de pessoas, de mulheres e a visão das mulheres do mundo.
No Congo, foi com uma mulher que tinha um rosto de 100 anos, mas, na verdade, tinha 40. E lembro de ter ouvido ela dizer que tinha 17 crianças, todas filhas de violação durante a guerra, aquilo era pesado. Por acaso, em Moçambique foi a parte menos interessante, a história rondava o HIV, uma mulher que vivia com HIV ou trabalhava no hospital não me consigo lembrar bem.
Deste filme já adulta que era assistente de realização ao seu primeiro filme, quanto tempo se passou?
Não foi imediato. Depois da formação, trabalho com a STV como repórter-produtora de um programa que na altura chamava-se Ponto Parágrafo, apresentado no Teatro Avenida por Anabela Adrianopoulos ao vivo sobre temas não consensuais em que tinha três pessoas de cada lado. Era um pouco inspirado em alguns programas que víamos noutros países. Então fiz isso durante um tempo, trabalhei muito, ralei muito, foi duríssimo, aprendi muito. Mas tive a certeza de que a televisão não é para mim e é aí que ganhei uma bolsa de estudos Americana, a Fullbright. Fiz as provas e esperei um ano para poder estudar mestrado nos EUA em Nova York, onde me formei em Cinema-Documentário e como trabalho de final do curso era fazer um filme. Voltei para Ilha de Moçambique e comecei a interessar-me por ver imigrantes chineses e depois percebi que não era só aqui que estava a acontecer. Então, comecei a fazer esse projecto. Na Universidade, fui assistente de um professor que, ao final do semestre, levava os alunos para o Gana. E era também uma oportunidade de enriquecer o meu trabalho. Então filmei em Moçambique, Gana. E depois, de uma realizadora que conheci em um Festival, ouvi que o melhor lugar para o meu filme era o Lesotho, porque Lesotho é um lugar que nem os de lá ficam por lá, então lá fui. Encontrei lá chineses, mas era uma área muito complicada porque tinham assassinado um chinês pouco tempo antes da nossa chegada. E foi assim que eu fiz esse filme sobre chineses em África. E eu já tinha certeza de que queria fazer filmes, estar nos Estados Unidos a ver ajudou-me muito.
Como depois de 4 filmes, pensa numa instalação?
Eu já sabia da história dos Nahotas ou Nakhodhas e já tinha interesse. O Nakhodha é o capitão do dhow, embarcação à vela de origem suaíli, que conhece o mar, os ventos e as estrelas como ninguém. Alguém falou-me de um senhor que é grande conhecedor do mar e eu sempre ia conversar com ele. Era o senhor Torodji, uma grande Nahota e tivemos várias conversas. O senhor é uma biblioteca. Meu interesse aumentou. Tinha de pensar numa forma de eternizar isto. Eu absorvi tudo o que ele disse, mas não podia estar só em mim. Estava a pensar em alguma coisa. Fazer com as pessoas e para as pessoas. Então, pensei que devia fazer com os jovens da Ilha. Então fiz anúncio para quem estava interessado e acabei seleccionando seis jovens.
Começamos com formação. Era uma formação que ensinava como recolher histórias, que tipo de histórias e qual é a relevância de cada história. Na altura, só tínhamos telefones pessoais de cada um. Então, trabalhamos com os meios que tínhamos. Fomos seleccionando as pessoas com que nos interessava falar. E as histórias de Nahotas e sereias sempre passavam pelos nossos ouvidos. Não me interessava muito perceber a veracidade ou não dos Nahotas com casos com sereia mas sim como as pessoas vêem, vivem e interpretam o mundo de outras formas.
A história que ouvi era de um pescador abastado que encontrou com uma sereia. A sereia era uma figura não humana que mudava toda hora, às vezes era um monstro, às vezes era uma voz, uma cor. O que achei mais incrível ainda é a ideia de como é que as pessoas entendem o mar e o ambiente em que estão como extensão delas mesmas. Na verdade, respeitam aquelas criaturas ao ponto de casarem com elas e essa é uma maneira de ver a natureza. Ele então casou-se com a sereia, mas manteve uma promessa em que ele não podia ter uma relação terrena. Só que o pescador queria ter filhos e acabou casando. E a sereia foi desaparecendo e a partir desse tempo nunca mais voltou a pescar.
Parece ficção.
O meu olhar como artista me faz pensar este conceito do mar e humanidade, quando há um equilíbrio entre a natureza e o ser humano, quando as coisas estão equilibradas, este casamento – homem e natureza – as coisas correm bem. O homem tem o que comer, a natureza consegue se regenerar. Mas quando essa relação está descontrolada vivemos o que vemos agora. Estamos a viver uma ruptura nos ciclos, os constantes ciclones. Antes, era um em cada 40 anos, depois 20, agora, é um ou mais a cada ano. A nível do mar sobe a uma velocidade acelerada, aqui nesta região fala-se em 20 cm até ao ano de 2030!. O que estamos a ver é, no fundo, o divórcio entre natureza e humanos. A humanidade passou a extrair da natureza de forma desregrada para criar um estilo de vida que hoje o mundo já entende que não funciona, não é sustentável. Não se pode tirar da terra, chupar dela e achar que isso não tem consequências.
Então, para mim a relação do Nahota e da sereia é essa metáfora.
Há uma pesca industrial internacional que está acontecer que faz com que não haja peixe e quem sofre depois é o pescador artesanal que depois tem que ir com uma rede mosquiteira e é dele que depois a gente vai falar. Mas no fundo ele não é o problema, mas ele vive a consequência de um problema que a gente sabe onde começa. Todas essas histórias, a dimensão histórico-cultural, do conhecimento ambiental e climático, da arte música como é escrita tudo isso me interessou. Mas não cabia num filme de 60 minutos. Então, foi aí que comecei a pensar em gravar sons, filmar e apresentá-los de outra maneira.
Nas conversas com o Nahota, ele dizia-me que do lado de cima da água, a uma grande distância ele conseguia ver o que estava por baixo das águas, e que isso foi algo que foi aprendendo ao longo do tempo. A mim, isso pareceu-me tecnologia pura. Então, comecei a enquadrar os elementos e coordenar de uma forma coerente. Foi assim que comecei a escrever “Nahota e Sereia”.
Ao ver a instalação, a coisa que passa pela cabeça é como tudo isto foi feito, como é que este material foi levado até aquele edifício que está a acontecer a exposição. Qual é que foi o processo para que tivéssemos aquelas imagens do fundo do mar. Como foi tudo isto?
Já tinha a ideia de fazer uma coisa da realidade virtual. Era muito importante para mim gravar o som o mais próximo possível da realidade e do ouvido humano. Eu queria o som do pássaro que passa, o vento, o mar, ou seja queria poder transportar as pessoas para os espaços reais através do som. Por isso, gravamos o som em 360 graus.
O termos gravado antes com o telemóvel, ajudou a mapear que tipo de material seria importante. E isso facilitou quando começamos a gravar já a sério com o Rufus Maculuve que foi fundamental neste processo.
Como é ter um projecto deste género na Ilha de Moçambique. As questões ambientais aqui se fazem sentir imenso. Mas este formato é novo para todos. Como é comunicar estas coisas?
A Ilha em algum momento já foi o centro do mundo, eu queria de alguma forma honrar isto. O berço é a Ilha. Mas o projecto pode sair daqui para outro canto, Maputo, Cape Town, Dar-es-Salam e mais longe.
Mas as pessoas, cultura, conhecimento, ciência, sabedoria, arte e engenharia da Ilha tem um grande destaque aqui. O que estou a tentar fazer é que isso seja visibilizado, promovido, celebrado e protegido e que a gente possa olhar para nós mesmo conseguindo enxergar a riqueza e diversidade que temos em todas essas áreas. Porque eu acho que sofremos da síndrome de não olharmos para nós mesmos, para dentro, para casa, para a palhota, para o macúti, para o barco, para o pescador.