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1001 gritos femininos em Ecos

Ergueram-se vozes atordoadas de mulheres que ousaram viver, e na sua jornada, beijaram várias formas de morte, morte sentimental, morte espiritual, morte de esperança e morte até de um pouco de suas vidas, mas como ainda as possuiam, juntaram os seus gritos de coragem fazendo “Ecos”.

Ecos é o docudrama que traz a vista depoimentos corajosos de mulheres que foram vítimas de violência baseada no género, incluindo a física, económica, e psicológica.

O roteiro tem o merito de seleccionar um grupo de mulheres das quais a sociedade quase desconhece, e pouco vê, as reclusas. Na primeira voz, as reclusas fazem-se conhecer, e expressam o que tem de mais forte para a sociedade, os seus sentimentos, suas marcas profundas.

O documentário inicia com uma narração sobre o papel que a sociedade reserva a mulher, o de cuidar do lar. Quitéria Guirrengane, activista dos direitos humanos, participa questionando a representatividade, de que forma mulheres em posições de liderança podem ser actores sérios na defesa dos direitos humanos e na prevenção da violência baseada no género. Reflecte-se, portanto, sobre a vulnerabilidade socioeconómica a que a mulher está sujeita, o dificil acesso às oportunidades, e o facto de a violência ser maioritariamente cometida por membros da sua própria familia.

A trilha sonora inicia com a música da rapper Iveth Mafundza, com um verso apelativo que cita: “Tudo começou com a maçã do Eden”, referindo-se ao início do tormento feminino, a música em causa é também uma introspecção sobre a realidade social da mulher. Os sons dramáticos e de suspense harmonizaram com as cenas sombrias retratadas.

A fotografia é executada na cadeia civil, local onde os gritos femininos se cruzam, gritos de mães, filhas, tias, gritos de mulheres que suportaram as bofetadas da vida. A fotografia torna-se dramática, colorindo a imagem daqueles depoimentos atormentados. O espectador é transportado para um submundo de horrores e terrores vividos pelas reclusas.

O nível de violência vivido por estas mulheres é do exponencial ao infinito das suas almas, desde Odete Caetano, que flagrou o seu esposo com sua irmã adolescente na cama, e, por conseguinte, recebeu uma proposta de casamento poligâmico, onde a segunda esposa seria sua irmã mais nova outrora violada por seu esposo. Que estado psicológico teria esta menor para assumir um lar?
Intrigante também foi o testemunho de Joaquina Niquice, que tinha de pedir dinheiro todos os dias para a escola dos seus filhos e estava proibida de pôr mexas, devido ao ciúme do esposo. O mais intrigante não era o ciúme, nem as pernas partidas pela violência, eram as próprias mexas, que eram arrancadas da sua cabeça, uma por uma, deixando cicatrizes e dor.

A partir deste documentário, é possivel radiografar fragilidades sociais, por exemplo: a deficiente preparação da rapariga, a cumplicidade dos familiares, o desconhecimento de linhas de denúncia.
Olga Muthambe, activista dos direitos humanos, acrescenta outras formas de violência contra a mulher: No acesso ao emprego, no acesso à terra. A violência baseada no género afecta as mulheres, sobretudo na perda de património, basta lembrar quantas mulheres são despejadas das suas casas quando o seu marido perde a vida. A decisão de permitir que adolescentes de 13, 14 anos estudem de noite, é um factor que aumenta a vulnerabilidade da rapariga a violência.

As vítimas são muitas vezes crianças e adolescentes, aterrorizadas pelos pais, irmãos e tios com quem vivem, o silêncio e medo das vítimas só favorece aos predadores sexuais.

No caso de Nompulelo Mpulampula, ainda em idade escolar, sua família era um exemplo local de uma família feliz, até sua irmã mais velha ser estuprada pelo seu pai, a ponto de engravidar, e ter filho. Tempos depois tornou se a família dos segredos, sua irmã engravidava quase todos os anos dentro de casa, e perdeu-se a conta do número de abortos que cometeu.

E porque filho de peixe aprende a nadar, seu irmão reproduziu a experiência consigo. Esta violência subverteu o seu carácter, tornou-a uma menina confusa na escola, que não podia ser tocada. Passou a odiar os homens, a sua casa era uma prisão de horrores sexuais de tal modo que já não suportava viver na sua família, sendo vítima. As ruas eram seu único lugar de liberdade, e foi lá onde libertou-se, e fugiu em busca de refúgio com apenas 17 anos de idade.

E que dizer da mulher que pariu um filho surdo e mudo, e foi culpada por ter parido um macaco?

Porventura teria feito o “macaco” sozinha? Culpada por ter nascido um filho com deficiência, Lafissa levou porrada e teve que abandonar o lar com o seu filho às costas.

Que dizer duma criança com pai branco, que não foi criada pela sua mãe por ser mulata, pois sua mãe negra não podia criar bebé mulato no bairro? Nontombi Victória foi vítima de racismo, um dia após seu nascimento, foi deixada em Kwazulu Natal pela sua mãe, para ser criada por pessoas estranhas. Cresceu sem o amor da mãe, sem ser amamentada, mas conheceu cedo o carinho animal dos dois irmãos do padrasto, que lhe estupravam quase todos os dias.

São várias atrocidades vividas por estas mulheres, cujo nível de crueldade, apenas o documentário pode revelar, levando-nos a concluir que a mulher é vista como objecto de prazer, e as suas aspirações são ignoradas, numa sociedade que está doente e precisa de cura.

Ecos desafia-nos a contemplar nas vítimas os estragos da violência baseada no género, e as consequências dessa violência na sociedade. Após muita exposição, a violência, as vítimas podem se tornar protagonistas da mesma. O documentário convida-nos igualmente a pensar na impunidade dos predadores, na prevenção da violência e na educação da rapariga de hoje.

A educação precária da rapariga, a falta de informação, a exposição de adolescentes ao horário nocturno, a falta de procedimentos de detecção e resolução destes conflitos nas escolas primárias e secundárias, são vulnerabilidades gritantes que o filme nos intima a prestar atenção.

Ecos é uma obra cinematografica em formato de documentário, escrito e dirigido por Gigliola Zacara, com a duração de 81 minutos, lançado em 2023 no Centro Cultural Franco-Moçambicano.

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