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100 anos sem João Albasini, o Nwandzengele*

O fundador do Grémio Africano de Lourenço Marques, e dos jornais O Africano e O Brado Africano, João Albasini, também conhecido pelo seu nome rhonga Nwandzengele, morreu a precisamente 100 anos, isto é, a 15 de Agosto de 1922. Neste artigo, na verdade, apenas lembramos essa enorme referência intelectual e da imprensa moçambicana. Pelo menos…

 

João Albasini sorri, quando Hans lhe conta que na noite anterior quase se perdeu num mato que existe perto do hotel.

‘Mato?’.

Trata-se antes de um jardim. Ou melhor, de um projecto de jardim, uma vez que, como sempre, as hesitações ou mesmo o desvio de verbas erodem ideias e planos que acabam por dar em não mais que grotescos esboços, coisa nenhuma. João Albasini é assim, tem a curiosa propensão de conduzir todos os diálogos numa mesma direcção, de assestar sobre a municipalidade e os seus jogos todas as baterias que tem. É tinta que lhe corre nas veias, não sangue. Alguma coisa muito séria lhe hão-de ter feito para que veja o mundo sempre assim.

‘Mato?’.

Albasini ri com gosto.

Esta é uma das imensas passagens do romance O olho de Hertzog, de João Paulo Borges Coelho, no qual João Albasini aparece ficcionado como personagem. Mas também lê-se a seguinte:

João Albasini desta vez não sorri. Está muito sério. E conta. Conhece-o desde há alguns anos, ele próprio ainda proprietário e editor d’O Africano, um jornal de muito sucesso que há uns meses atrás foi obrigado a vender. Grande parte desse sucesso devia-se à popularidade entre os moçambicanos que trabalhavam nas minas de Joanesburgo, onde circulava às centenas de exemplares.

No livro com o qual João Paulo Borges Coelho venceu o Prémio LeYa 2009, João Albasini não só é uma figura interessantíssima como mantém um ar muito educado e esclarecido. De certo modo, apesar de ser ficção, O olho de Hertzog permite criar-se uma certa imagem, verosímil ou apenas fictícia, de quem pode ter sido João dos Santos Albasini, filho do negociante Francisco João Albasini e de Facaxanam, baptizada Joaquina Correia de Oliveira.

Conforme os dados bibliográficos compilados por António Sopa, na revista Tempo de 25 de Agosto de 1985, Albasini aprendeu as primeiras letras na escola paroquial da capital moçambicana, onde, bem mais tarde, tornou-se um dos fundadores do Grémio Africano de Lourenço Marques (1908), dos jornais O Africano (1908) e O Brado Africano (1918). Já em 1919, acrescenta Sopa, Albasini viajou a Portugal, onde manteve contacto com a Liga Africana e onde apresentou ao governo português revindicações como fim do trabalho forçado, da discriminação racial, do imposto de palhota, da expropriação de terras e mostrou-se a favor de mais educação.

João Albasini foi mais do que um célebre jornalista de O Africano ou de O Brado Africano. Mais do que isso, fez-se referência intelectual muito além do seu tempo. Por isso, interveio em prol da sociedade moçambicana do séc. XX como um fenómeno de difícil repetição, ora metendo-se em questões socioculturais, ora em questões de ordem política e económica.

Num artigo intitulado “José Francisco Albasini e a saúde do corpus moçambicano”, publicado no livro Encontros brasileiros com a literatura moçambicana, de Rita Chaves e Tania Macedo (Marimbique, 2012), César Braga-Pinto descreve da seguinte maneira os dois jornais que se confundem com João Albasini:

Escritos em português e ronga, e em alguns momentos até em inglês e zulu, os jornais O Africano (1908 – 1918) e O Brado Africano (1918 – 1974) alcançaram um público leitor bastante significativo, chegando a reivindicar para si o lugar de jornal mais vendido de Moçambique.

A referência ao excerto acima está descrito em jeito de ficção no romance O olho de Hertzog, no qual, igualmente, João Albasini é um eixo favorável para se pensar o presente através do que o passado legou. A propósito de legado, Albasini é autor de O livro da dor, publicado a título póstumo em 1925, para alguns estudiosos, um dos grandes marcos na periodização da literatura moçambicana.

Menos concentrado no homem, mais na obra, em Além do túnel (2020), Francisco Noa refere o seguinte sobre O livro da dor: “um livro sobre o próprio processo de escrita, enquanto criação, ou recriação. Essa dimensão autorreflexiva reconhece-se nos vários intertextos, implícitos e explícitos, que atravessam a obra e que resultam do facto de este autor/narrador revelar-se um leitor consumado e insaciável”.

O livro da dor é uma colecção de cartas da autoria de João Albasini, recolhidas e editadas por Marciano Nicanor da Sylva, quem assina o prólogo do livro. Partindo de um plano real, em que o autor exprime as suas amarguras, sempre num tom melancólico, a confundir-se com tédio, frustração, apresenta elementos textuais construtores do que Roman Jakobson considera literariedade, isto é, o que faz de um texto uma obra literária. Sem a informação prévia de que o livro reúne um conjunto de cartas, muito provavelmente seria classificado à luz dos preceitos poéticos, narrativos ou mesmo dramatúrgicos. Afinal, o que o livro possui de potencialidade lírica, igualmente, esbanja em recursos indispensáveis à narração e aos monólogos. No livro reconhece-se um sujeito amuado, num diálogo solitário, todavia à espera de ser correspondido pela sua amada, quem, tivesse dado ouvidos às loas do autor, teria impedido a materialização de um exercício que fica para história da literatura moçambicana. Assim começa O livro da dor:

Tenho de mim para mim, muito no íntimo do meu peito, que te perdi para sempre, que nunca mais me farás a esmola de me olhar e muito menos a caridade de me ouvir a defesa; mas também creio, piamente, como Cristão, como também lial e sincero que sempre fui, que um dia farás justiça a êste desgraçado que, perante a calúnia, a intriga, o Destino inclemente se confessa vencido e te pede perdão sem ter de quê. O Destino das criaturas! Moralmente morri. Mataste-me (p.17).

À imagem do excerto acima, é o eu de quem sente a dor de um amor falhado que predomina nesta obra secular de Albasini. No texto, de forma aturada, o sujeito de enunciação confessa os danos causados pela atitude da sua amada:

Que me não amas – acredito – mas não é também razão para me teres ódio, para me não falares. Era o bastante dizeres: «Mwambongolo, gosto de brincar contigo mas não quero casar contigo». E eu sofreria no meu amor próprio e por ver desfeito o meu sonho, mas não atingiria estes paroxismos de agonia que proveem do teu ódio, do propósito firme de me não falar, não me dizes o mal que te fiz (p. 34 – 35).

João dos Santos Albasini, Nwandzengele, nasceu a 2 de Novembro de 1876 e morreu a 15 de Agosto de 1922, tendo sido sepultado no cemitério público de Lourenço Marques, hoje Maputo. Como muitos membros da sua família, incluindo o filho Carlos e o irmão José, morreu vítima de tuberculose, a três meses de completar 46 anos de idade.

 

*Parte deste artigo foi extraído de um outro, em construção.

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