O País – A verdade como notícia

«Walks of Life»: tradutor de memórias!

Por: Cremildo Bahule

2023 foi um ano de muita música. Muito palco. Que assim seja para o ano que estamos a iniciar. 2024, almejamos, que seja de muita música moçambicana, sobretudo do jazz moçambicano. Timidamente, queremos esquecer da sonoridade silenciosa à que covid-19 nos remeteu. Embora com uma parca publicação de discos conseguimos ter boas edições que fazem jus à música moçambicana. Sobretudo no campo do jazz. De modo particular, quero fazer referência ao disco de João Cabral: «Walks of Life» (2023) – um disco de audácia, empatia e esperança –, depois de «River of Dreams» (2009).

Qual é o móbil para um guitarrista de jazz fazer um intervalo de catorze anos entre o primeiro e o segundo disco? Livremente da resposta, temos uma realidade musical que caracteriza o «Walks of Life»: as músicas têm uma sintaxe rítmica tão marcante quanto a estruturação harmónica; não é um disco que responde aos frenesis do jazz-standard e palacetes do jazz como um mapa harmónico que obedece, apenas, ao algarismo de modificações propositadas de acordes por cadência com o fim premeditado de traçar súbitos extensos para justificar que o jazz é isso: improvisação.

Para ser mais penetrante no «Walks of Life» divido, propositadamente, o meu olhar em duas análises: linguística e ritmica. A segunda precede a primeira na obra musical. O elementar é fazer o ritmo e depois escolher o título. Quiçá, se fosse o contrário! [Um detalhe: embora João Cabral tenha ascendência Guitonga, matriz étnica e linguística dos seus progenitores, é no Xichangana, pela nascença, que subjaz a sua pertença. Ele pensa, flui e edifica o substracto da sua criatividade em Xichangana e, se necessário, traduz. O que seria de Moçambique sem esta multiplicidade linguística]?

Primeira acepção: titulação musical. Os títulos têm uma marca especial: funcionam como uma partilha de realização de homenagens há personalidades que fazem parte da trajectória, substancial e musical, de João Cabral: «See You Forever Dad» (dedicado ao pai) e «Mama Wangu» (dedicado à mãe). Nestas duas músicas, a homenagem é prestada com elementos característicos de guitarra, particularmente a combinação da guitarra com vozes (Xixel Langa & Angelina Mbule) para o primeiro tema e com percurssão (John Hassan) para o segundo tema. As duas melodias, evidentemente, têm características muito diferentes, pelo facto de a primeira possuir um andamento alvoroçado, trechos com dinâmica em fortíssimo e lances de teclados (Dylan Roman), e a segunda ter um funcionamento mais paulatino, e apresentar pequenos momentos dinâmicos de voz (feita pelo próprio João Cabral; característica vocal ouvimos, também, nos temas: «Salute to Suzete», «My Lament»). Apesar dessas diferenças entre as músicas – «See You Forever Dad» (dedicado ao pai) e «Mama Wangu» (dedicado à mãe) –, ambas possuem um elemento em comum: é explícita a articulação entre a disposição da guitarra e a matriz cultural do universo que inspira o disco «Walks of Life»: títulos, generalizando, que fazem referência ao idioma primordial de Cabral, o Xichangana. Se o disco tem um título em Inglês e quase a maioria dos seus temas estão nessa língua porque persevero em fazer referência ao Xichangana? Existe uma resposta evidente: os significados de entendimento, positividade, ter os caminhos abertos – que é característico em nós – são justificados em língua autóctone, neste caso o Xichangana. Mas, será isso relevante na loquela do jazz? Mais uma vez, partilho uma resposta evidente: sim, é. Sabendo que o jazz, na sua essência, é premeditado em língua inglesa, é importante que João Cabral defenda o seu direito linguístico que surge ao imperialismo filológico que domina o jazz. Evidentemente, este facto por si só, não faz com o que jazz se torne genuinamente moçambicano por ter títulos em Xichangana. Este exemplo, que reclama de mais pressupostos de comprovação, revela que o músico tem o direito de falar e tocar livremente na sua língua independentemente de seu estatuto e da classe que o jazz pode dar a essa matriz linguística. Todavia, apesar da análise justificada que conflui no conceito de «reivindicação de direitos linguísticos por meio do jazz» é preciso olhar esta característica numa perspectiva progressista, com muitos aspectos de sua sustentação crítica que se fundamenta na conservação e defesa apologética de se dedilhar frases e nossa língua como que a prescrever um dicionário musical do jazz moçambicano. Esses detalhem vêmos, também, nos temas «Cunhada Jorgina» e «Marrapassada-Tell Me What You Want».

Segundo comentário: a sonoridade. Ela subjaz na rítmica tradicional de Moçambique. [Ai se não fosse, eu despedaçava e mandava para o monturo como fiz com o disco «Isac Project»). Percebe-se a incorporação do xigubo (e.g., «África Minha Essência»), da makwaela (e.g., «Urban Soul»), da timbila (e.g., «Sem Esperança-Hopeless») e da marrabenta (e.g., «Cunhada Jorgina»). Agrupar essas ambiências no jazz já é uma das componentes renovadoras para as composições que inspiram o «Walks of Life». [Atenção: meu ouvido – de um professor da 4.ª Classe – permitiu que ouvisse, mesmo que de forma leve, traços desses ritmos tradicionais. Se estou equivocado, usarei um palito de fósforo para limpar os meus tímpanos e em seguida aceito me retratar]. Esse toque de claves originárias dos ritmos tradicionais moçambicanos em confluência com claves e ritmos sequenciados da fala tornam-se numa abordagem específica para convencionar a memória cultural de fazer jazz em Moçambique. Essa é uma característica peculiar que chama a minha atenção: a apresentação de músicas instrumentais inspiradas nesses blocos e manifestações populares que enfatizam a nossa moçambicanidade. O apogeu dessa característica está na música «Marrapassada-Tell Me What You Want» (a minha predilecta do disco). Fazer jazz inspirado nesse universo é abrir espaço para a realização de transmissão das frequências dos instrumentos e ritmos tradicionais. Óbvio, que isso não pode nos forçar a chamar jazz puramente moçambicano. Ou de moz-jazz como cunhamos no nosso cancioneiro nacional. Porém, é um elemento qualificador. Ajuda a definir o cânone.

Num sentido particular «Walks of Life» é derivado das tradições linguísticas se assumirmos que a língua, como partilho na primeira apreciação, é um modelo artístico-cultural que pode ser um substracto elementar dessas músicas, que têm na clave do Xichangana, sua autêntica memória: ponto central da respectiva estrutura musical. Entender o funcionamento particular da linguagem musical de Cabral é respeitar os códigos e as convenções específicas expostas no universo de «Walks of Life». Evidentemente, este disco não é o pináculo da definição qualitativa do marco idiomático do jazz que se quer moçambicano. É, mais um elemento discográfico que nos auxilia na percepção de uma configuração rítmica que o torna tão importante quando idealizamos desenhar o mapa histórico do jazz de cariz moçambicano que é, igualmente, alicerçado pelos seus contemporâneos (e.g., Jimmy Dludlu, Valter Mabas, Zoco Dimande, Elcides Carlos). Além disso, por meio da relação com a linguagem sonora, há a possibilidade de se observar como os arranjos sugerem paisagens, cenas, e outras imagens, a partir da escolha de timbres (e.g. Xixel Langa, Sílvia Sol e Onésia Muholove), variações de dinâmica e andamento (e.g., Childo Tomás). Assumir que esta é uma obra concebida a partir de um carácter visual que se confunde com a interface do código verbal, que é possível perceber a sua influência na construtibilidade da sintaxe musical, cuja análise permite a identificação de elementos como: a recorrência do tema musical, as citações musicais e o papel narrativo das modulações na música. O código musical, por meio do título de algumas das músicas, também, favorece a construção de imagens, uma vez que acaba funcionando como um guia inicial de leitura de todo «Walks of Life».

Cesso o diálogo sobre «Walks of Life» assumindo que as músicas deste disco articulam-se como um texto cultural pela sua interface e se estabelecem entre diferentes esferas sonoras, verbais. O texto sonoro – entenda-se melodia cantada – torna-se mais complexo com a incorporação de elementos musicais do cancioneiro tradicional que representam o substracto linguístico, cultural e identitário de João Cabral. A incorporação desses elementos no jazz é identificável nas harmonias escolhidas para os arranjos e nos círculos característicos dos súbitos arpejos de guitarra que são elementos dos blocos da musicalidade e da cultura popular, que surgem por meio de algumas escolhas feitas por Cabral para compor a sua identidade musical. «Walks of Life» (2023) consubstancia-se no atalho das várias discografias que entram, por mérito, nos anais do jazz moçambicano. Por isso, sem sustos digo: valeu a espera!

P.S.1.: o encarte (fotos, ficha técnica e fracção descritiva) – de «River of Dreams» (2009) continua sendo o mais arrojado e encantador. Oh, João Cabral, nos poupe de esperar mais catorze anos para o terceiro disco. Sabes que em África a separação da procriação obedece intervalos mínimos: dois a três anos!

P.S.2.: recomendo a aquisição, pois o artista vive da sua faina musical, do álbum «Walks of Life» em formato físico ou digital (www.joaocabral,usic.com).

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos