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Vigia de corpo presente

Por Valério Maúnde

É segunda-feira num país sem nome nem coordenadas geográficas. Sabe-se apenas que existe. Na Escola Secundária Futuro da Nação, o clima é de apreensão por parte dos alunos, que se preparam para prestar provas trimestrais. Na sala 22, está a turma B da 9a classe, perante o enunciado da prova de Português. Nos rostos dos alunos, semblantes variados, uns de indiferença, outros de dúvida e até de espanto, para não dizer assombro, como é o caso da Neima, rapariga de 15 anos de idade, que se vê incapaz de avançar com qualquer resposta após a escrita do seu nome, número e turma na folha de respostas.

Neima lê o enunciado, faz pausa, sacode a cabeça e torna a ler. O efeito é igual: confusão. A estudante olha primeiro ao seu redor e nota que os seus colegas vão preenchendo a folha de respostas e aflige-se, por, aparentemente, ser a única em completo estado de inércia. Neima lança então um olhar de socorro para a secretária do professor, na esperança de que um provável contacto visual revele a sua aflição e faça o professor aproximar-se, para averiguar a razão da inquietação. Infelizmente, os olhos da aluna tombam como cajus maduros sobre a terra, ou, se preferirem, não logram cruzar-se com os do professor Januário, que vigia a prova de corpo presente, mas de alma, espírito e atenção totalmente ausentes, arrebatados que foram pelo fascínio das redes sociais.

Desamparada, Neima recolhe os negros olhos marejados e, pela enésima vez, torna a lançá-los sobre o enunciado, esforçando-se em decifrar o paradoxo diante de si, e, não conseguindo solucioná-lo, culpa-se por ser incapaz de compreender o que está estampado na sua folha de perguntas.

A adolescente passa da culpa para a dúvida. Começa por duvidar da sanidade da sua vista, esfrega os olhos, depois duvida dos seus conhecimentos, tem comichão na cabeça, por fim, enche-se de uma tímida coragem e ousa duvidar de que o enunciado da sua prova queira dizer o que diz.

Por cima do quadro negro, os ponteiros do relógio seguem em ininterrupta marcha. Farta de pensar e sentir sem dizer, vendo o tempo correr, levanta o braço, pedindo a atenção do professor. Contrariado, este pousa o celular na secretária e responde monossilabicamente, como quem poupa energia para mais importantes e gratificantes ofícios.
– Sim!

Receosamente, Neima expõe a sua inquietação:
– Professor, aqui na prova está escrito assim: “O texto da sua prova apresenta-se em estrofes e versos e obedece…”
O professor interrompe-a impacientemente:
– E depois?
Gaguejando, a rapariga esclarece:
– É que, para mim, este texto não tem estrofes e versos.

Mais uma vez a aluna é interrompida pelo professor, que toma a imaculada atitude com afronta.
– Menina, estás a dizer que o enunciado está errado? – E, dirigindo-se agora à turma inteira, proclama, em tom áspero e zombeteiro – Ouviram, meninos? A vossa colega acha sabe mais do que as pessoas que fizeram a prova.

A turma inteira desata em gargalhadas e vaias. Envergonhada, a pobre aluna tapa o rosto com as duas mãos, apoiado os cotovelos sobre a carteira. Gotas salgadas vão humedecendo as folhas de papel, escorrendo sobre as linhas brancas sedentas de respostas.

Januário levanta-se de rompante da secretária, ou se quiserem, do trono das incontestáveis verdades e, pela primeira vez desde que a prova se iniciou há quase meia hora, lê finalmente o enunciado, com o dedo indicador direito dando cadência à leitura.

– “O texto da sua prova apresenta-se em estrofes e versos…”
Januário interrompe de súbito a leitura, como se uma trave lhe tivesse atravessado abruptamente a garganta, e, ao contemplar a mancha gráfica do texto, estremece, sua frio, baixa o dedo de autoridade e esconde o rosto por trás da folha, dando-se conta de que o texto que não se dignara ler antes de distribuir pelos alunos é, afinal, uma prosa, nem de longe poética.

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