Começo por uma célebre e remotíssima “boutade”, do Ungulani Ba Ka Khosa, proferida numa entrevista à brasileira Cremilde de Araújo Medina: “A Charrua é a melhor revista literária do mundo!”. Esta frase denuncia a personagem Ungulani, um verdadeiro iclonoclasta, um destemido provocador, um desarrumador de ideias. Um homem que gostava de pôr questões – dizia-o à época -, que não tinha respostas, mas fazia perguntas e, de permeio – digo-o eu -, lançava frases como estas. Estas e outras. Recorro ao Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, que tenho à ilharga, para acudir os incautos: “Boutade”: “tirada espirituosa ou engraçada”, “pensamento ou dito subtil, original e imprevisto que freq. contraria propositadamente a verdade” (actualizei um dos vocábulos para ortografia anterior ao acordo de 1990.)
A memória mais remota que tenho do Ungulani é essa mesmo. A de um provocador. É preciso dizer que estamos a falar de meados dos anos 80, em plena I República, com Samora Machel no palco da História, antes da sua tragédia e do fim de um tempo provavelmente único, que foram os primeiros anos da independência. (Éramos jovens e destemidos, gostávamos de polemizar, de discordar, de pôr em causa. Era um tempo em que manifestar uma discordância era muito complicado, mas nós atalhávamos por esse caminho. Era difícil não se seguir o receituário da revolução, havia a reeducação, havia o aparelho ideológico do partido, repressor de ideias que não coubessem no escopo e no ideário “colectivo”, havia um inegável absolutismo. Mesmo assim surgiu uma geração de iconoclastas e a Charrua significou isso mesmo: desalinhamento, sedição, sublevação, desaparelho, desamigo, desajeito ou desafeição em relação aos ditames da época. Khosa, como os seus companheiros, desacfetos do regime, enjeitados até de certo modo, faziam o caminho da contestação. Recusando, inclusive, glorificar o tempo da luta armada que não aparece nos escritos desta geração, pese embora fosse uma prescrição impostergável à época.
Lourenço do Rosário, numa entrevista que me deu para a “Gazeta” da revista Tempo, em 1989, dizia-me, confirmando o que asseverei acima, que a revista funcionara como um instrumento de contestação e de procura de afirmação de um grupo pertencente a uma geração “marginalizada”, que não beneficiava – nas palavras dele -, “da protecção da máquina”. Lembrou-me, a propósito, um termo usado pela jornalista brasileira Cremilda Medina, que classificou a Charrua, naquele contexto, como um “projecto maldito” e ele justificava aquela asserção: “O grupo esteve em contradição com o establishment”. Indubitavelmente.
Ungulani Ba Ka Khosa: “Com toda a sinceridade, digo-te que a Charrua foi um encontro de indivíduos frustrados, que não tinham abertura, digamos, em termos de imprensa, de publicação dos seus textos. Cada um possuía a sua trajectória. Uns à partida já tinham publicação dispersa, outros não. Encontrámo-nos e fizemos a Charrua. Mas não houve filosofia. A publicação era aberta, totalmente ampla, sem preocupações estéticas para cada género. E cada um com a sua filosofia.” Estas palavras são de Setembro de 1990, numa entrevista que lhe fiz, para o livro Os Habitantes da Memória.
Conhecera-o em 1984, justamente à volta da Charrua, que fora lançada em Junho daquele ano. Conheci-o na altura em que conheci os outros charrueiros. Há uma fotografia, da Cremilde de Araújo Medina, no seu livro Sonha Mamana África (título cunhado pelo Calane da Silva) onde estamos (quase) todos. Parece uma equipa de futebol: uns de pé, e outros sentados num banco de jardim: o Ungulani Ba Ka Khosa, o Marcelo Panguana, o Hélder Muteia, o Juvenal Bucuane, o Eduardo White, o Pedro Chissano. Eu e a Olga Pires estamos na fotografia por acaso. Eu não era da equipa dos fundadores da Charrua. Participei da Charrua, mas não a fundei. Ali estavam os fundadores. (À data daquela fotografia o Tomás Vimaró estava já em Lisboa, como correspondente da AIM). Eles eram todos mais velhos. O Ungulani tem, na altura da fotografia e da “boutade” que ilustrava a entrevista, 29 anos, eu tenho 19 – um miúdo.
Havia a tertúlia na cave da Cindoca. Eu bebia coca-cola, participava passivamente das jornadas etílicas que ali se praticavam, por vezes ou quase sempre, de forma intrépida e desassombrada. Eu não bebia nem fumava. Só mais tarde viria a dar-me conta dos avatares de Baco, ou Dionísio, o deus grego do vinho. Mas gostava de ali estar. A malta da Charrua era tudo jovem rebelde, a ela se juntavam, por vezes, o Aníbal Aleluia, ou o Cyprian Kwilimbe, para lembrar duas personagens que abandonaram este reino (White, um dos mais desabridos do grupo, também abandonou este reino). Aleluia escrevia para a revista; Kwilimbe, divulgador obsessivo de Godido, e de João Dias, participava da tertúlia. Havia outras personagens. O Luís Carlos Patraquim antes de zarpar para Lisboa era um assíduo da AEMO e animava a “Gazeta de Artes e Letras” na vetusta revista Tempo. O Calane da Silva ou o Gulamo Khan, que morreu em 1986, em Mbuzini. O Rui Nogar era o secretário-geral e praticava a sua irrepreensível bonomia. Como explicar a Charrua sem a complacência do Rui Nogar? O Albino Magaia que o sucederia. Ou a Fátima Mendonça. Ou o Júlio Navarro. Eu sei lá! Há tantas figuras, que não cabem todas nesta breve homenagem. Nem todos eram dados à espuma da cerveja. Mas à conversa, sim, estávamos todos implicados. Naquele tempo havia tertúlia literária e disso tenho saudades:
Por ali desembarcavam escritores ou ensaístas, oriundos de outras geografias. Recordo-me do chileno Francisco Coloane, referi acima a brasileira Cremilde de Araújo Medina, lembro-me do ensaísta português Arnaldo Saraiva, que nos falou, numa noite memorável, de Carlos Drummond de Andrade, que ele antologiara e estudara e que conhecia pessoalmente. O Mário Pinto de Andrade frequentava a AEMO quando cá estava. Eu sentei-me com ele no mesmo banco da fotografia que aludi e o ouvi tantas vezes. O Manuel Ferreira trouxe o seu Reino de Caliban. A Noémia de Sousa. O próprio Rui Knopfli e o Eugénio Lisboa. O José Saramago. Recordo-me que, anos antes de eu lá aterrar, o Pepetela visitara a AEMO. Só o conheceria em Londres, em 1992, e travámos a nossa primeira conversa lado a lado num mictório, num dos intervalos de um encontro organizado pelo King´s College, onde pontificava o Hélder Macedo, que me convidara por indicação do Eugénio Lisboa.
O Khosa era um dos mais ingentes participantes daquelas memoráveis tertúlias. Tinha lido, tinha bagagem literária. Falava de Jean Paul-Sartre, animavam-lhe os existencialistas franceses. Citava Roland Barthes, um dos emblemáticos da “French Theory”. Falava dos latino-americanos, do Gabriel García Márquez (parece-me incontornável O Outono do Patriarca) ou do Mario Vargas Llosa, o seu predilecto, entre outros. Tinha lido A Conversa na Catedral e citava aquele início fabuloso com aquela frase que o pudor que a revolução impunha a tornara irreproduzível. Mas ele haveria de usar o mesmo vocabulário truculento num conto em que alguns viram o que lá não estava: o vitupério da pátria. Quando li A Festa do Chibo pensei nele. Ele falava do grande Ernest Hemingway, que lhe ensinara a arte do diálogo. O Ungulani é dos poucos prosadores moçambicanos que sabe fazer diálogos. Muitos ínclitos escritores nossos vacilam, oscilam, cambaleiam quando tem de pôr as suas personagens a dialogar. Outro grande mestre americano que concitava o entusiasmo do Ungulani: William Faulkner, o autor de O Som e a Fúria. Por conseguinte, o Ungulani Ba Ka Khosa era e é um interlocutor culto. Um escritor com referências. Um homem que lera. Um escritor tem que ler para saber escrever. Não é possível ser-se escritor sem se ler. Um escritor é, antes de tudo, um grande leitor. Por muito que se acredite que a inspiração é uma coisa insofismável – algo que me põe nos antípodas e pronto para o reproche. Há aí uma malta dissoluta que acredita nisso.
O Ungulani escrevia contos, tinha e tem uma imaginação esquizofrénica, um poder efabulatório e encantatório, uma grande capacidade narrativa. Tinha e tem vocabulário. Tinha e tem a História como bagagem. Citava a Agustina Bessa-Luís: “A História é uma ficção controlada”. Tenho isto na memória. Tinha a experiência da Sibéria moçambicana, como ele chamaria ao Niassa. Fora lá onde começara a escrever. Ali residia um grande universo: as grandes contradições da época jogavam-se no frio distante do Niassa. Mas também escrevia contos urbanos, de uma cidade de Maputo sitiada. Escrevia sobre o tempo do Imperador. Discutíamos aquilo que vinha no JL, as entrevistas do Lobo Antunes, a escrita do Cardoso Pires ou do José Saramago para falar de autores portugueses. Ou do Dinis Machado. Ele citava O que diz Molero. Falávamos de escritores brasileiros. Do Jorge Amado que abraçámos em Lisboa nos intervalos de um congresso, ao qual fôramos com entusiasmo irrepreensível e alento quase juvenil.
O tempo esfumou-se numa voracidade incrível. Mais de três décadas. Entretanto, dispersamo-nos. Eu fui estudar lá fora, retornei cinco anos depois, mas deixei de frequentar a associação, que se havia transformado num santuário de bebedores. Lancei, aliás, uma diatribe contra isso, num trocadilho que os meus velhos companheiros se viram ofendidos. Com razão. Excessos de juventude e abundante uso de ironia. Tudo isso trouxe-me alguns amargos de boca, mas não me queixo. Tenho uma admiração sem hesitações, aliás faço aqui testemunho disso, pela geração da Charrua e uma incólume lembrança, à qual pago aqui o meu tributo.
Ungulani Ba Ka Khosa tinha 30 anos quando, em 1987, se estreou com uma obra seminal Ualalapi, numa colecção igualmente iniciática da Associação dos Escritores. O tempo demonstrou que, tanto este livro, como o que inaugura a mesma – Amar sobre o Índico, do Eduardo White -, estavam, indubitavelmente, na secção errada. Sobretudo este livro, obra que lança, com o livro de Mia Couto, Vozes Anoitecidas, editado no ano imediatamente anterior, a nova vaga de ficcionistas moçambicanos. Moçambique era, até então, uma nação de poetas. Dizia-se que em Angola estavam os ficcionistas e em Moçambique os poetas. Eles derrubam essa espécie de anátema. Antes disso, que tínhamos? Godido de João Dias (1952), Nós Matámos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana (1964), Portagem de Orlando Mendes (1966) ou Contos e Lendas de Carneiro Gonçalves (1975). Não avulta, até então, prosa de ficção narrativa, na literatura moçambicana. Todos os títulos supra-citados prescreviam obras únicas. Não havia, entre nós, um escritor que tivesse publicado na sequência de uma primeira obra de ficção um título ulterior. Isso acontecerá justamente com Ungulani Ba Ka Khosa e Mia Couto, em 1990, quando Khosa publica Orgia dos Loucos e Couto dá à estampa Cada Homem é uma Raça.
Quando eu editava a revista Índico pedia-lhe colaboração. Ele recolheria, no entanto, muitos desses textos no livro Cartas de Inhaminga (2017), o que me regozija. Acaba de publicar Gungunhana (2018), onde Ualalapi é acompanhado do inédito As Mulheres do Imperador, com o qual encerra o temário ligado ao Império de Gaza e a Ngungunhane. (A grafia no título desta edição foi imposta pelas circunstâncias editorias.) É ainda autor de Histórias de Amor e Espanto (1993), Os Sobreviventes da Noite (2005), Choriro (2009), O Rei Mocho (infanto-juvenil, 2012) e Entre Memórias Silenciadas (2013). Premiado aqui e no estrangeiro, publicado lá fora, não goza da reputação que merece, a despeito de Ualalapi figurar entre os melhores títulos do século XX africano. O nome e a escrita de Ungulani Ba Ka Khosa mereciam outra fortuna em termos de projecção internacional. A sua verve é indubitável, a sua imaginação telúrica, a sua escrita por vezes vertiginosa, ou mesmo voluptuosa. Disse-lhe uma vez que o seu talento não tem tido o marketing que o devia ter transposto para um patamar muito mais elevado do lugar em que está. Tem obra, tem nome literário muito forte – Ungulani Ba Ka Khosa -, tinha e tem um discurso dos mais originais, indagadores e perturbadores, no seio dos que escrevem. Chama-se Francisco Esaú Cossa, nasceu em Inhaminga, a 1 de agosto de 1957.