Por: Teresa Manjate
‘Kutchinga’ é um documentário do cineasta Sol de Carvalho, com a produção de Jacinta Barros e Rui Simões. Contou com a consultoria do antropólogo Elísio Jossias.
O filme tem a duração de uma hora e decorre todo em Inhambane. A paisagem é soberba e realista: as casas feitas de palma, ruelas estreitas e campos desnudos de culturas e ambientes domésticos com crianças e animais em quintais “comuns” e uma praia com águas límpidas, mas cercada de plásticos, indicador de problemas com a ecologia. O realismo do filme não poupou esta realidade.
O filme, de carácter etnográfico, isto é, que estuda pessoas, culturas a partir de uma análise profunda sobre os comportamentos, as crenças, as vivências e outras características da comunidade. Por outras palavras, a pesquisa etnográfica estuda os padrões mais previsíveis das percepções e dos comportamento das pessoas na sua rotina diária.
O documentário versa sobre o ritual ‘‘Kutchinga’’ praticado na região Sul de Moçambique, concretamente de Inhambane, embora seja comum em muitas outras zonas do País. O filme apresenta, pela voz de “actores” – informantes-chave – o ritual na perspectiva de mulheres, isto é, de mulheres que enviuvaram e tiveram de passar pelo ritual. Melhor seria dizer que em termos de representatividade fala de mulheres que enviúvam e têm de passar por este ritual. Na verdade, o ritual é para homens e mulheres que enviúvam.
O ritual é complexo. No conjunto das práticas, as mulheres ou homens que perdem os seus parceiros são obrigados, seguindo os preceitos de uma tradição secular, a manter relações sexuais com um familiar do finado ou da finada ou alguém contratado para se “purificar” o homem, a mulher e as suas respectivas famílias e, em última instância, a comunidade mais próxima. Mas não é o acto sexual que está em jogo: são os actos subsequentes: a “lavagem” da casa e dos filhos e a reintegração na vida familiar e comunitária.
Ao longo do país, existem rituais de purificação, porém com outras denominações. No centro do pais existe o kupita kufa. De acordo com Colher (2017) em “Cultura, em moçambique: um olhar sobre o ritual de purificação de viúvas? pita kufa e a prevenção do AIDS na província da zambézia em morrumbala”, os dados obtidos nas entrevistas no distrito de Morrumbala, literalmente a palavra pita kufa significa “afastar o morto“, ou seja, pita = afastar e kufa = morto. Este processo de “afastar o morto” é feito através da prática de uma relação sexual ritual após a morte de qualquer membro numa família e que, por norma, deve ser consensual tendo em conta o tipo de ritual a ser realizado e a disponibilidade do purificador.Ainda segundo Colher (2017, op. cit), este ritual de purificação que envolve relações sexuais assenta na crença da existência de dois mundos: dos vivos e dos mortos. Esta percepção determina a existência de um ritual de passagem que marca a separação entre os vivos e morto, melhor, entre a vida e a morte. Na prática, de acordo com os entrevistadospara a realização do trabalho de pesquisa “Cultura, em moçambique: um olhar sobre o ritual de purificação de viúvas? pita kufa e a prevenção do AIDS na província da Zambézia em Morrumbala”, se as pessoas vivem uma vida comum e a partilham nas suas diversas formas, a separação por morte cria uma “condição impura” e este “estado de impureza” deve ser mantido fora do convívio da família,através da prática deste ritual. Este acto, considerado sagrado, mantém as pessoas puras e afastadas da morte e do isolamento causado pela morte de uma pessoa importante da família.
Do filme
O filme de longa-metragem é um documentário, filmado em bairros da cidade de Inhambane é arquitectado a partir de relatos e histórias pessoais de cinco mulheres e dois homens. Na verdade, do jovem que também aparece como “actor” –informante, não aprecem evidencias de ter enviuvado. Afinal, é um profissional contratado de forma recorrente para o acto de purificação, por isso parece ser um conhecedor da prática. O depoimento feito “desdramatiza” a prática, ao mesmo tempo que retira a sacralidade do ritual, por causa da linguagem que usa e das descrições que faz. É aparentemente útil para a percepção da prática, porém não agrega valor. Teria sido pensado? Com que propósito?
O documentário não tem narrador presente ou em voz off. Os receptores/leitores percebem as lógicas e as dimensões filosóficas a partir das vozes dos entrevistados.
O filme inicia com a apresentação dos sete entrevistados: cinco mulheres e dois homens que se apresentam: dizem o nome, o lugar e o ano em que nasceram (quando sabem), o nível de escolaridade, quando e como enviuvaram. Só um entrevistado não tem experiência de viuvez, mas tem opinião sobre o que e como acontece, é Celso Jone, jovem de 25 anos, desempregado e sem “rumo na vida”. Adriano Mbondola,outro homem “actor” e informante-chave, tem valências em termos de conhecimento, mas não explora com a mesma profundidade das mulheres a perspectiva masculina como viúvo que é sobre a prática ritualística para ele, como homem.Fala da condição da sua cunhada, viúva do irmão mais velho, com quem teve de realizar o ritual.
As mulheres, com idades compreendidas entre 62 e 24 anos, vão narrando as suas histórias, a viuvez e o processo de purificação. Só uma das mulheres entrevistadas não passou pelo processo do Kutchinga. Esta sente a necessidade de dizer que está tudo bem com ela, apesar de ter perdido um filho. Mas que tem netos de outro filho, mas que está tudo bem. Que leituras deste depoimento? Linear? Entrelinhas?
No documentário, através das vozes das mulheres, percebem-se muitos aspectos culturais da comunidade Twsa: (i) as relações familiares, particularmente o papel do pater familiae(o pai da família, pai, tio ou avô) (ii) as dinâmicas dos casamentos – o lobolo, o casamento pelo registo e o religioso ou ainda o informal “união de facto” (uns arranjados, outros por iniciativa própria, mas, mesmo assim, condicionados pela vontade e poder patriarcal, do pai, do marido ou dos sogros, que se adivinha sogro); (iii) o valor das tradições.
Percebe-se, através do documentário, fundamentalmente que o ritual serve para manter a tranquilidade nas famílias, isto é, saúde e aceitação e integração na família e na comunidade. Não se fala em herança (bens materiais), pois, aparentemente, as mulheres entrevistadas são pobres e de alguma forma, autónomas, em busca de equilíbrio mais espiritual do que material. Na filosofia tradicional bantu, a mulher que se casa passa a fazer parte da família do homem com que se casa. Mantém a casa, os filhos e a continuidade não só do nome, mas das tradições. É nesta perspectiva que se justifica a percepção da ligação umbilical com as famílias do falecido, com mulheres vivas. Só assim se justifica o ritual para manter os laços de continuidade.
Pela dinâmica do filme, o nível de escolaridade não determina a aceitação ou não do ritual. Teria sido interessante tentar perceber como é que as coisas acontecem nas grandes cidades, onde há certamente rituais de Kutchinga.
Para além dos cenários e planos apresentados, dialogantes, em termos de perspectivas – cenários, planos e enfoques – o filme apresenta uma riqueza sem precedentes sobre o imaginário distante, rural ou periurbano e cheio de surpresas: afinal as mulheres afirmam-se, por exemplo fogem em busca dos seus sonhos; deixam o coração falar e seguem o que ele dita: fugir, namorar, casar. Mas, e sobretudo, investem na consciência em relação à tradição. A tradição é importante. Dem ela, nada acontece em conformidade com a vontade dos vivos.
O filme é rico por permitir explorar outros aspectos importantes: a educação (formal e informal), as relações familiares, a organização e filosofia em torno da percepção do feminino nas comunidades, as mentalidades em torno da educação (hoje senhoras, mulheres formadas) e o casamento das mulheres – por encomenda, por arranjo ou por vontade própria. Nisso o filme é rico, muito rico.
A postura das mulheres é um aspecto a ter em conta: em relação ao poder patriarcal e a (possíveis) rebeldias e afirmações individuais com a gestão das consequências dessa mesma ordem e poder.
Do debate
O documentário “Kutchinga” é importante e necessário por duas razões: (i) por ser um registo de património imaterial que poderá eventualmente cair no esquecimento, pelo na dimensão em que que hoje é praticado: (ii) por levantar questões importantes como as dimensões “submersas” da vida decomunidades inteiras.
O ‘Kutchinga’ tem esta designação no Sul de Moçambique, mas no Centro do país tem outras designações como Kupitakufa. São práticas que dizem muito, isto é, que têm um significado profundo para as pessoas: homens e mulheres. Regista-se nos relatos e narrativas a necessidade da prática para a limpeza e continuidade (na vida, na família, na comunidade). O respeito pela tradição distende-se no respeito pelas pessoas (individuais), famílias e comunidades.
Uma das entrevistadas dizia “Kutchinga” é vida, é voltar a viver. Para homens e para mulheres. Os dois homens entrevistados manifestam-se como conhecedores e como a “consciência” desta prática tradicional em Inhambane. Só uma mulher afirma não ter passado pelo ritual. Esta sente a necessidade de dizer que está tudo bem com ela, apesar de ter perdido um filho. Mas que tem netos de outro filho, mas que está tudo bem. Que leituras deste depoimento? Linear? Entrelinhas? Sem pretender ser freudiana, talvez seja a necessidade de contrariar um “estado das coisas”, isto é, à situação existente ou ao estado de coisas estabelecido, que poderá ser diferente pela personalidade que se pretende rebelde e de ruptura.
Outros aspectos poderão ser trazidos a debate consiste na necessidade de esta prática continuar a ser amplamente praticada e respeitada como acto essencial de alguém que ficou viúva (o). Que percepções? Que dimensões?
A crítica ao ritual centra-se na prática sexual implicada. Esta é questionada particularmente por causa da eclosão do HIV/SIDA, que certamente coloca em risco as mulheres e os homens enviuvados, por causa das contaminações em cadeia.
Numa perspectiva feminista, a degradação da imagem das mulheres é um facto. A mulher torna-se objecto na consecução do acto. Os homens também o seriam por, no seguimento da relação, se verem obrigados a realizar o acto. Mbondola afirma que primeiramente fugiu para a África do Sul e só mais tarde se predispôs a realizar o acto, como inevitável.
Como é que os homens viúvos encaram o kutchinga?
Em jeito de conclusão
Do conjunto das percepções, parece-me importante revisitar, com algum cuidado práticas da religiosidade não só de Moçambique. Entre o sagrado e o profano, pode-se correr o risco de tornar profano aquilo que para as comunidades é sagrado e sacralizar aquilo que para as comunidades é profano. Segundo Mircea Eliade , pode se comparar o abismo que separa as duas modalidades de experiência – sagrada e profana – lendo-se as descrições concernentes ao espaço sagrado e à construção ritual da morada humana, ou às diversas experiências religiosas do Tempo, ou às relações do homem religioso com a Natureza e o mundo dos utensílios, ou à consagração da própria vida humana, à sacralidade de que podem ser carregadas suas funções vitais (alimentação, sexualidade, trabalho etc.).
Para a consciência moderna, um acto fisiológico – a alimentação, a sexualidade etc. – não é, em suma, mais do que uni fenômeno orgânico, qualquer que seja o número de tabus que ainda o envolva (que impõe, por exemplo, certas regras (…) que interdiz um comportamento sexual que a moral social reprova. Esta visão permite perceber as discussões em torno deste acto de purificação.
O que é tradição? Como respeitar as tradições? Que direito se tem de questionar e abolir tradições? Na perspectiva da descolonização, que perspectivas adoptar para perceber, respeitar práticas sob o olhar dos demais questionáveis e criticáveis? Que repercussões terão as críticas veementes de práticas seculares – praticadas e respeitadas – nas vidas das comunidades?
Referências
COLHER, Cardenito Mário. Cultura, em Moçambique: um olhar sobre o ritual de purificação de viúvas pita kufa e a prevenção do AIDS na província da Zambézia em Morrumbala, in Argumentos – Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil, 2017.
ELIADE, Mircea.O sagrado e o Profano [tradução Rogério Fernandes]. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Biografia:
Teresa Manjate é pesquisadora sênior e docente do Centro de Estudos Africanos (CEA) e da Faculdade de Letras e Ciências Sociais (FLCS), ambos na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique, e doutora em Licenciatura Oral e Tradicional pela Universidade Nova Lisboa. Membro do Instituto de Estudos de Literatura Tradição – Patrimônios, Artes e culturas, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daUniversidade Nova de Lisboa (IELT) e da International Association of Paremiology (IAP). Faz pesquisa nas áreas de Literaturas Africanas; Literatura Oral; Conhecimento Local; Semiótica; e Cinema. É ativista em proteção dos Direitos Humanos da Criança, colaborando com a Santac (Rede da África Austral contra o Tráfico e Abuso de Crianças), e a Terre des Hommes, da Alemanha. Já colaborou também com a Organização Internacional das Migrações (OIM). Atualmente, trabalha na coleta, no registro e na catalogação de literatura oral em Moçambique, para a elaboração de um dicionário de símbolos; e no desenvolvimento de pesquisa em torno do cinema moçambicano.