– DE SUSTO MORREU A CRÍTICA
Ubiratã Souza
Peço que me perdoem. É preciso começar por reflexões de cunho teórico. Dizia o professor Ngoenha em certa ocasião que uma reflexão sem teoria é como uma casa a ser construída sem uma planta. Por isso é preciso iniciar dizendo que, por mais que tergiversem, debatam, se confrontem e discordem as teorias e os métodos, parece ser assente que há duas maneiras possíveis de que a literatura estabeleça relações com a história. Uma delas é atávica, a outra pode ser mais ou menos arbitrária. Consoante a cada possibilidade, modificam-se no detalhe os significados tanto da palavra “literatura” quanto da palavra “história”. Mas, vamos por partes.
A maneira atávica da literatura estabelecer relações com a história não depende exatamente da literatura, mas depende do olhar crítico que deve reconstituir essa relação através do ato interpretativo. Refiro-me exatamente à historicidade da literatura enquanto fenômeno social – essa relação já está dada por hereditariedade: assim a literatura nasce, fiel às características remotas de sua ascendência. Reconstituir essa relação entre literatura e história durante o ato crítico é só um objetivo.
Chamo esta primeira relação entre literatura e história de “atávica” justamente porque ela é inelutável, é a essência da própria existência da literatura na sociedade. Não é arbitrária. Ela prescinde de qualquer possibilidade de esforço por parte do autor. Qualquer discurso humano é impregnado de uma historicidade que lhe estimula, fomenta e limita organizações e articulações específicas, mesmo na dimensão da linguagem. Ainda que o escritor busque negar essa relação, ainda que o crítico a dispense durante seu ato analítico, ainda que os leitores não deem por isso, ainda que essa relação seja completamente irrelevante: ela está lá. E os mínimos detalhes de organização da língua (seja uma peculiaridade no posicionamento do aposto predicativo, por exemplo), poderão, algures, ser usados como índices que comprovarão a historicidade da literatura. Nesta acepção, a literatura assume uma significação social mais abrangente, que a inscreve como produto da relação entre seres sociais inscritos na história. A história, por sua vez, caminha em direção a significar mais que um campo de estudo, mas torna-se aquela História (que se grafa em maiúscula), precisamente o objeto de estudo da disciplina história (a “cadeira”, como se diz em Moçambique). Pronto.
Já a outra forma de relação entre a literatura e história, a que chamo de arbitrária, trata-se da forma mais comum, direta e óbvia de evidenciar essa relação. Esta, sim, depende totalmente da arbitrariedade do autor, e, quando está bem realizada na obra, o crítico não tem muito como nega-la. Trata-se, em suma, de como o autor pode se apropriar da história como elemento para a composição de sua obra. Neste sentido, a palavra “história” se refere somente à disciplina formalmente organizada (a cadeira) e suas infinidades de sequências narrativas. Seja como tema, seja como dados auxiliares e contextuais que servirão como pano de fundo a uma narrativa construída em primeiro plano, seja por referências esparsas ou por reprodução de discursos, a história, nesta relação arbitrária, pode aparecer em menor ou maior grau de intensidade dentro da obra – ou pode nem aparecer. É nesta acepção que passa a ser útil se referir a uma obra como “romance histórico”, por exemplo, pressupondo que existam outros romances que não sejam históricos: ou seja, existem romances que não se ocupam da apropriação da narrativa historiográfica como elemento de composição como aqueles ditos “romances históricos”.
Sim, isso mesmo: se foi possível acompanhar essa sistematização um pouco complicada que proponho aqui, aquele leitor arguto já deve ter emitido uma gargalhada porque ele, ledor assíduo de críticas de literatura, já percebeu que existem críticos que, quando se empenham em trabalhar sobre a relação entre literatura e história, nunca conseguem saber exatamente se estão a se referir à historicidade da literatura ou à história como elemento de composição. Então tropeçam nos próprios pés, abalroam-se todos com o texto literário, e regurgitam análises repletas de algaravias, que poderiam ser boas, até, não fosse a barafunda teórica (a ver, como o prof. Severino tinha razão?).
Chamo atenção disso tudo porque Saga d’Ouro é um romance que salta para cima da história como disciplina para se apropriar dela como elemento de composição. Insere-se na segunda possibilidade, portanto. É neste fito que a novíssima obra de Furdela se integra a uma antiga tradição no interior da literatura moçambicana. Essa tradição, ninguém há de negar, tem sua assomada no antológico Ualalapi (1987), de Ungulani Ba Ka Khosa. O próprio Khosa, inclusive, sumo pontífice do clero ao qual Furdela se integra, é o mais reconhecido escritor moçambicano a utilizar a disciplina história como elemento de composição em praticamente todas as obras (com exceção, talvez, dos contos do seu início, anteriores à sua atuação junto da Charrua).
Perfazendo a vol d’oiseau um arco que considere desde as primeiras manifestações literárias em Moçambique desde o final do século XIX, até o esfíngico e borbulhante presente da literatura moçambicana, não parecerá escusado dizer, sem pretensões sistemáticas, que a tomada da disciplina história como elemento de composição neste sistema literário costuma andar em círculos sobre dois grandes temas: o poder político nguni pós-Mfecane no sul (o Reino de Gaza), e o poder dos prazos no centro.
Em relação ao poder político do sul, a tradição literária é muitíssimo antiga, e tem como precursor alguém que, ao escrever sobre a guerra entre Portugal e Gaza, escrevia sobre o seu presente, e não sobre a história: está lá, no ano de 1891 o “Canto de Guerra Vatua (Assibinheia)” de Arthur Serrano em seus Sons Orientaes, enquanto Ngungunhane ainda imperava sobre marongas, machanganas e matsuas e demais súditos de toda a parte. O rol de obras que se integraram a esta tradição é imenso: no “Pós da História” (1934), de Rui de Noronha, o próprio Godido (1951), de João Dias, alguns poemas de Noémia de Sousa (1948-1951), o já citado Ualalapi (1987), A balada dos deuses (1991) e Os ossos de Ngungunhana (2004), de Marcelo Panguana, As andorinhas (2008), de Paulina Chiziane, só para citar alguns exemplos representativos. Recentemente, essa tradição foi reavivada com a trilogia As areias do imperador (2015-2016), de Mia Couto e o novíssimo As mulheres de Ngungunhane (2018), do mesmo Khosa. As formas como essas obras integram-se a esta tradição também são as mais variadas: desde obras cujo enredo concentra-se todo em construir personagens históricos ou até um simples “Bayete!” no verso de um poema de qualquer outro assunto.
Já o outro tema, poder dos prazos do centro, cito, por alto, três obras que me saltam sempre aos olhos: Choriro (2009), do mesmo Khosa, Dona Theodora e seus Mozungos (1998), de Maria Sorensen, e Os oito maridos de Dona Luíza Michaela da Cruz (2016), de Adelino Timóteo. Evidentemente, deve haver outras. Mas a assimetria regional em Moçambique reflete-se com peso nas dinâmicas editoriais, culturais e literárias – tanto é mais difícil para essas outras obras virem à estampa quanto é muitíssimo mais custoso que sejam conhecidas pela pesquisa desde o Brasil.
Pois Saga d’ Ouro inova justamente neste ponto. Desvia-se da solução moçambicana comum de perambular por entre os dois focos históricos de poder de Moçambique, o centro e o sul, e se dirige a outro tempo e a outra forma de poder, o Mwenemutapa. Quando faz isso, reconstrói a personagem histórica de GatsiRucere como um anti-herói, ou, como é comum na literatura moçambicana, constrói a figura de um “anti-chefe”, por assim dizer. Digo desse modo porque GatsiRucere é o oposto de tudo aquilo que uma idealização pode conceber como um grande líder político: é temeroso, pusilânime, desprovido de altura e imponência, profundamente reativo, ridicularizado, desviril, ansioso, imprevisível e perigoso. Não faz lembrar, ao acaso, o decadente, gordo, autoritário e orgíaco Ngungunhane de 1987?
É na oposição com uma personagem muito coadjuvante, Fungai, no início da obra, que podemos ver exatamente um ideal de chefe, dotado de “rara inteligência” e “compleição física”, capaz de se igualar aos bens de luxo da nobreza por via de seus próprios esforços como caçador, pescador e agricultor. Quase como um ideal liberal de homem empreendedor, aqui gravita em oposição a um líder enfraquecido, desprestigiado e completamente parasitário.
É justamente no ínterim dessa desfavorável comparação entre o Mambo – o soberano do Mutapa – com um súdito qualquer que surgem inúmeras ressonâncias e averbações dos shonas como terríveis invasores, cujo poder nunca teria sido aceite ou sequer assimilado pelas populações locais, colocadas sempre na iminência da revolta e da necessidade de uma dominação mais ostensiva. Acaso isso não será outra semelhança com aquelas obras que tratavam dos ngunis também como invasores e de uma população subjugada igualmente na iminência de uma rebelião?
Gostava muito de ter ensejo para analisar com cuidado toda a estrutura narrativa de Saga d’ Ouro, mas isso é pouco conveniente para um prefácio, afinal, o arguto leitor ainda há de ler a obra a seguir, não cai bem lhe revelar detalhes do entrecho. Em breve farei isso por maneiras científicas nalgum artigo: prometo publicamente. Não posso deixar de chamar atenção para mais dois pontos acerca dessa narrativa, no entanto.
A crueldade e o vexame ao qual GatsiRucere está constantemente exposto deriva muito de sua consciência de ser ele próprio o causador da desgraça e do perigo que corre agora o Mwenemutapa: é um líder fraco e ameaçado. A forma como, desde o seu zimbabwe particular, assiste a uma procissão de feiticeiros, mensageiros, forasteiros, ínfices e subordinados a chegarem constantemente para comunicar-lhe novas de desgraça faz lembrar, no horizonte de expectativas, aquele Édipo, ainda rei de Tebas que, quanto mais avança no sentido de conhecer as causas da desgraça da polis, mais se aproxima da sua própria condenação, já que ele é a própria causa da ira dos deuses. Os corvos, que revoam por toda a narrativa, surgem então como o terrível presságio de uma desgraça iminente, assim como, para um Prometeu acorrentado, serviam de castigo e fustigação a comerem-lhe o fígado. Ao contrário de Prometeu, no entanto, GatsiRucere não levou fogo à humanidade e, ao contrário de Édipo, não livrou a polis da ameaça da esfinge. GatsiRucere é tão somente um anti-chefe parasitário, que assume um poder sem poder e é incapaz de qualquer grande feito.
Saltando para o século XXI, aqueles corvos são hoje companhias constantes de qualquer transeunte pelas ruas de acácias. Esses corvos, crocitando na narrativa, fazem constantemente com que o romance se desprenda daquele passado remoto e nos traga de volta para um Moçambique atual. Surgem questionamentos, então. Por que convém ainda falar de anti-chefes parasitários causadores da desgraça do reino? Por que faz sentido que, no presente, falemos de chefes tirânicos capazes de escravizar uma população inteira ao seu domínio para que continuem no poder?
É aqui que se fecha o arco da crítica. Existem duas formas de que a literatura se relacione com a história: uma forma é tomar a disciplina história como um tema para a narrativa e a outra é destacar, criticamente, a historicidade da literatura. O romance de Furdela toma a história como tema para sua narrativa: Mwenemutapa. Pronto, essa é a primeira forma. Agora, pensemos na historicidade do romance de Furdela: ao chamar a atenção para formas despóticas, parasitárias e autoritárias de se desempenhar o poder, Saga d’ Ouro acaba se filiando a uma tradição da literatura moçambicana que reflete, desde sempre, sobre as mesmas formas despóticas, parasitárias e autoritárias de se desempenhar o poder político – ora, aqui já não falamos mais do passado, falamos mesmo do presente, não falamos mais do Mwenemutapa, falamos mesmo da República de Moçambique, 2019.
Atenção: a segunda forma de relacionar a literatura à história não depende do autor, mas do ato crítico. Pena não poder contar como acaba essa história. O arguto leitor gargalharia mais uma vez.
Hi itatlela wonana, vamakhweru! Khanimambo nikensile!
São Paulo, 21 de abril de 2018.
Agradeço ao grandioso professor Elídio Nhamona o Serrano e a constante interlocução sobre este assunto. Nyi bongile, mwama!