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Um “gato” cúmplice das famílias no consumo de energia da rede pública a custo zero

Mais de três mil milhões de Meticais é o dinheiro que a Electricidade de Moçambique (EDM) diz ter perdido nos primeiros seis meses deste ano devido ao roubo de energia. O valor das perdas é correspondente a quase 17 mil clientes que usaram a energia sem pagar no primeiro semestre. Não obstante, a prática continua e a EDM diz que está a apertar o cerco para evitar mais prejuízos. Nas próximas linhas, “O País” fala de esquemas de roubo de energia e os riscos associados.

Conhecem a técnica e sabem muito bem como implementá-la. Quase nunca falha. Chamam-lhe “gato” porque significa colocar no contador de energia dois fios à semelhança das barbas de um gato. Este é o animal usado para que muitas famílias na Cidade e Província de Maputo consumam a energia da rede pública a custo zero.

Entretanto, não basta saber como aplicar a técnica. É preciso conhecer muito bem em que horas do dia “o gato” pode entrar em acção para que ele (o “gato”) não seja caçado pelos técnicos da Electricidade de Moçambique e seja morto.

Os inimigos do “gato” são homens vestidos de uniforme cor de laranja. São eles que o caçam de todas as formas para evitar que a empresa pública some avultados prejuízos, em dinheiro.

COMO ISTO FUNCIONA?

Fomos ao bairro Chamanculo “D”, na Cidade de Maputo. As casas são de chapa e zinco encostadas umas às outras. Elas têm energia da rede pública, mas fazem o seu uso sem pagar. Aliás, algumas pagam pouco.

Zacarias Rafael, nome fictício, é chefe de um agregado familiar com seis membros. É guarda de profissão. Diz que o custo da vida lhe é pesado. Não consegue comprar energia todos os dias. Recorre à técnica do “gato” para suprir a falta de energia.

“Não consigo comprar energia todos os dias porque é cara. Só recebo cinco mil Meticais. Sou a única pessoa que trabalha aqui, em casa. Fazendo as contas, gastaria mais de dois mil Meticais só de energia. A solução é mesmo fazer alguns desvios. Estou ciente de que isto não é correcto, mas o que fazer? É a vida”, contou Zacarias Rafael, sem receios.

De acordo com Zacarias, não basta apenas roubar. Deve conhecer muito bem a técnica. Por exemplo, “uma vez que nós usamos os quadros antigos, abrimos o dispositivo e encaixamos lá dois fios, um preto e outro vermelho. Depois de fazer isso, o quadro desfaz o quilowatts que lá existem. Pára de contar e, automaticamente, o consumo de energia é de borla”, explicou a nossa fonte.  

O nosso entrevistado não é electricista. Explica como aprendeu a usar tal técnica. “Há um vizinho aqui, na zona (Chamanculo D) que fez o curso de Electricidade. Foi ele quem nos ensinou a roubar energia. Para ter tal conhecimento, tivemos que pagar dois mil Meticais, uma prestação única. Ele tem ajudado muita gente aqui, no bairro.”

Esta é a técnica usada pela grande maioria dos moradores do bairro. Não basta usar. Tem que saber em que momento usar, tal como explica, em anonimato, o jovem de 25 anos de idade, também morador do bairro.

“Por exemplo, nós sabemos que os técnicos da EDM podem aparecer no intervalo das 08h às 15h30. Então, o que nós fazemos é montar o sistema a partir das 15h30 e desmontamos às 07h30 do dia seguinte. Não há risco de sermos apanhados. Quando eles aparecem, vêem tudo conforme”, esclareceu a nossa fonte.

O QUE DIZEM AS AUTORIDADES?

Conversamos com Zeferino Chioco, vereador do distrito municipal de KaLhamanculu. Não tem dados concretos do número de casas em que há roubo de energia, mas confirma que tal acontece.

“Dizer que não se rouba energia neste bairro, estaria a mentir. Há roubo, sim. Não é contabilizar ou indicar tais casas. Nós, como estrutura, só nos limitamo-nos a explicar quais são os riscos de roubar energia”, disse Zeferino Chioco, vereador do distrito municipal de KaLhamanculu.

Chioco não precisa de ir longe para achar o exemplo do que pode ser uma consequência do roubo de energia. Em Agosto do ano passado, “tivemos um incêndio que queimou 22 casas neste bairro. Na altura, suspeitou-se que o curto-circuito fosse a causa do incidente. Eu tenho, quase certeza, que tal resultou do roubo de energia. Alguma coisa não correu bem e 22 famílias ficaram sem tecto”.

Para que o episódio não se repita, o vereador do distrito municipal de KaLhamanculu faz um apelo à Electricidade de Moçambique: “Pedimos que a empresa pública reforce a fiscalização. Os que roubam energia conhecem muito bem os horários dos técnicos. Na minha opinião, os fiscalizadores deviam circular, mas de forma indisfarçada. Isto significa que eles deviam vestir uma roupa que não seja uniforme e esconder crachás. Só assim, poderão achar infractores e puni-los”.

A equipa do “O País” escalou, igualmente, os bairros de Maxaquene, Mafalala e Inhagoia, ainda na Cidade de Maputo, onde muitas famílias também usam energia da rede pública sem pagar.

Na Matola, o problema replica-se, mas a técnica é outra… O bairro da Liberdade, cidade da Matola, foi a nossa porta de entrada. Conversámos com John – foi assim que a nossa fonte quis identificar-se. Aliás, é assim que é conhecido no quarteirão 15. É destemido. Abertamente, explicou-nos como é que se rouba energia naquela zona.

“Meu irmão, é muito fácil roubar energia. Eu que tenho car wash, achas que vou comprar energia todos os dias? Nem pensar”, introduziu a conversa para, de seguida, dar uma “aula” de como roubar energia.

“Primeiro, tens que ter dois fios”, começou por explicar. “Coloca os dois fios no poste eléctrico. Dali, os mesmos (fios) devem passar pelo caixa (um pequeno quadro), levá-los até ao quadro e, depois, para a tomada. Tens de fazer tudo isso com os disjuntores arreados para não haver risco de explosão. A partir daí, o contador pára de contar”, detalhou John, morador do bairro da Liberdade, cidade da Matola.

Segundo o entrevistado, esta é uma prática que tende a ser normal no bairro: “se alguém te disser que não está a roubar, estaria a mentir para ti. Todo o mundo aqui rouba energia. Onde é que vais apanhar dinheiro para comprar todos os dias? Eu, por exemplo, tenho um car wash e há dias em que não tenho clientes. Como é que vou pagar energia nos tais dias? Não tem como”.

Da Liberdade, fomos até Boquisso, ainda na cidade da Matola. A técnica e as justificações para o roubo de energia são as mesmas. Por aqui, nunca houve uma situação de incidente.

“Ainda não tivemos curto-circuito, muito menos incêndio. Talvez seja por isso que as pessoas continuam a roubar energia. Não é bom. Nós sabemos. Aliás, quando anoitece, a energia é muito fraca e o Posto de Transformação de Energia (PT) já se desligou várias vezes”, revelou Maria dos Anjos, residente do bairro Boquisso.   

De acordo com Maria dos Anjos, as estruturas do bairro já sensibilizaram os moradores a não fazerem tais coisas, mas “foi tudo em vão. As pessoas continuam a roubar energia. Há dois meses, uma família foi surpreendida a roubar energia. Cortaram-lhe a corrente e devem pagar muito dinheiro de multa. Entretanto, nem com isso aprendemos”. 

QUAIS SÃO OS RISCOS DO ROUBO DE ENERGIA?

O engenheiro eléctrico, Domingos Salvador, já ouviu falar das várias técnicas de roubo de energia, mas é com base no conhecimento científico que explica os riscos. Antes, há que compreender o personagem que consome a energia da rede pública sem pagar.

“É preciso olhar para as pessoas que roubam a energia. Se for um técnico da Electricidade de Moçambique, a sanção é mais pesada. Ele pode ser preso, julgado e condenado. E mais, deverá pagar uma multa pelo que fez, porque é alguém que conhece ou devia conhecer a legislação. Agora, se for um cliente, poderá ficar sem energia e pagar multas”, apontou Domingos Salvador, engenheiro eléctrico.  

Indo mais ao detalhe das consequências do roubo de energia, Domingos Salvador explica: “o roubo de energia nas residências pode resultar em curto-circuito, incêndio e sobrecarrega o Posto de Transformação (PT). É por isso que assistimos a explosões. É muita sobrecarga. Outro sinal evidente do roubo de energia é o enfraquecimento da corrente que chega às nossas residências”.

O especialista acrescenta que os cabos que fazem chegar a corrente às casas podem pegar fogo. “Nós temos visto postes pegarem fogo. O roubo de energia é que causa aquilo. Há uma outra coisa que chamamos de ‘juntas nos feios’. Aquilo, também, pode queimar e é muito perigoso que isso aconteça”, detalhou o engenheiro.

MAIS DE TRÊS MIL MILHÕES DE METICAIS DE PREJUÍZOS PARA EDM

Em entrevista exclusiva ao jornal “O País”, a chefe do Departamento Comercial da EDM descreveu como preocupante a situação do roubo de energia.

“Só para o primeiro semestre deste ano, estamos a falar de uma média de 16 555 clientes com irregularidades e este número não é pequeno. Isso tem consequências nas nossas receitas. Estamos a falar, só para os primeiros seis meses de 2022, de 52,2 milhões de dólares, o que corresponde a 3,3 mil milhões de Meticais”, revelou Marcelina Sambo, chefe do Departamento Comercial da EDM.

O Departamento Comercial da EDM alerta que não são apenas as residências que têm o mau hábito de roubar energia. Destaque maior, “estabelecimentos grandes em número de 100. Não ficam de fora pequenas bancas, mas estas não são difíceis de contabilizar porque são muitas e estamos a aplicar uma tarifa geral”.

Diariamente, a EDM detecta mais de 50 casos de uso clandestino de energia e há províncias que lideram o roubo de energia. “As províncias com mais casos são a Cidade e Província de Maputo, Tete e Cabo Delgado”, enumerou Marcelina Sambo. 

Para travar o fenómeno, a empresa pública diz que tem feito inspecções e, aliado a isso, “estamos a colocar, a nível do país, contadores inteligentes que são smart meters. Isto vai inibir a tendência de roubos, porque nós pomos os contadores no poste. É diferente do sistema que nós temos agregado às residências. Isso facilita o cometimento de irregularidades. Não que não o façam lá de outro lado, mas temos um mecanismo  de controlo. Para roubar, tem que ser alguém com muita mestria para subir ao poste e fazer uma ligação clandestina”.   

O uso de energia sem pagar, segundo Marcelina Sambo, transcende os prejuízos somados pela EDM. “Poderíamos fazer mais para os outros. Podíamos ligar para mais clientes, mas temos que nos reinventar para aquilo que era um propósito futuro para acomodar esta situação que tinha sido dada como ultrapassada. Temos que desembolsar mais fundos para o mesmo segmento de clientes que já estava a desfrutar deste serviço”, concluiu.

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