O ardina puxava as calças jeans que gotejavam do caimento da cintura, como cera duma vela, pela mão direita. Na mão esquerda segurava uma pilha de jornais enrolados; segurava os jornais na posição que se aprende nas maternidades: a de amamentar. Depois de repor as calças colou no estendal da mão direita o jornal com uma capa quente; um jornal inundado por um rosto gordo de corrupção e com letras bem nutridas de tinta preta: MINISTRO CORRUPTO.
Avançou o ardina pela rua num passo que seguia os saltos do chinelo arrebentado. Não caminhava, fazia malabarismo pedestre. Não tinha chinelos, tinha borrachas gastas que lhe permitiam pisar o alcatrão pela metade dos pés. O sol que queimava, descontroladamente, as ruas e avenidas e o ardina desviava-o com um boné, sujo, com matrícula duma empresa de detergentes. Enquanto avança o homem dos jornais espreitava os carros que eram hipnotizados pelo vermelho do semáforo. Espreitava e de seguida exibia o jornal com o destaque quente.
Aquela criatura parecia uma montra ambulante de jornais, um manequim vestido de reportagens em movimento. Era um missionário suburbano em expedição. Caminhava no permeio da estrada e desenhava curvas e passos diagonais nas estradas que escasseavam carros. Enquanto caminhava jornais anexados na axila esquerda absorviam, como esponjas de letras, o suor que os pêlos do corpo expulsavam em gotas contínuas. Os bocejos que nasciam em forma de losango na boca do ardina segredavam o sono interrompido para chegar cedo no armazém dos jornais e ter os primeiros jornais.
A coluna do homem dobrava-se e o pescoço cuspia a cabeça a todas viaturas que que passavam com a velocidade segurada. Em outras viaturas, o vidro não se deixava baixar e só via o reflexo da sua cara gorda de sono e cansaço. Via a cicatriz, em forma de linha férrea da esteira onde dorme, serpenteando numa das suas bochechas. Via a sua barba, em extinção, procurando terreno fértil no seu rosto para povoar e reproduzir-se.
“Hoje a cena está manigue off” – tatuou essas palavras no silêncio que crescia, como uma trepadeira, dentro de si. Enquanto pensava, quero dizer, enquanto roía alguns restos de palavras com os dentes de preocupação um Toyota, embriagado de velocidade, carregou o corpo do ardina para o tecido do alcatrão. O ardina estatelou-se no alcatrão com a tampa da boca quebrada. O sangue pintou os dentes como se fossem unhas caiadas de verniz vermelho.
Os jornais voaram na estrada. Os destaques sofreram ataques dos rapazes que vivem na rua. As páginas de necrologia espreitaram dos molhos de jornais. Moedas míseras de dez meticais rolaram e as de um metical coxearam equilibrando seus corpos avantajados nas pontas. Os carros afilaram-se. Meteram-se num engarrafamento de buzinas.
O motorista do Toyota puxou o ardina pelos pés para dentro do seu carro. Enquanto puxava-o, as moedas gotejavam dos bolsos do ardina e o sangue desenhava uma linha fina na estrada. O semáforo não parava de piscar a luz vermelha. Era como se sangrasse pelo atropelamento do ardina.