O livro Tornado, de Teresa Noronha, foi, uma vez mais, distinguido em Portugal. Desta vez, com o Prémio PEN. Trata-se de um prémio com tradição em Portugal. Ao longo dos anos, por exemplo, também foram laureados autores como José Saramago, Virgílio Ferreira, Agustina Bessa Luís e Lídia Jorge. Também por isso, naturalmente, a escritora está feliz, afinal, não estava nada à espera. “Este prémio é considerado dos mais importantes prémios anuais em Portugal, escolhendo dentre os livros publicados no ano anterior, aqueles que o júri considera os melhores. Sendo assim, é uma grande honra e um prazer, porque o livro partilha um pouco do meu país, mas também outras questões que considero ser importante pensar e questionar, questões da história, questões sociais, do lugar de cada um no mundo. Um mundo que gostaria que fosse mais equilibrado e sem tantas clivagens”, disse Teresa Noronha, reagindo à distinção do seu livro. Ora, mais do que a satisfação da autora, recuperamos uma entrevista, nunca antes transcrita, cedida pela autora de Tornado ao programa Artes e Letras da Stv, em Junho deste ano. Aos leitores que irão embarcar nesta viagem profunda sobre a História e as realidades moçambicanas, que não se esqueçam disto: “Todos nós carregamos marcas daquilo que somos e da nossa herança”.
Tornado é um livro sobre várias viagens: sobre o seu universo interior, sobre a nossa sociedade, sobre o tempo e sobre o espaço. É um livro de dor e que pode ser de esperança, dependendo da forma que o lemos. Como foi para si viajar sobre o universo ficcional aqui apresentado?
Este livro tem vários tempos e vários universos imagéticos que remetem, no fundo, para a vida, em termos gerais, e a posição do indivíduo em relação ao mundo que o rodeia. O que é crescer e o que é crescer com as condicionantes que nós temos à nossa volta, com a História do país onde nos inserimos, a nossa condição enquanto cidadãos deste mundo, em que lugar geográfico nos situamos e, portanto, em que universo simbólico é que também nos situa a nós. O olhar do outro situa-nos. Tudo isto é um bocadinho da nossa condição que nós vamos criando em relação àquilo que nos rodeia. Há tudo isso à nossa volta, com essas dores, mas também com as oportunidades que essas dores nos fazem reposicionar para nos reafirmarmos.
Por isso mesmo, Tornado também é o que nos acontece?
O Tornado é aquilo que nos vai acontecendo. Portanto, nós entramos num turbilhão. A adolescência também é esse período de turbilhão, e nunca saímos iguais. O princípio do livro é um momento de luto, mas, depois, a personagem sai dessa condição. Portanto, depois desse movimento, que também é um movimento que fazemos na nossa memória, acabamos por nos posicionar. Nós falhamos muito durante a nossa vida, mas saímos disso um bocadinho melhor. Embora o livro pareça negro, como autora, eu tenho uma visão positiva do mundo. Nós não estamos piores; temos sempre é de nos reposicionar em relação ao mundo onde estamos, afirmando-nos como cidadãos, e acho que isso, quando é feito por todos nós, acaba por ser um movimento de construção de algo melhor.
Falou de memória e de construção. Como foi para si construir esta personagem e, através dela, reconstruir um certo contexto e uma certa imagem de Moçambique?
Esta personagem carrega consigo a história e tem marcas de que não consegue livrar-se. Ela nasceu numa condição de filha de colonos, e vai ter de viver com isso e aceitar isso, no fundo. Portanto, não é uma história fácil. Todos nós carregamos marcas daquilo que somos e da nossa herança. A personagem vai-se procurar em vários espaços geográficos. Vai viver em França essa mesma condição… Ela é africana, mas não é olhada como tal. A pele dela é mais clara e confundida com uma brasileira. Ela nunca é aquilo que os outros pensam que é, mas vai ter de se confrontar com isso e não volta imediatamente para Moçambique, porque precisa de se encontrar primeiro, antes de regressar à sua terra. Ela precisa de aceitar aquilo que é. Nesse movimento, vai-se confrontar com várias situações e vai ter de sair de França fugida, porque deveria regressar a Moçambique, mas opta por não regressar. Ela vai-se tornar uma espécie de emigrante ilegal, e isso talvez a faça sentir o que os outros que não nasceram no “sítio certo” sentem. “Certo” no sentido mais favorável do mundo. Isso tudo é uma aprendizagem e uma iniciação. Este Tornado é também uma viagem iniciática por essas situações e também difícil.
No livro, temos a morte presente. É uma forma de pensar a vida?
O primeiro capítulo é muito forte. É um livro de luto e, às vezes, isto é tão forte que faz esquecer outras componentes. Mas, de facto, a morte faz parte da vida. É uma coisa que, muitas vezes, a evitamos pensar, mas esta personagem teve de confrontar-se com isso, talvez, num momento em que não estava muito preparada para o fazer. Ela tinha 18 anos quando o irmão morreu de uma forma trágica. Ele suicidou-se. Isto levou a uma série de questionamento sobre a vida e a morte e a estas situações que estão por trás da nossa vivência. Ela ainda não tem maturidade para dar respostas e deixa muitas perguntas em aberto, e o leitor terá, se calhar, de encontrar respostas que ela não dá. Mas, se calhar, talvez nem haja respostas a dar. Perante a morte, que tipo de resposta podemos dar?
Então, quis trazer uma espécie de debate identitário através da personagem?
Sim. Eu penso que, em Moçambique, passamos por várias etapas. A primeira etapa, de Moçambique independente, afirmava-se que éramos todos iguais, que tínhamos todos os mesmos direitos e que tínhamos a mesma condição. Isso, de alguma maneira, escondia que nem todos vínhamos do mesmo sítio, que todos carregamos uma história e quer queiramos quer não, apesar de todos desejarmos que estejamos a viver em comunhão, isso não deixar de existir. Não é porque não falamos de um assunto que este deixa de estar lá. Este livro procura, de alguma forma, trazer à superfície algumas questões que nunca foram claramente enumeradas. Eu acho que nomeá-las é, se calhar, um princípio para podermos passar para uma fase seguinte, em que cada um aceita a sua herança. Mas isso não é um problema e não constitui um entrave para nos entendermos. É preciso aceitar, e acho que nomear é o primeiro passo para aceitar.
Ao mesmo tempo que vai explorando e reconstruindo essa identidade, temos uma narradora que explora muito bem os espaços. Parece a voz que faz a narração funcionar como ponte que aproxima os espaços distantes uns dos outros…
É verdade. Eu acho que essa narradora procura exactamente isso, o cosmopolitismo. Esta situação trouxe-nos, de alguma maneira, a globalização e a possibilidade de podermos incorporar vários espaços, várias culturas, sem deixarmos de ser quem somos. Então, acho que sim, que esses movimentos de incorporação de vários espaços estão aí presentes. Ao conseguirmos ultrapassar a barreira de sermos, de nos cristalizarmos como apenas de um sítio, nós conseguimos estar facilmente uns com os outros.
Esta narradora conta a história como se estivesse a comunicar connosco, mas também como se estivesse a comunicar com o seu irmão que partiu. Do ponto de vista de definição do estatuto do narrador, debateu-se sobre como a narradora nos contaria a história?
Sim, isso não apareceu imediatamente. Aliás, é engraçado, porque o irmão apareceu mesmo no fim, quando eu estava à procura de fazer esta interpelação. Eu já tinha vários blocos que iriam constituir o livro, mas não tinha um fio condutor. Ainda estive hesitante entre dois interlocutores, entre o irmão e uma personagem que seria uma amiga. Não tinha a consciência plena, mas sabia que isso era importante, essa definição de quem é que está do outro lado a ouvir a narradora. Se eu tivesse escolhido um outro interlocutor, talvez o foco do leitor teria sido outro. Portanto, tenho a consciência plena de que, ao ter definido o irmão como interlocutor, aquilo que os leitores vão ler, é mais a história do luto do que outras histórias. Se tivesse tido um outro interlocutor, talvez o olhar dos leitores tivesse pousado numa das outras histórias que compõem o livro.
Este livro levou muito tempo a ser escrito e foi reescrito várias vezes, até que decidiu submetê-lo a um concurso. Chegou a sentir que o livro estava pronto, ou teve de decidir parar de o reescrever?
Quando fiz 50 anos, tive a consciência de que eu tinha de terminar este ciclo do livro. O livro passa por várias etapas e pretende fazer uma reconciliação da personagem consigo próprio. Portanto, percebi que tinha de fechar este ciclo se queria fazer mais alguma coisa além de escrever o livro composto por várias partes. Aliás, qualquer uma destas histórias, do irmão, do professor, da França, de Lisboa e da mãe, podiam ser livros separados. Mas, a um determinado momento, percebi que isto fazia sentido como uma viagem de construção identitária e que, portanto, não valia a pena estar a pensar em romances separados. Antes valia juntar tudo isso num só livro e, depois, se for o caso, desenvolver em outros projectos, com o desenvolvimento de algumas personagens que estão neste livro. Para decidir fechar o livro, passaram dois anos. Mas, até no fim, estive a ponto de decidir que isto não vale nada; vamos rasgar e começar de novo.
Ao fim de dois anos!
Essa insatisfação ainda estava presente e essa dúvida também faz parte do processo artístico.
E é boa?
Pode ser boa e pode não ser. Tem de ser doseada. Se for em doses grandes, pode impedir-nos de andar para frente. Pode ser boa no sentido da exigência que nos colocamos na qualidade do que eu quero colocar para fora.
Há um excerto de que gosto neste livro. Diz mais ou menos assim: “Há feridas que não curam. As crianças também morrem de amor, de amor não correspondido ou da mentira. E, por mais que encontrem mil razões que o expliquem, nunca vão entender que aquele que as cativou abra, num momento e sem aviso, a porta do cativeiro.” (p. 30). Esta também é uma forma de recuperar o tema da infância, que marca a sua literatura, de modo a impulsionar-nos a alguma circunstância ou a algum lugar que até pode ser do futuro?
Sim. O Principezinho dizia que nós somos responsáveis por aquilo que cativamos. Realmente, as nossas feridas de criança e de adolescência são feitas, geralmente, por pessoas que mais amamos. E essas feridas carregamo-las até conseguir sará-las. Normalmente, só saramos as feridas com amor. Esta personagem viveu a primeira decepção com a avó, que não conseguiu mantê-la perto de si. Ela vive mais uma vez essa ferida quando se apaixona por este professor, que não é capaz de corresponder ao imenso amor que ela tem por ele. Eu penso que todos nós, ao longo da vida, temos estas feridas que nos fazem crescer. Temos de aprender a cicatrizar as nossas feridas para podermos tornar-nos mais humanos.
Há uma vantagem de ter fixado a narração em uma menina?
Talvez isso tenha dado uma voz que é universal. Todos nós passamos pela infância, todos nós crescemos e tivemos as nossas dores, alegrias e coisas que nos marcaram. Este território da infância permite um diálogo quase imediato com o leitor.
Esta menina, à medida que vai crescendo, vai activando em si diferentes focalizações, fazendo com que o leitor capte vários contextos em que se insere. Há aqui doses de realidade que precisou de revisitar para que a história ficasse tão verosímil?
Sim, sem dúvidas. Ao longo da escrita, houve várias coisas que eu tive de revisitar sobre o passado. Isso, talvez no inconsciente, passa para a forma de escrever. Ao revisitar lugares do passado, provavelmente, eu consegui descer novamente àquela condição de ser criança, ser inocente, de estar apaixonada. Isso tudo foi importante e foi quase uma psicanálise, em que a pessoas volta aos lugares da memória para poder caminhar para frente. Houve pessoas que não gostaram nada disso, que me disseram que o livro termina como se uma adolescente a escrever. Eu fiquei contente com essa crítica porque, de facto, se isso aconteceu, era mesmo isso que se pretendia. Como é que a escrita começa de uma forma tão madura e termina como se tivesse sido uma adolescente a escrever? Porque, dentro de nós, carregamos vários tempos. Nós não temos apenas um tempo.
Na apresentação do livro, Álvaro Carmo Vaz disse que o livro não nos traz uma sequência de acções cronológicas, porque os nossos processos, como humanos, não são assim tão cronológicos, mesmo quando estamos a contar uma história sobre a nossa própria vida. Esteve consciente de que tinha de ser assim?
Não, há muitos processos na escrita que são inconscientes. Nós fazemos e só a posterior é que nos damos conta. Há processos mentais em que o cérebro tem os seus próprios mecanismos e acaba por acontecer. Depois, vemos se o resultado funcionou ou não.
Muitas páginas cortadas…
Muitas, mas isso não lamento. Se calhar, até haveria mais a cortar. Já houve quem me dissesse que tinha algumas repetições, mas as repetições, às vezes, não fazem mal. Neste movimento de tornado, aparentemente, voltamos ao mesmo sítio, embora já não esteja exactamente no mesmo sítio. É como se fosse uma espiral.
Outra passagem: “Também eu, não entendo tudo o que conto. Só relato. Tudo se passou noutro tempo, noutra vida” (p. 52)…
Às vezes, há a sensação de que as coisas já não nos pertencem, porque nós já não somos aquela criança, aquele adolescente. Mas isso não deixa de estar dentro de nós. Carregamos e, ao mesmo tempo, já não carregamos.
Como saiu desta escrita?
Só me dei conta mais tarde, mas acho que saí outra pessoa, mais leve, mais feliz. Acho que houve muita coisa que ficou no livro. Talvez seja por isso que as pessoas dizem que é um livro tão duro, tão difícil. Muita sobrecarga que estava dentro de mim, passou para o livro.
O livro é Prémio Literário Maria Velho da Costa, em Portugal. Esta distinção fez-lhe perceber que tinha alcançado o que propôs escrever?
Sim, houve também esse alívio. Quando colocamos alguma coisa cá fora, nunca sabemos o que o outro vai pensar. É sempre um tiro no escuro. É sempre surpreendente aquilo que o leitor vai encontrar no livro. Muitas vezes não é aquilo que a pensávamos que encontraríamos. O relevo que dão às coisas é diferente daquele que nós damos. Acho que o prémio dá algum alívio. Pelo menos houve um grupo de pessoas que entendeu que o livro valia a pena. Isso é sempre bom, porque, de certa maneira, confirma que não era para estar na gaveta, era para vir cá para cima.
Trabalha com crianças há alguns anos e a sua escrita também contempla muitas personagens infantis. O seu lado didáctico, pedagógico ou editorial interfere no seu processo criativo?
Não. Eu separo muito bem a parte de edição da parte de escrita. Se eu fosse editora da minha própria escrita, se calhar não seria bom juiz. Quando voltei para Moçambique, sabia que devia deixar alguma coisa para o país. Se calhar, ainda vivo aquela utopia, porque nós vivemos numa altura única, em que acreditamos que cada um de nós está aqui para dar um pouco de si. Eu senti que tinha vivido fora e que, ao voltar, tinha de deixar alguma coisa e este trabalho editorial tem-me permitido fazer este movimento de construir algum acervo que acho importante para as crianças. Se calhar, é uma falta de modesta. Mas penso que dentro da nossa responsabilidade social, temos que dar o nosso melhor.
Na literatura também cabe a responsabilidade social?
Na literatura também cabe a responsabilidade social, cabe despertar para o universo com algum deslumbramento, em que a palavra tem um valor simbólico. Penso que é importante que as nossas crianças se deslumbrem com a arte, as imagens. Estes lugares mágicos fazem parte do universo das crianças e é importante que vivam o universo da literatura.
E é a partir desse regresso a Moçambique que passa a editar infanto-juvenis na Escola Portuguesa…
Eu tive a sorte de a Escola Portuguesa ter-me dado espaço para isso. Posso dizer que é uma sorte porque nós estamos num país em que o mercado editorial ainda é emergente e não há tantas editoras e não é fácil que do ponto de vista comercial uma editora, num mercado tão restrito, com baixo poder de compra e sem o Estado a apostar nas bibliotecas públicas, editar e continuar a editar. Alguns tentam, mas, depois, têm de parar porque há vários obstáculos, o que não cria um mecanismo fluido. Eu tive a sorte de calhar numa instituição em que apostar na literacia é uma das missões e que me tem dado espaço para com os artistas e com os escritores criar alguma coisa.
Qual é a vossa linha editorial?
Nós começamos por ser generalistas. Mas, aos poucos, percebemos que o campo das histórias tradicionais poderia fazer a ponte com escolas e fazer dinamização com as leituras, juntando a oralidade e a escrita. Percebemos que os livros têm de ser trabalhados.
Por que é importante explorar a oralidade?
É muito importante porque é eficaz, faz com as crianças percebam que nas histórias há emoções e valores.
Quatro desses livros editados pela Escola Portuguesa foram considerados, em 2018, “Altamente recomendáveis” no Brasil. Refiro a O pátio das sombras, de Mia Couto, Na aldeia dos crocodilos, de Adelino Timóteo, O caçador de ossos, Carlos dos Santos, e Leona, a filha do silêncio, de Marcelo Panguana. Fere-lhe estes livros passarem “despercebidos” em Moçambique?
Não deve ferir. Há que perceber por que isso acontece, há que ter consciência de que há vários factores que limitam o acesso das pessoas aos livros. É preciso trabalhar nesse sentido, com instituições que fazem chegar o livro às pessoas. Por exemplo, o Fundo Bibliográfico e instituições não-governamentais e com as escolas.
Alguns livros editados pela Escola Portuguesa estão a ser editados no Brasil. Isto está a dar alguma visibilidade ao projecto?
Sim, penso que está a ter um bom impacto porque no Brasil há um grande movimento identitário em relação às origens dos brasileiros, uma reivindicação de uma parte da sua africanidade. Este desejo de levar autores moçambicanos e africanos para o Brasil tem um bocadinho a ver com este movimento. Isso permite-nos dar um passo e dar a conhecer autores.
Um dos melhores livros do ano, em Moçambique, foi editado pela Escola Portuguesa, O menino que odiava números, de Celso Cossa. Como foi recebida esta boa novidade?
Tem duas coisas que são favoráveis. Uma delas é o reconhecimento da importância do livro juvenil. Por outro lado, para mim, o reconhecimento da Escola Portuguesa enquanto parceira nesta parte editorial. Sabemos que nem sempre estes reconhecimentos são fáceis. Mais uma vez carregamos o peso da História e penso que temos de começar a desconstruir isso tudo porque o Celso tinha um livro didáctico e que é possível os jovens identificarem-se com aquela personagem e perceberem que os problemas com a Matemática não são só deles. É um livro cheio de humor e que brinca com as situações, com muitos enigmas e muitas charadas.
É autora do infanto-juvenil A viagem da Luna. O que quis fazer desse livro?
Não quis fazer nada. Quer dizer, quis apenas contar uma história. Quando estamos a contar uma história a uma criança, ela pergunta e depois. E vai puxando o fio do enredo e nós temos de encontrar o que vem depois. E esse vem depois pode ser de uma determinada maneira. E este fio depende da nossa vivência e do nosso imaginário. Eu não quis fazer nada, eu quis contar uma história às minhas filhas. E esta história levou a esta viagem da personagem, de alguma maneira iniciática, em que a personagem se descobre a si própria. Ao mesmo tempo que a Luna aceita ser diferente, isso não a afecta. A partir desse momento, a história dá uma reviravolta.
E essa coisa do diferente repete-se em Tornado, de alguma forma.
Repete-se e, não será, com certeza, por acaso. Eu também sou produto de uma miscigenação. Tenho raízes em Portugal e Goa e nasci aqui. Portanto, tenho um triângulo identitário.
Há dias, conversei com a escritora Andreia Edna da Silva. Ela dizia que começou a escrever o primeiro livro como consequência das histórias que contavam ao filho. Tomou o gosto e tirou o livro. Foi assim consigo em A viagem da Luna?
Foi assim. Tenho muita pena de não ter registado outras histórias, porque teria mais livros para editar. Quando temos aquele caderninho disciplinado do escritor em que registamos as ideias, no dia seguinte acordamos e já não se lembra. Mas desta vez consegui registar e vou prometer que vou ser mais disciplinada e que vou começar a ser mais sistemática.
Por que é tão bom escrever e editar livros?
Escrever nem sempre é bom. Escrever implica disciplina, sofrimento e implicação. Às vezes, fogimos porque sentimos demasiado peso da responsabilidade. Eu evitei publicar antes porque sabia que me iriam cobrar sobre o que vem a seguir. Agora já não tenho como fugir, terei de corresponder. É bom quando escrever quando percebemos que do outro lado aquilo teve significado para o leitor. Isso é uma coisa completamente inesperada. É o factor surpresa. Nós nunca sabemos o que é que as nossas palavras podem provocar no outro.
Quanto à edição?
A edição é um trabalho de bastidor. Quem fica com o filho é o autor. O editor é apenas uma peça do processo até o livro ficar pronto. Acho que é muito gratificante durante o processo. É muito bonito trabalhar com autor, mas nem sempre. Há os que reagem mais. Mas, em geral, é muito bom trabalhar com os autores, sobretudo jovens, que os antigos já têm as suas ideias muito cristalizadas. Os jovens estão muito abertos às críticas.
Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?
Sugiro Museu da Revolução, de João Paulo Borges Coelho, e Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez.