Há momentos na vida em que as palavras dizem muito pouco e são incapazes de sugerir a “exactidão” de um instante. Quando a menina do vestido vermelho apresentou-se ao palco do Cine Scala, ontem à noite, como que a preencher o silêncio de cor e movimento, as palavras deixaram de ter sentido. Afinal, mal se podia adivinhar o que estava por vir. O Coro Xiquitsi, certamente, sabiam de tudo e, com recurso àqueles sons indecifráveis que produziam com a boca e com os pés, ajudaram a tornar o momento sublime.
A menina do vestido vermelho chama-se Lenna Bahule. Canta que só ela sabe arrepiar. Por isso, foi uma das vozes convidadas a participar no concerto de encerramento da Temporada de Música Clássica, em Maputo. Entretanto, Lenna foi muito além disso. Numa noite em que os astros conspiraram a favor, a cantora reclamou protagonismo para si ao interpretar a sétima música de Nômade, seu álbum de estreia. “Essa música chama-se ‘Kungô’ e é uma música da minha autoria”, afirmou a cantora, num compasso que não se viu mais no Scala. Pelo contrário, Lenna Bahule tornou o exercício do canto coisa maleável. Deixou-se acompanhar pelo Coro Xiquitsi como se tivesse nascido para aquele momento. Ora com a voz e com os gestos, ora com as mãos batendo nas coxas ou com os pés batendo no chão, Lenna tornou a emoção inteligível e conduziu o auditório a uma dimensão longe da terra.
“Kungô”, na verdade, é um vocábulo inventado a partir de uma língua que não existe. Ainda assim, no contexto do álbum Nômade, aspira significar ‘canção do povo’, do proletariado, funcionando como uma marcha rumo à justiça social, à conquista de melhores condições de trabalho. Logo, no concerto de Fim do Ano da Temporada de Música Clássica, Lenna e o Coro Xiquitsi, de pés descalços, fizeram vibrar o palco e os corações de todos aqueles que não resistem a uma performance além dos padrões habituais. Em jeito de marcha…
O momento Lenna Bahule durou seis minutos. Muito poucos. Pelo poder criativo que a cantora demonstrou, merecia estar em palco mais tempo. Mais do que todos outros convidados, Lenna encaixou-se perfeitamente no rigoroso desempenho vocal do Coro Xiquitsi. Portanto, a autora de Nômade elevou a expectativa com uma exibição que só não foi perfeita porque a perfeição é uma constante busca.
De Estevão Chissano a Stewart Sukuma
Se calhar, não estava previsto que Estevão Chissano, formado no Xiquitsi, voltasse a merecer tanto protagonismo. O que estava previsto era a “Missa para o meu Sol, Kyrie, Glória, Credo, Sanctus e Agnus Dei”. Aí a noite foi de música clássica no rigoroso sentido da expressão. Orquestrou-se a Chissano na direcção de Kika Materula, que, até esse momento, ocupava um papel aparentemente secundário. Depois de 17 minutos de música composta por Chissano, que admitiu ao Xiquitsi em 2014 e já compôs 14 obras, lá vieram os aplausos a reconhecerem um compositor distinto.
E aquele não foi o único momento Chissano. Mais tarde, Stewart Sukuma deu-lhe créditos da orquestração de duas músicas suas. Por exemplo, “Xitchuketa marrabenta”. O menino, sincero na sua humildade, ficou todo embaraçado e aceitou, uma vez mais, os cumprimentos dos colegas, do próprio Stewart e do auditório que não se fartou em aplaudir.
Além de “Xitchuketa marrabenta”, Stewart Sukuma interpretou “Why” (com arranjos de Daniel Moreira), “Batata-doce” (arranjo de Humberto Tandane), “Felizminha” e “A inadiável viagem”, música inspirada na escrita de Luís Carlos Patraquim. Nada mau, mas os músicos não precisam de se alongar em discursos ao fim de cada tema que interpretam num concerto. É aborrecido e ficam ali a parecer políticos em dias de campanha. Nesse pormenor, lá voltamos a ela, Lenna Bahule foi um bom exemplo. A cantora não falou mais do que devia e cantou mais do que se pretendia. Surpreendeu. Já Stewart, não se pode negar a simpatia e o carácter demasiado conversador. Nessas suas investidas, bem, o músico foi assertivo ao lembrar os “mestres”: Calane da Silva e Hortêncio Langa. Oportunamente, lamentou a perda dos artistas, mas não se poupou de contar histórias longas para uma noite como de música clássica.
Em memória a Calane da Silva, à data do falecimento membro da Associação Kulungwana, Kika Materula convidou Sónia Sultuane a dizer poesia que, numa edição anterior da temporada, tinha sido o “menino da Malanga” a declamar.
Deltino Guerreiro e o King da Marrabenta
Deltino Guerreiro subiu ao palco do Cine Scala cantando “Baba yetu”, de Christopher Tin. Essa música não valorizou as virtudes vocais do artista e nem foi dos melhores momentos do Coro e Orquestra Xiqutsi. Se os artistas correm atrás de prejuízos, foi o que Deltino Guerreiro, o Coro e Orquestra Xiquitsi fizeram no momento seguinte, afinal lá se interpretou “Eparaka” e, depois, “Sonhos”. Ao interpretar as suas próprias músicas, aí, sim, percebeu-se por que Deltino Guerreiro é um dos mais interessantes cantores moçambicanos da actualidade. Em geral, o Eparakaman esteve desinibido, preparado e, portanto, não desiludiu.
Quem também não desiludiu foi o King ou um dos Kings da Marrabenta: Dilon Djindji. Logo ao subir ao palco, aplausos. E quando começou a interpretar “Podina”, o Cine Scala se transformou numa espécie de palco de temporada de música popular moçambicana.
Aos 94 anos de idade, o King de Marracuene cantou, dançou e, talvez, deixou-se deslumbrar pelas vigorosas jovens “Podinas” que, à sua frente, mexeram as ancas, sensuais, como se a encarnação fosse tudo aquilo. Uma coisa é certa, Dilon Djindji não fingiu indiferença. Tem 94 anos, é de carne e osso. Reparou nas meninas e, como se impunha, manteve aquela chama acesa típica do estilo que criou ou que ajudou a criar.