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“Temos de redefinir a política cultural do país. Estamos a olhar a cultura como se fosse um trapo”

Foto: JR

 

O Vale do Infulene é uma região importante para a Cidade e Província de Maputo. Daquele solo fértil germinam hortícolas que alimentam várias famílias. Por lá nasceu Ídasse, um dos mais consagrados artistas plásticos moçambicanos. Talvez, numa relação de afecto ou por questões criativas, o artista resolveu assentar arraiais no Bairro Jardim, a uns passos do Vale do Infulene. É no seu atelier, como uma horta, espaço fértil para produção, que nos recebe. O dia é quente, mas a oficina do artista revela-se suficientemente confortável para uma conversa que, afinal, vai durar uma hora. Por todo o lado há obras que exibem a versatilidade do artista: desenho, cerâmica, escultura e muitos projectos. O encontro, na verdade, é um pretexto para reconhecer a longevidade do percurso artístico de Ídasse, para muitos, Ídasse Tembe, e, para alguns, Ídasse Malendza. Os nomes pouco importam. O tempo, sim. Por isso, partindo dos anos 70, quando se inicia nas artes, aquele homem alto, razoavelmente forte, fala do que pensa e do que o incomoda no que às artes plásticas diz respeito. Durante a conversa, como se verá, vai dizer que Moçambique é um país abençoado em termos artísticos. No entanto, o grande problema são os governantes, que não têm sensibilidade de acarinhar o que o povo dá: a arte. “Há uma necessidade urgente de redefinição da política cultural do país. Nós estamos a olhar para a cultura como se fosse um trapo”. Segundo Ídasse, o Governo devia definir um budget para aquisição periódica de obras de artistas e proteger o património que tem sido levado continuamente para o estrangeiro.

 

Pergunta prévia. O Ídasse encontra-se no mundo das artes há quase 50 anos. Como é que se consegue tanta longevidade?

Para mim, a grande peneira é o trabalho, a entrega à vontade daquilo que se pretende. Quer dizer, a pessoa define o que quer fazer. Ao mesmo tempo, vai-se descobrindo, porque nós temos um artista dentro de nós, que temos de dar a possibilidade de se expandir e de partilhar as mensagens. O artista deve ter essa capacidade de sintetizar, de fixar aquilo que está a ver e repassar para um espaço onde possa registar, lembrar e fazer com que as pessoas possam perceber as mensagens que traz.

 

O que se lembra das artes plásticas moçambicanas dos anos 70, quando começa a sua carreira?

Eu não tenho palavras capazes de decifrar aquele momento. A verdade é que eu apareço numa altura em que havia uma geração… Nós tínhamos aqui Jacob Macambaco, Malangatana, Samate, Mankeu, Agostinho Muthemba, João Aires, João Paulo ou Fernando Lobo. Era uma geração que toda a gente sabia que era de bons artistas. Depois, apareceram os curiosos, não diria imitadores, que começaram a pintar. Tínhamos artistas com vocação natural, que foram fazendo coisas que os permitiu serem reconhecidos. No meu caso concreto, eu tive muitos alicerces: ballet, música, teatro e tantas outras coisas. Nunca consegui ficar quieto. Portanto, apareci sem me aperceber que estava a aparecer. Eu apenas estava a fazer coisas, o que era mais importante. Fui fazendo e, depois, descobri que estava num trilho traçado, tinha de continuar a trabalhar e é o que estou a fazer até agora, tentando-me descobrir. Espero que um dia chegue a perceber o que tenho tentado fazer.

 

Mas como se constrói um percurso artístico sólido?

O artista tem de assumir a responsabilidade de tudo o que faz inerente às artes. Primeiro, a responsabilidade. Depois, a humildade é muito importante no trabalho. Além disso, a pesquisa: é preciso ir atrás das coisas, não basta só pegar no pincel e pintar. Tem de haver o mínimo de consciência de que, afinal de contas, o que se faz é importante porque o artista funciona como um vector da sua sociedade. Quer dizer, traz mensagens com preocupações do seu povo tem. Funciona como um filtro para passar as preocupações que o seu mundo lhe traz. O artista pode funcionar como um farol, um vidente.

 

Os conceitos propostos por artistas da sua e de uma geração mais velha torna-vos “fácil” de consagrar. Como se faz para continuarmos a ter gerações categóricas nas artes plásticas?

É como tudo: temos de saber respeitar o palco que pisamos, em parceria com o tempo. Acima de tudo, um dos grandes segredos é o trabalho afincadamente. Trabalhando, vamos descobrindo. Por exemplo, a criança que vai à escola pela primeira vez, primeiro, aprende o abecedário e, depois, a juntar as letras até a altura de conseguir escrever uma carta de amor. Temos de ter a ferramenta e a ferramenta é o conhecimento, o trabalho, o que conjuga para podermos trazer uma obra “perfeita”. É por isso que as minhas exposições individuais são muito pausadas. Tenho de trabalhar até ter a certeza de que é isto que eu quero mostrar ao público. Eu podia pegar as obras e expor quando quisesse porque tenho nome, quer dizer, vou fazendo o meu nome, mas eu tenho de respeitar e educar o público através das minhas obras. Não é por acaso que na década de 90 integrei uma lista dos 10 melhores criadores da África subsaariana. Não pedi, foi por mérito do meu trabalho. Hoje há pessoas que olham para a minha obra e logo dizem que esta é uma obra do Ídasse. Eu não sei quais são os condimentos, mas eles conseguem ver o meu cunho. Eu só peço a Deus para poder ter saúde, de modo a poder trazer coisas ainda mais criativas.

 

O que representou para estar na lista dos 10 melhores criadores da África Subsaariana?

Naquele altura, eu estava a fazer as coisas isoladamente no meu atelier. Depois, percebi que o meu trabalho tinha transcendido fronteiras, com pessoas que estavam em cima do meu trabalho. Achei normal e uma responsabilidade muito grande.

 

Política cultural no país

Uma das perguntas que já foi feita de mil e uma maneiras tem a ver com a sustentabilidade financeira das artes. É correcto o artista, no início de carreira, pensar nisso?

Cada coisa acontece ao seu tempo, mas eu lembro que, na década de 80, Moçambique conheceu um boom em termos de variedades de intenções. Há uma necessidade urgente de redefinição da política cultural do país. Nós estamos a olhar para a cultura como se fosse um trapo. Mas o que é a cultura? Temos de saber o que é isso. Parece que há um esforço desfasado em termos de política ao nível governamental. Não estão a prestar muita atenção. Eu fico muito preocupado porque há obras que estão a sair do país e estão a desaparecer em termos de referência. Há muitos estrangeiros que compram as obras e as levam consigo para fora. Isso é muito bom! É preciso que haja alguém que compre as obras, que é para o artista sobreviver. Mas eu penso que nós devíamos ter um orçamento capaz de cativar algumas obras, de modo que não saiam daqui. Tarde ou cedo vamos precisar das obras para o nosso património, que é muito importante. Acho que se devia definir algum budget, quer dizer, o Ministério da Cultura e Turismo devia definir um budget para aquisição periódica de obras de artistas, com identificação de olheiros que possam acompanhar os passos dos artistas. Este povo precisa de respirar, e é através das artes que se pode respirar.

 

Os maiores compradores das artes plásticas moçambicanas são estrangeiros. Como se educa para, internamente, possamos comprar mais obras?

Isso é uma questão de informação e cultural. A verdade é que uma obra de arte também é um investimento. Acho que a melhor forma de guardar dinheiro é através da arte. Anualmente, essa obra valoriza. É preciso ter olho e capacidade, até porque se pode negociar a forma faseada de pagamento com o artista.

 

Referiu-se há pouco ao boom dos anos 80. Nessa década surgiu a AEMO, Charrua, Gazeta de Artes e Letras e dois escritores que hoje são Prémio Camões começaram a afirmar-se a essa altura…

Considero-me felizardo, pertenço a uma geração que assistiu ao parto de uma nação. Pertenço a uma geração que sonhou fazer de Moçambique um exemplo da humanidade. Eu digo, com muito orgulho, que das muitas associações culturais que nasceram neste país, com sorte, participei nos momentos de decisão e da criação. Sinto-me orgulhoso por ter dado o meu contributo, mas, diria, Moçambique precisa de melhor sorte. Nós temos toda matéria-prima, temos tudo para dar certo, como se costuma dizer. Tenho ouvido amigos estrangeiros que, quando vêm cá, dizem que “em Moçambique tu chutas uma pedra e sai um artista”. Este povo é outra coisa. O nosso maior problema são os governantes, que não têm a sensibilidade de acarinhar o que este povo dá. Este povo é especial! Não se encontra em nenhum canto do mundo um povo que anda sempre com o leque na mão para peneirar o ar que passa, porque é muita chatice que este povo está a viver.

 

A grande consequência da Charrua

É um artista plástico muito presente na literatura moçambicana. Por exemplo, ao meu lado vejo uma obra que serviu de capa do livro Animais do ocaso, de Álvaro Taruma. E há tantas outras capas de livro com suas obras…

Foi uma oportunidade que tive de ajudar a completar o puzzle, trazendo alguma coisa diferente. Os meus colegas, amigos e confrades acharam que eu era a peça certa. Eu dei o meu contributo, tanto que a Charrua custou-me o meu primeiro casamento. Porque eu estava ali, sempre de olho naquele grande projecto, porque a Charrua foi um grande projecto.

 

Valeu a pena?

Valeu a pena. A Charrua desbravou várias mentes. Não foi sacrifício nenhum, foi fazer as coisas conforme o momento exigia. Para mim, foi uma satisfação muito grande. Conheci gente bonita que até hoje partilho uma amizade também bonita.

 

Moçambique tem instituições dedicadas à formação de artistas. Estou a pensar na Escola de Artes Visuais, ISARC e etc. Estão a cumprir o seu papel?

Eu penso que a Escola de Artes Visuais trouxe uma outra maneira de abordar as coisas. Trouxe outra grelha. E existe agora o ISARC. O conhecimento e a escola são como um cinto que põe as calças no lugar certo. Agora, os artistas aparecem de um modo completamente diferente, com outra visão. Já não são aqueles que estão a imitar. Os artistas mais novos estão a ter novas correntes, novas abordagens e nova forma de dizer as coisas com base no conhecimento. A Escola Nacional de Artes Visuais deu um grande contributo em termos de gráfica, cerâmica e designer. Contudo, temos de saber distribuir essas oportunidades pelo país todo. O que acontece, muitas vezes, temos muitas diferenças de oportunidade entre Sul, Centro e Norte. Temos de pensar seriamente nisso.

 

Projectos para o futuro? Sei que há aí uma Janela

É um projecto muito louco, chama-se Janela do futuro, núcleos de iniciação artística. Já tenho mais ou menos três núcleos montados. Eu quero trazer o conhecimento adquirido ao longo da minha carreira a uma gamela e convidar as crianças a trocarem conhecimento. Já fiz isso em alguns atelieres ao ar livre e tenho descoberto coisas e eu também aprendo. Acredito que, se tivermos uma criança a participar na Janela do futuro, em cinco anos não será a mesma pessoa. E terá por onde começar.

 

O que as artes plásticas lhe deram de precioso?

Deram-me o mundo, e estou a viver esse mundo diferente de uma pessoa que não está nas artes. Tenho uma sensibilidade a altura de poder decifrar aquilo que eu vejo. Tenho uma outra maneira de poder interpretar a vida e isso apraz-me, dá-me uma felicidade enorme.

 

Perfil

Ídasse nasceu a 1 de Julho de 1955, no Infulene, hoje Província de Maputo. Faz um pouco de tudo: desenho, pintura, cerâmica e escultura. Em 1979 fez o curso de Animador Cultural no Centro dos Estudos Culturais, onde adquiriu conhecimentos de Antropologia, História da Arte Moderna e Arte Africana, Música, Fotografia, Teatro, Pintura, Cerâmica, Desenho e Xilogragura. Criou o departamento de arte no Instituto Nacional de Cinema. Trabalhando na sétima arte, tornou-se o primeiro moçambicano a fazer desenhos animados em Moçambique. É membro do Núcleo de Arte, da Associação Moçambicana de Fotografia, da Associação de Escritores Moçambicanos. Em 1984, ajudou a fundar a revista Charrua. Praticou ballet durante cinco anos, entre 1973 e 1978, e jogou futebol no Desportivo de Maputo. Entre os nomes das artes que julga importante destacar, constam Malangatana, Makamo, Naguib, Vítor Sousa, Valingue, Paulo Come, Mundlozi, Francisco Mandlate, Neto, Fernando Rosa, Miguel César, Sitoi. Quando olha para trás, lembra com alguma saudade do Horizonte Arte e Difusão, dos grandes projectos que Moçambique teve depois da independência. Nos anos 90, integrou a lista dos 10 melhores criadores da África subsaariana.

 

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