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Sónia Sultuane: “Roda das encarnações é um recomeçar a vida por inteiro”

Por Pedro Pereira Lopes

A minha leitura do último livro da Sónia Sultuane (SS), “Roda das Encarnações”, trouxe à tona um quesito que sempre tive por supérfluo, infundado e estereotipado: a “literatura feminina”. Numa entrevista ao escritor Marcelo Panguana (em “Os Peregrinos da Palavra”), Paulina Chiziane elucida: “… eu sou mulher e escrevo assim, e isso desfaz aquilo que é considerado quase um modelo universal” (em referência ao que a romancista chama de a “filosofia do outro”). Tanto Chiziane assim como a poetisa Emmy Xyx, pseudónimo de Manuela Xavier, defendem a escrita feminina: “escrevo o que há de mais profundo em mim, o que há no meu eu, na minha essência […]. A minha essência é essa essência feminina, de ser mulher, e eu não posso fugir disso” (Souza e Saes, 2017, p. 473).

A possibilidade de existência de uma escrita feminina implicaria, por corolário, a legitimidade de uma antagónica, a masculina, e tais divisões não engrandecem esta disciplina artística e tão-pouco desvanecem o espectro machista que as incorporam. Ainda que eu estranhe o conceito, negar as vozes que o defendem seria tão mais preconceituoso quanto ignorar a existência de uma autêntica sensibilidade e/ou emoção feminina, marcadamente maternal e visceral, que só a elas é conferida. Por exemplo, canta o poeta Carlos Drummond de Andrade, “Só a mulher (como explicar?)/ entende certas coisas/ que não são para entender. São para aspirar/ como essência, ou nem assim. Elas aspiram/ o segredo do mundo”. A força da palavra feminina está na forma de como ela [a mulher] percebe o objecto artístico, na forma de como a delineia, trata – seu tempo, ritmo e, principalmente, espiritualidade.

A mulher tem a sua própria estética racional, é evidente, mas em nenhum momento este sentido criador deverá ser usado em prol da busca pela representatividade nas lides artísticas, para – de forma romântica – se valorizarem versinhos, subpoetas ou subliteratura. A “noção consciente de arte” não tem [deverá ter] género. A poesia, a este propósito, é, sublinha Affonso Ávila,”a principal área de testagem das línguas, o sector onde a linguagem apura e concretiza suas potencialidades expressivas, suas possibilidades como veículo do pensamento criador” (1978, p. 75). Haverá, então, espaço para discussões de género?

A propósito da discussão, Sónia Sultuane distancia-se: “existe apenas literatura!” Já tinha lido, da SS, “No colo da lua”, de 2009, seu terceiro livro de poesia, dos quatro publicados (os outros são “Sonhos”, de 2001 e “Imaginar o poetizado”, de 2006), e vincou-se-me, desde lá, o seu verso objectivo e os fragmentos da sua realidade íntima, feliz ou sofrida, quase sempre fruto de um processo mnemónico e sensorial. Este “Roda das Encarnações” (FFLC, 2016; Kapulana, 2018), publicado sete anos depois de “No colo da lua”, é, pelo tom e temática – assunto que depois tratarei –, especial, afinal, SS recupera de um cancro, e a luta travada terá, diferente do efeito que se assistiu em José Saramago, propiciado uma “missão espiritual” que, como Francisco Noa escreveu no posfácio do livro, compreendeu o “tempo e a memória”.

O livro “Roda das Encarnações” pode ser dividido em quatro temáticas, (1) metapoesia, (2) memória (flash-back) e/ou espiritualidade, (3) gratidão e (4) amor (erotismo). Neste novo livro, SS funde o mito e o existencialismo e cria um lirismo imaterial. Embora exista um vínculo de continuidade na sua obra (o ciclo da “reencarnação”), este “Roda” inaugura uma linguagem nova na sua poesia, um redimensionamento, embora que, como afirma Noa, se tenha notado, de forma subtil, em “No colo da lua”. Sobre a metapoesia, veja-se, por exemplo, os poemas das páginas 14, 15, 16, 17, 18,19, 22, 24, 25, 26, etc.; referentes à memória (flash-back)/ou espiritualidade, sublinho os textos 29, 30, 39, 40, 41, 42, etc.; a gratidão é espelhada nos poemas das páginas 38, 41, 52, 59, 66, 67, etc.; e no que versa ao amor, vejam-se os poemas das páginas 20, 21, 23, 27, 28, 31, 47, etc.

Embora a colectânea não esteja dividida em unidades ou cadernos, como sugere a minha categorização, ela está, com alguns lapsos e misturas, evidente no livro. SS consegue, na verdade, construir uma “unidade de percepção e atitude”, nos dizeres de Ávila (p. 62), que transcende o sentido particular ou subjectivo dos textos. A cosmogonia sensível da SS, que, às vezes, não descola do óbvio – mas não é, também, pretensiosamente culta ou doutrinária – é construída de metáforas simples e linguagem pop: “A minha alma quer cantar poemas aluados” (p. 8); “cheira a noite estrelada” (p. 21); “assobiarei aos céus para negociar a rota directa à lua” (p. 32); “o suavizar da harpa, é essa linguagem musical profunda” (p. 69), etc.

Neste “Roda das Encarnações”, que muitas vezes nos lembra o nascer de novo, o baptismo católico, SS dialoga ou remete-nos a um diálogo com Deus (ou com os deuses, como preferirem) – “fale com Deus que os dias sejam de lua cheia”, dialoga com os seus convidados – em forma de dedicatória –, filho, irmãos, pais, mentores (p. 36, 22,24,32,etc.), e dialoga consigo própria, “Sou feita dessas fases da lua…” (p. 54); “Sónia!!! Daqui fala a lua!!!” (p. 55), e com o “No colo da lua” (p. 23, p. 54, p. 79, etc.).

Num último momento, se não fosse o recurso às adjectivações e advérbios (que pavimentam o caminho do inferno do escritor, como sarcasticamente ensina o Stephen King, SS teria uma magnum opus. Este texto, como um todo, eu o considero como um texto de ressurreição (não de encarnação) e de humanização, visto que não é uma poesia de estilos, de escolas, mas de enunciação lazariana: é como se SS tivesse retornado do outro mundo, e buscasse, agora, uma absolvição.

A breve conversa que se segue teve como combustão um encontro fortuito no aeroporto de Garulhos, em São Paulo, de onde ambos regressávamos de marcantes estadias pelo país latino, em nome da literatura moçambicana.

Pedro Pereira Lopes (PPL): Este “Roda das encarnações” representa, para si, um agarrar “a vida por inteiro”?

Sónia Sultuane (SS): Sim, um agarrar, um repensar e um recomeçar a vida por inteiro.

PPL: Boa parte dos poemas deste livro, a bem da verdade, evoca o existencialismo, o imaterial. Está a inaugurar um novo sujeito poético?

SS: Já vinha fazendo esse exercício de escrita sobre o existencialismo e o imaterial desde o “No colo da Lua”. Penso que na “Roda das encarnações” o traço ficou muito mais apurado e vincado.

PPL: O texto “Em forma de gente” sugere que esteve em causa a SS enquanto poetisa. Terá perdido, em algum momento, a sensibilidade poética (ou algo parecido)?

SS: Não, pelo contrário, foi para responder a uma provocação. Pois parece que, se não publicarmos livros todos os meses ou todos os anos deixamos de ser escritores (risos).

PPL: Por que escreve poemas de amor, sendo eles “ridículos”?

SS: Ridículos? Só quem não sente é que é ridículo! Acho que o Fernando Pessoa tem a outra parte da resposta com a qual me identifico, se escrevo poemas de amor, e se o que escrevo, é a continuidade do que sou.

PPL: Nos poemas “Teu coração” e “Segura na minha mão”, a SS concebe o amor como viver do e no outro. Seria essa a expressão máxima do amor?

SS: Sim para mim é a expressão máxima do amor.

PPL: Por que um livro cheio de dedicatórias?

SS: Dizer cheio, considero que é um exagero, mas tem sim algumas dedicatórias. É importante mostrar a importância das pessoas em nós, não só quando estão mortas. Saberia lá eu se teria outra oportunidade para fazê-lo?

PPL: A SS lê livros de outras poetisas moçambicanas? Tem contactos com alguma delas?

SS: Leio poesia de poetas e poetisas moçambicanos/as e tenho contacto com vários.

PPL: Como sente o pulsar da literatura moçambicana?

SS: Essa é uma pergunta que deve ser feita aos estudiosos de literatura [moçambicana] e aos críticos. Mas não me parece que haja alguma diferença no fazer e na qualidade. Olhando para o nosso panorama, desde os anos 40-50, é possível constatar que Moçambique nunca deixou de ter poetas, cada um teve o seu tempo, o seu espaço, o seu próprio desenvolvimento e crescimento, afinal como deve ser o amadurecimento e o fazer literário.

PPL: O texto “Ó Deus dos homens” dialoga com José Craveirinha e com o poema “Quero ser tambor”. Tem sido, o poeta, a escola da sua poesia?

SS: Não!… Não há diálogo. Li e releio Craveirinha ocasionalmente, pois ele não foi um poeta só de combate, mas também um grande poeta do amor, e um ser humano de uma sensibilidade extrema.

PPL: Como foi ter recebido, em Portugal, uma distinção por mérito em literatura?

SS: Foi extremamente importante. O reconhecimento é sempre muito bom, relembra-nos também e, principalmente, que escrever é um acto individual, e que deve ser sério e cuidado. Uma distinção também se torna um reconhecimento colectivo; nestes reconhecimentos há também um acto patriótico, de uma bandeira que nos orgulhamos de fazer parte.

Alguma bibliografia

Ávila, Affonso (1978), O poeta e a consciência crítica. 2ª edição, revista e ampliada. Summus editorial: São Paulo.

Panguana, Marcelo (2018), Os peregrinos da palavra. Alcance editores: Maputo.

Souza, Ianá e Saes, Stela (2017), “Entrevista com autora moçambicana Emmy Xyx”, in Revista Criola, nº20, 2º semestre, pp. 461-487. FFLCH/USP: São Paulo.

Sultuane, Sónia (2018), Roda das encarnações. Kapulana editora: São Paulo.

 

 

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