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Representante da OMS admite que pode ter havido subestimação do COVID -19

Djamila Cabral é representante da Organização Mundial da Saúde em Moçambique desde 2016, formada em medicina e mestre em demografia. Tem uma larga experiencia em saúde publica e está na OMS a cerca de 19 anos. Em grande entrevista ao O País e STV, falou de tudo um pouco sobre a pandemia da COVID -19 e as perspectivas no continente africano. Acompanhe a entrevista na íntegra

 

P- Djamila Cabral, o novo Coronavírus já infectou mais de um milhão de pessoas em todo o mundo. Como é que a Organização Mundial da Saúde descreve o COVID-19 em comparação com outras pandemias.

R – Primeiro quero agradecer esta oportunidade que nos é dada para falar de um assunto que nos preocupa muito. Esta pandemia, acho que é pior do que tudo que podíamos imaginar. É realmente uma grande catástrofe para o mundo inteiro e acho que ainda não temos a total visão sobre a dimensão que vai ter. Mas já temos os números que nos mostra que é uma catástrofe. É uma situação de muita transformação, vamos assim dizer, de todo o mundo. Então é uma ameaça imensa a estabilidade de todos os países. É uma ameaça de saúde pública, mas também é uma ameaça ao desenvolvimento socioeconómico, uma ameaça à paz social e é, realmente, uma crise multidimensional. É por isso também que estamos muito preocupados. O mundo inteiro está preocupado e estamos a tentar trabalhar para tentar controlar e minimizar os efeitos que já estamos a ver.

P – Era espectável que uma pandemia desta dimensão pudesse eclodir no mundo nesta década?

R – Não sei se podemos dizer isso dessa forma. Eu diria que uma pandemia, sempre havia uma possibilidade de ela acontecer. Já tínhamos tido outras ameaças como a gripe aviária, tivemos algumas ameaças que pareciam ter o potencial para desenvolver uma pandemia mas, entretanto, foram controladas a tempo. Portanto, o problema da pandemia a gente não pode prever. A gente só sabe que é uma pandemia depois de ela acontecer. Penso que a três meses, quando ela iniciou, e apesar da forma como iniciou, não podíamos dizer nessa altura que seria uma pandemia. Portanto, isso depende de como ela evolui. Tendo em conta que é um vírus novo e não temos imunidade, não conhecemos todas as suas características e as suas capacidades, portanto, digamos que são as condições reunidas que fizeram com que se tenha transformado numa pandemia.

P – O que falhou por parte das Nações para que esta doença fosse tão forte na sua transmissão e expansão, para que saísse de uma doença para uma pandemia e que atingisse esse nível de propagação global?

R – Eu não sei se podemos falar de falha. A verdade é que isto nos surpreendeu a todos. Tendo em conta, como eu disse, que não se conhecia o seu comportamento epidemiológico. Não sabíamos muito bem como é que se transmite, o tempo de incubação, tudo isso estamos a aprender conforme a situação está a evoluir. Falha, não sei se podemos dizer, mas talvez subestimação. Eu penso que no início quando estava só num único país, talvez todos tenham pensado que pudesse ficar por lá, porque já tivemos outras situações de doenças respiratórias graves que acabaram por ser confinadas, contidas na zona onde começaram. Por isso, podemos dizer que talvez no início houve uma subestimação. Mas penso que rapidamente, com os dados que foram sendo publicados pela China, nos apercebemos que tratava-se de uma situação bem diferente.

P – Em que momento a OMS sentiu que estava a subestimar esta doença? Olhando para a sua rápida propagação, sentiu que havia necessidade de as Nações terem um pouco mais de cuidados nos esforços para conter a propagação desta doença.

R – Eu não diria que foi a OMS que subestimou, mas sim, todos nós subestimamos. À OMS, o papel que lhe é reservado é de seguir este tipo de situações, fenómeno no mundo e tentar entender. Desde início, quando ela foi notificada, em Dezembro, analisando os dados que estavam disponíveis, logo notou que havia alguma coisa de diferente e preocupante. Desde início começou a chamar atenção, e por isso, em Janeiro houve a primeira declaração de emergência como forma de mostrar que se tratava de um evento de saúde pública de muita preocupação mundial. Temos peritos em todo o mundo que, em situações dessa natureza juntam-se. Ou seja, reúnem para analisar a situação e aconselhar o Director-geral da OMS a tomar uma decisão. Foi exactamente isso que aconteceu, daí termos visto aquelas primeiras declarações sobre a doença.

P – Por que razão esses peritos, ao aconselhar a OMS, demoraram assumir que se tratava de uma pandemia, uma vez que mais de 100 países já tinham sido afectados e, passados três meses da propagação desta doença, já estava presente, praticamente em todos os continentes, e já suscitava algum alarme por parte de alguns países. Por que razão tardou se assumir que se tratava de uma pandemia?

R – Mais uma vez não sei se tardou. A verdade é que a classificação desta situação, como uma pandemia, tem também os seus critérios. Foi seguindo esses critérios que se chegou à declaração nesse dia. Essa declaração tem o papel de, mais uma vez, acordar, lembrar as pessoas, que estamos perante uma situação grave. Em termos do que fazemos, ou é necessário fazer, não há uma mudança fundamental. As orientações, directivas, continuam as mesmas. O problema de se classificar como uma pandemia é mais para lembrar o mundo inteiro, que isto é uma questão de que agora, já não é um problema de alguns países, regiões. É um problema do mundo inteiro. Na altura em que foi declarada a pandemia, nem todos os países do mundo estavam afectados. Chega uma altura em que ficamos à espera, e pensamos que o tempo é longo, mas por detrás, há um trabalho que é feito. Uma análise, um trabalho para não criar muito pânico cedo e, afinal de contas, não era. Penso que não há como dizer que foi tarde ou cedo, foi no momento em que todas evidências levaram a OMS a considerar que estávamos perante uma pandemia.

P – Considerando que o momento sim, a 11 de Março, a OMS assumiu que se tratava de uma pandemia, quando se está nessa fase o que é que muda? Quais são as acções que emergem numa declaração de pandemia global?

R – Como eu disse, as acções fundamentais não mudam. Todas aquelas orientações que foram dadas aos países para se prepararem, prevenirem, criarem as condições para o isolamento, identificação dos doentes, para começarem a pensar que temos que lutar contra a doença, isso continua e não muda nada. A pandemia, como eu disse, cria um estado mundial, onde todos os países tem que saber que tem de fazer alguma coisa, por exemplo, os doadores.

 P – Não há necessidade de uniformizar as regras?

R – Não há regras para este e aquele país. As regras que são definidas são as mesmas para todos os países e estão a ser melhoradas, porque vamos conhecendo esta epidemia. Portanto, as directivas clínicas vão sendo melhores.

P – Isso para dizer que mantêm-se toda a autonomia do próprio Estado para tomar as suas próprias decisões de como lidar com esta doença.

R – Sim. Mas estamos todos no mundo interligados. O conceito da pandemia é para dizer que agora não é um problema só de uns. É um problema de todos. Mesmo quando temos a nossa autonomia para tomarmos as nossas decisões, a soberania do Estado não é posta em causa. Mesmo dentro do quadro do regulamento sanitário, que é uma lei mundial, os países que ratificaram tem obrigações legais perante esse regulamento sanitário internacional, mas mesmo nesse quadro, os países tem a sua soberania para tomar certas decisões que acham que são as melhores para eles. Mas neste mundo, devemos olhar uns para os outros para, criar a solidariedade, para nos lembrarmos que estamos num mundo onde todos somos iguais perante esta situação.

P – Como é que a OMS olha para atitudes como a do Brasil e dos Estados Unidos de América, no que concerne às declarações das suas lideranças. Refiro-me aos Presidentes, em que faziam discursos contrariando aquilo que eram as recomendações da OMS para protecção da vida humana.

R – A Organização Mundial da Saúde tem como função mundial, ser o garante da saúde pública. Tem a função de estudar as situações, criar as condições para que os países possam ter as melhores orientações para salvar maior número de vidas. Como eu disse, as interpretações podem variar. Eu não posso julgar a posição de Chefes de Estado. Penso que a OMS, até hoje, tem feito um trabalho fundamental, que nenhuma outra organização faz, ou está a fazer, que é tentar entender esta pandemia e oferecer informações credíveis. Para quem consulta o site da OMS, vai perceber quem tem lá informações diárias, que é para nos fornecer as armas necessárias para fazermos face a essa pandemia.

P – O facto de todos estarem a defender o distanciamento social para a protecção da vida humana, e os políticos entrarem em contramão.

R – Mais uma vez, gostaria que pudéssemos nos concentrar nas questões de salvaguardar a saúde da população, salvaguardar o bem-estar de todo o mundo. Eu penso que haverá sempre vozes discordantes mas, até hoje, as evidências tem mostrado que o distanciamento social tem o seu impacto e é uma das melhores estratégias que nós temos para combater.

P – Há cerca de duas semanas registou-se o primeiro caso da COVID-19 em Moçambique, de lá a esta parte, dez pessoas foram testadas positivo e já registou-se um caso de recuperação total. Estes dados de Moçambique te parecem realísticos?

R – Eu não tenho razões para pensar que não são realísticos, se me disser que há mais casos, eu vou lhe perguntar: Onde estão as evidências porque há mais casos. Mas é possível que haja mais casos. O Ministério da Saúde está a utilizar as orientações da OMS para testar. Existem regras, critérios, para testar esta ou aquela pessoa. Seguindo esta regra, há um número de pessoas que são testadas e são encontradas. Sabemos também que há pessoas que são positivas, mas não tem sintomas. Portanto, pode acontecer que haja pessoas que são positivas e não foram testadas. Isso faz parte da epidemiológica da situação. O mais importante é saber que o Ministério da Saúde está a fazer os controlos que são necessários a nível dos aeroportos, tentar identificar as pessoas que possam ser positivas, testar essas pessoas e, uma vez que são positivas, ir atrás, acompanhar e tentar monitorar os contactos dessas pessoas. Por enquanto, na fase em que estamos, essas são as estratégias que são preconizadas. Eu não vejo nenhum interesse em não dizer a verdade. Pelo que entendi, o Ministério da Saúde está a tentar diversificar estratégias para testagem, mas temos também que entender que a disponibilidade de testes no mundo inteiro é difícil. Não há nenhum país no mundo que tenha testes em função da necessidade. E nós ainda estamos num momento inicial da epidemial, portanto, devemos viver momentos mais difíceis. Quem vai ser testado ou não, também tem que entrar essa equação dos testes, portanto, eu penso que é realístico sim.

P – Considerando que, de uma forma geral, em vários países africanos, esta propagação tem uma progressão contida, se comparado ao que está a acontecer em vários países asiáticos, europeus, e até mesmo da América do Sul e América do Norte, em África são poucos os países cuja propagação foi muito forte. Exemplo da África do Sul, Marrocos e outros países, regra geral, a propagação está muito tímida. A própria OMS já chegou a assumir publicamente que não está muito confortável com as estatísticas apresentadas por África, que factores podem estar a travar esta evolução? É a limitação técnica de testagem ou em África, por alguma razão, este vírus não está a ter tanta força de actuação como nos outros cantos do mundo?

R – Não sei se podemos dizer que está lento. Se formos a ver a região africana da OMS como um todo, nós passamos de dez a 100 casos em toda região, em menos de 16 dias. Depois passamos de 100 a mil, em menos de 10 dias. Depois passamos de mil a dois mil em três dias e de dois mil a três mil em dois dias. Portanto, pode estar a parecer lento, mas dependendo da forma como olhamos, vimos que se calhar não está tão lento assim. Está a fazer o mesmo percurso que fez nas outras regiões. Agora estamos a olhar, á espera que aconteça e, se calhar, noutros países não estávamos a prestar muita atenção. Nós não estamos serenos porque a evolução está lenta. Esta evolução pode estar a parecer lenta por várias razões, como está a ser em muitos países. Nós não fomos surpreendidos e estamos a tomar medidas. Já a algum tempo estamos a falar nisso, a pensar nisso e pode ser por isso que está a nos parecer pouco, mas também, dizer que o volume de entrada de pessoas de fora através de voos, transportes terrestres é limitado. A fraca intensidade de entrada de pessoas pode estar a contribuir para que tenhamos poucos casos, mas eu penso que devemos, realmente, ver isso como uma janela de oportunidade que ninguém mais teve. Ainda temos mais tempo de nos prepararmos, mas sobre tudo de fazermos tudo que é possível para evitar que isto se transforme numa grande catástrofe.

P – Equacionam fazer alguns estudos para compreender melhor o nível de actuação deste novo coronavírus em África?

R – Sim, sim sim. A quantidade de estudos que estão em curso é imensa. Todos os aspectos epidemiológicos, tratamento, vacinas, há imensos estudos. Mesmo aqui em Moçambique, temos instituições de pesquisa que estão a tentar entender. Mesmo que haja estudos a nível mundial, estudos a nível do país são muito importantes porque estão mais adaptados a realidade local. Aqui também estão a acontecer estudos que são necessários porque precisamos de ter mais armas para combater esta pandemia.

P – Falava aqui de alguns factores que podem estar a determinar estes baixos níveis de propagação em África como acções, até mesmo preventivas, de vários governos. Olhando concretamente para aquilo que foram as medidas iniciais do sistema nacional de saúde considera-as eficazes?

R – Eu penso que temos que pensar que sim, porque do que foi feito, lembro-me que no primeiro mês que tivemos uma reunião para falar sobre isso foi em Janeiro. Não tínhamos condições de testagem e os primeiros que foram feitos foi na África do Sul, porque não tínhamos reagentes. Isto para dizer que o Governo e o Ministério da Saúde estão a trabalhar nisto já há muito tempo.Talvez as pessoas não saibam porque não se faz muito barulho, mas desde inicio que se começou a fazer o rastreamento nos aeroportos, colocar as pessoas que vinham de países afectados em quarentena, a questão da informação, isto são coisas que começaram desde o mês de Janeiro. A preparação do Sistema Nacional de Saúde, também começou em Janeiro para se chegar ao nível a que se está hoje, a mobilização comunitária e muito mais, pode estar atrás da situação que o país vive actualmente.

P – E a resposta politica, no seu entender, ela também é eficaz? O Presidente da República já declarou o Estado de Emergência e o seu Governo apresentou a fundamentação para clara compreensão de o que é que muda na nossa actuação com este cenário de estado de emergência do nível três. No seu entender estas medidas todas são suficientes para conter a propagação do coronavírus?

R – Eu penso que estamos num bom caminho. Desde a primeira declaração de nível um, dois e três, sentimos que há uma ponderação, porque estas medidas são difíceis. Há uma preocupação para se tomar medidas que são coerentes com a situação necessária e de forma gradual. Uma das coisas que poderá ser feita, quando isto tudo passar, é o efeito destas medidas graduais. Ainda temos mais um patamar, vai ser mais difícil ainda. Sabemos que temos uma população que precisa de sair todos os dias para ganhar o seu pão, eu gostaria de aproveitar esta oportunidade para felicitar as autoridades governamentais, S Excia o Presidente da República, porque é realmente minha convicção de que essas são medidas que são bem-vindas, apropriadas, atempadas e corajosas, provavelmente vão criar alguns problemas, mas tem que ser, não há outra solução, por isso eu penso que estamos num bom caminho.

P – Mesmo reconhecendo esta limitação mundial em termos de capacidade de testagem necessária de pessoas que possam eventualmente estar infectadas por este vírus, considerando que por causa do vírus, temos muitas pessoas que deixaram África do Sul e voltaram ao país. O que seria sugestivo em termos de testagem diária desde grupo que chegou ao país vindo de um país já com alta propagação?

R – Essa é uma preocupação e sei que o Ministério da Saúde está ciente disso. Estão preocupados e a trabalhar com as autoridades locais, para tentar localizar essas pessoas e fazer elas perceberem que devem fazer uma quarentena. São pessoas que podem pôr em risco a vida do resto da população. Não existe nenhuma forma possível de testar a todos, ao mesmo tempo, porque quem é negativo hoje, amanhã pode ser positivo. Daí que deve ter sempre critérios para a testagem. Esses critérios podem mudar ou evoluir em função da evolução da pandemia. Por enquanto, os critérios são esses que foram definidos e estão a ser usados pelas autoridades de saúde. A vigilância em relação à entrada de pessoas que vem da África do Sul é necessária, e deve ser reforçada.

P- Que apoio é que a Organização Mundial da Saúde já prestou a Moçambique?

R – Eu vou dividir em dois grandes grupos. Temos um trabalho que é efeito a nível mundial e na região africana em que segue as funções centrais da OMS. Seguir a epidemia, colher os dados para perceber as tendências, criar conhecimento à volta da doença. A segunda grande função é a produção de directivas técnicas para o tratamento, a prevenção, o isolamento, uma serie de directivas que são produzidas diariamente, e como disse, diariamente temos novas directivas. Essa é uma outra grande função que a OMS tem. A terceira é a pesquisa. Coordenar a pesquisa a nível mundial para que essas pesquisas possam informar as directivas que a OMS cria. No mundo inteiro estão a acontecer centenas de iniciativas para se conhecer melhor a doença, e tudo isso, é coordenado pela OMS. Uma outra função da OMS é o apoio técnico aos países. A questão da mobilização de fundos é outro papel da OMS, através dos seus escritórios regiões. A nível de Moçambique, nós trabalhamos mais a parte da assistência técnica que é dada aos países, e nesse sentido, temos estado a trabalhar com o Ministério da Saúde para fazer o plano do que foi feito, organizar os diferentes grupos que estão a trabalhar. Todos os funcionários técnicos da OMS em Moçambique estão neste momento a trabalhar com os colegas do ministério para fazer as directivas do tratamento, de acolhimento, melhorar a vigilância, a formação do pessoal. Fazemos também formações usando os meios tecnológicos. São formações feitas em Genebra, mas as pessoas participam. Esse é o trabalho fundamental da OMS aqui no país, que é estar ao lado, de modo a criarmos condições para estarmos prontos.

 

P – E este apoio pode vir a ser reforçado caso a capacidade de resposta do Sistema Nacional da Saúde fique limitada?

R – Isso são possibilidades que existem e nós hoje temos uma limitação porque as pessoas que podiam nos ajudar estão neste momento nos seus países a ajudar os seus países. Temos hoje pessoas que estão em quarentena, as fronteiras funcionam com limitação, eu penso que o Ministério da Saúde e o Governo estão a utilizar as capacidades que tem no país. Há muitas pessoas que não estão no Sistema Nacional da Saúde, penso que isto já começou, tentar capacitar as pessoas e o que irá vir de fora é aquilo que nós não podemos arranjar aqui, como é o caso de aparelhos, material de protecção, luvas e muito mais.

P – E de onde poderá vir este material de apoio num cenário crítico, considerando esta realidade em que vários países também estão a olhar para os seus próprios problemas, e outros nem por isso. Com esta conexão global da OMS de onde acha que se pode activar uma solidariedade para fazer face a esta situação de modo a que não se torne mais caótica?

R – Não tenho os elementos hoje para lhe dizer de onde. Moçambique está na mesma situação que outros países e seria bom aumentarmos a sua capacidade, isso não sendo possível, o que pode ser feito é melhorarmos a capacidade dos que estão aqui. Isso é possível. Como eu disse, nós tivemos um período de oportunidade para nos prepararmos no sentido de formar as pessoas.

P – Moçambique tem capacidade de tratamento desta doença?

R – Esta doença não tem tratamento, por enquanto. O tratamento que se faz hoje em dia é dos estados gripais em que se dá os antitérmicos, os analgésicos e em casos mais graves, ter acesso a oxigénio, e em casos muito mais graves, ter um ventilador.

P – O que é que recomendaria a Moçambique, em caso de doentes mais graves? Mesmo que não seja um tratamento direccionado, mas quais são os medicamentos que estão em cima da mesa que podem ser recomendados pela OMS nestas circunstancias?

R – Por enquanto a OMS não está recomendar nenhum tipo de medicamentos, porque não temos evidências suficientes de que tipo de medicamentos podem funcionar.

P – Com a larga experiência de tempo de trabalho que tem em África, conhecendo o continente, aliás também é africana e actuou em vários anos nesta questão de saúde pública, o que acha que seria mais adequado para lidar com esta doença?

R – Eu penso que África precisa de encontrar as suas próprias estratégias. Nós precisamos, realmente, de trabalhar para encontrarmos as nossas próprias estratégias. Já temos estratégias que são adaptadas à nossa realidade e precisamos de mais. Eu diria, por exemplo, a questão da zona rural, trabalhar nas comunidades mais afastadas onde não há pessoal de saúde tão perto. Nós temos que criar uma forma de criar uma vigilância que esteja perto. Também temos a questão de envolvimento dos líderes religiosos, comunitários, associações. São todos braços que podem ser usados. Aliás, a experiência do ébola mostrou isso, que as respostas e estas epidemias não são fundamentalmente de saúde. Há uma resposta da sociedade, que implica o envolvimento de muito mais actores. Uma resposta que tenha a ver com a nossa realidade, a nossa cultura e tradições.

 P – Qual seria essa resposta?

Um das experiências foi o trabalho com as pessoas nas comunidades. Estas são formadas para fazer a vigilância. A própria comunidade faz a vigilância e a ligação com as demais estruturas. A ideia principal é o empoderamento da comunidade e ser ela mesmo a liderar os processos localmente. Eu sei que estão a acontecer coisas dessas aqui em Moçambique. Temos estado a ver o grande envolvimento dos líderes religiosos. Isso é muito fundamental e dá resultados em termos práticos. Sei também do envolvimento dos líderes comunitários, é um trabalho longo, mas vale a pena e pode criar uma certa resiliência a nível das comunidades.

P – Alguns países tornaram obrigatório o uso de máscaras, mas a OMS não recomenda e diz que apenas devem ser usados por grupos específicos. Há ou não risco de contaminação cujo o uso de máscara pode ajudar a não contaminação.

R – As mascaras clássicas devem ser deixadas para o pessoal de saúde porque estes estão em maior risco. O pessoal da saúde realmente precisa dessas máscaras. São as principais vítimas e as máscaras não existem tanto como queríamos, portanto, esse princípio, para nós é fundamentada no sentido de que as máscaras devem ser deixadas para as pessoas que mais precisam. A máscara também deve ser usada por alguém que toma conta de uma pessoa que está doente. A máscara também é aconselhada para uma pessoas que está doente, em isolamento em casa, para poder proteger o resto da família. Agora, as m?scaras feitas em tecido, também tem o seu valor. É preciso perceber que a máscara, ela sozinha não é suficiente. Tem que se continuar a observar o distanciamento social, lavar as mãos frequentemente, evitar tocar na boca, na cara, usar a etiqueta da tosse, portanto, a máscara pode ser um elemento de apoio, mas é preciso reservarmos a máscara para quem realmente precisa dela.

P – Fez menção aqui ao vírus da ébola, ou a experiência no combate a este vírus que foi uma epidemia que actuou fortemente em África, pese embora tenha sido registado também em alguns países europeus. Foi uma epidemia que de forma muito acelerada atingiu o pico, ceifou vidas humanas, cerca de onze mil pessoas perderam a vida. Levou-se alguns anos para ser contida, mas conseguiu-se. No caso de coronavírus comparado com o ébola, que experiência do ébola é valida para o novo coronavírus?

R – Uma das grandes lições da luta contra ébola é a questão das comunidades. Eu lembro que no início, a resposta do ébola foi fundamente da saúde, resposta médica vamos assim dizer. Todos nós lembramos as reacções que houveram a nível das comunidades e só um trabalho antropólogico, sociólogico, um trabalho com as comunidades, levou o seu tempo para que as comunidades aceitassem as medidas, e elas mesmas tomassem essas medidas. Mesmo na República de Congo. Foi necessário perceber que o trabalho das comunidades é muito mais fundamental porque o trabalho das pessoas da saúde é tratar.

Quando estamos a falar de prevenção, de não ficar doente, o papel e envolvimento das comunidades é fundamental. Penso que vamos ter necessidade de fazer isso também no caso do coronavírus, porque em África não temos outra solução. Temos que prevenir. Temos que prevenir porque os nossos sistemas de saúde não vão aguentar uma avalanche de pessoas doentes e que vão precisar de cuidados de saúde, portanto, prevenção é fundamental e o envolvimento das comunidades é um elemento chave e devemos apostar.

P – Chave também é a questão da vacina. Para quando e quais são as projecções da OMS?

R – Aquilo que se sabe hoje é que as vacinas não vão estar disponíveis antes de um ano. Um ano e meio ou dois, porque a produção de uma vacina leva tempo e as vezes não é possível. Temos exemplo do HIV que hoje não tem vacina. Portanto, são trabalhos científicos que estão a decorrer a uma velocidade imensa. Hoje temos que basear as nossas estratégias com outros elementos, enquanto esperamos que a vacina chegue. Por isso é que sempre dissemos que se conseguirmos baixar a curva, a epidemia se alastre mas sem causar muitas mortes. Talvez vamos ter tempo para que, daqui a um ano, um ano e meio, termos a vacina. Este é um assunto que ainda não é uma arma que está disponível para nós.

P – A OMS repudiou as declarações de dois cientistas franceses que disseram, numa declaração, que as vacinas deviam ser testadas em África. Qual é o protocolo de produção de uma vacina?

R – A produção da vacina deve ser uma das coisas mais sensíveis porque a vacina é dada a pessoas sãs, pessoas que não estão doentes. É dada para milhões de pessoas. O princípio da utilização da vacina é um princípio muito mais sensível, damos a milhões de pessoas e damos pessoas sãs. Portanto, os cuidados para produção de uma vacina são muito especiais e os protocolos do teste são muito claros nisso. Não há protocolos especiais para África. África não vai servir de cobaia. Penso que o director-geral da OMS falou muito bem em relação a isso. Qualquer protocolo de testagem das vacinas vai ser sempre mundial e os vários países irão seguir os mesmos princípios, porque o processo começa com um pequeno número e depois um número maior para poder se chegar à conclusão de que, essas vacinas não são nocivas. Porque esse é o problema. Estarmos a tratar um assunto e criar outro. Para termos certeza que esta vacina não é nociva, a mesma deve ser testada em um número maior de pessoas

P – Haveria alguma hipótese deste pensamento se traduzir em realidade? Estes comités de ética e outros organismos tem o controlo suficiente para evitar situações desta natureza?

R – Eu penso que sim, hoje em dia os países africanos estão mais armados, temos universidades, cientistas e vir fazer um testes desses em África, sem passar pelas comissões de ética, é impensável. Estamos armados para que as populações estejam protegidas. Não queria fazer comentário, mas essa declaração foi mal pensada, mal dita, não reflecte mesmo nada

P – Há registo, na história moderna, de um povo que tenha sido usado como cobaia?

R – Existem histórias, sim. Mas prefiro não entrar nessa, porque são coisas muito antigas, no contexto muito diferente do actual.

P – A Organização Mundial da Saúde anunciou que está a preparar um novo projecto para mapear a real extensão da COVID-19 em todo o mundo. A ideia é executar testes em massa para identificar anticorpos contra o vírus na população. Quando é que vai arrancar e como é que será em África este projecto?

R – Qualquer um desses projectos de pesquisa, são para melhorar o conhecimento sobre a doença. Quando fazemos anúncios e questionamos que países querem participar, quase todos os países se apresentam como voluntários. Uma das pistas é essa questão. A utilização de soros de pessoas que já passaram pela doença, mas, é preciso ter evidências suficientes, porque tratar uma pessoa não é evidência suficiente, é preciso ter um número grande para também se avaliar os efeitos colaterais. Por isso é que quando colocamos ou temos envolvimento de muitos países, isso nos permite ver o que é que funciona numa condição e o que é que não funciona numa outra condição. Não sei quando é que vai começar, mas a ideia é que o maior número dos países possa participar para que possamos ter, o mais rapidamente possível, todas as evidências necessárias para tratar esta doença.

P – Falou desta intenção de vários países aderir a esta iniciativa, mas o querer e o poder não são sinónimos. Muitos querem, mas nem todos podem. Como é que a OMS vai lidar com esta situação para envolver até os que não podem.

R – A verdade é eu para se fazer estudos há também pré-requisitos. Temos que ter comités de ética, por exemplo. Isso é fundamental. Temos que ter instituições de pesquisa que já tenham a capacidade técnica, os conhecimentos e experiência. Uma vez que isso existe, normalmente não há porquê não participar, mesmo porque cada país tem a sua autonomia para fazer essas pesquisas. Quase todas pesquisas que são feitas a nível mundial para se tomar decisões, são feitas em vários países, e os países participam, segundo as capacidades que tem. E quando participam é para contribuir para um conhecimento mundial sobre essa doença. Acredito que todos países que queiram vão poder participar. Evidentemente que não são os dados de todos os países que serão utilizados, porque talvez um e outro país não terá seguido o protocolo.

 

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