O conceito de literaturas emergentes surgiu nas últimas décadas como consequência das chamadas teorias pós-coloniais e alargou-se, por influência da poderosa academia norte-americana, tanto às denominadas literaturas de minorias (étnicas, de género, de orientação sexual), como às literaturas formadas no interior dos processos de colonização e descolonização, independentemente das características destes. Embora não recuse o interesse de um corpus teórico subjacente às reflexões sobre questões comuns às literaturas produzidas no quadro das diferentes colonizações, não posso deixar de concordar com algumas das reservas na sua aplicação, nomeadamente o facto de estas teorias terem os seus próprios limites e de correrem o risco de virem a ser cúmplices da "imaginação colonial", ao representar de forma totalizante as literaturas que emergiram de situações coloniais, independentemente da conjuntura histórica em que se desenvolveram. Prefiro pois entender este conceito a partir de uma das suas componentes estruturantes i.é, dos processos de ruptura (na maioria engendrados por rupturas políticas) que acabaram por abranger o campo artístico. Há ou houve literaturas emergentes num dado momento histórico, em que contradições estéticas/ ideológicas criaram condições para a ascensão de novos modelos culturais. De qualquer modo, o conceito não é pacífico e presta-se a aplicações variadas, muitas vezes marcadas pelos pressupostos do politicamente correcto.
As independências africanas, iniciadas em 1957 com a independência do Ghana, não só foram tributárias de um passado histórico, orientado para a ideia de revolução social e afirmação identitária, como implicaram esta herança nos respectivos movimentos culturais e literários, concretizada em rupturas relativamente às literaturas da ex-potência colonial. Estas rupturas instituíram a tendência de autonomia por intermédio de algumas dominantes temáticas, tendentes a recuperar elementos históricos forjadores das novas identidades. Pode considerar-se como um dos paradigmas dessa postura, a obra ficcional do escritor nigeriano Chinua Achebe, iniciada em 1958 com Things fall apart, o qual considera ser um dos desígnios do romance africano o tornar-se o instrumento formal da reinvenção de uma cultura africana, de uma nova comunidade nacional, face à perda que a colonização representou.
Mas, como salienta Arjun Appadurai, a propósito da forma como o cricket se 'indianizou', "la décolonisation, pour une ancienne colonie, ne consiste pas simplement à démanteler les habitudes et les modes de vie coloniaux, mais aussi a dialoguer avec le passé colonial." Ora esse diálogo com o passado colonial tem produzido no campo literário, situações discursivas hoje geralmente aceites como híbridas, sob influência do posicionamento teórico de Homi Bhabha, que as caracteriza como “(…) complex strategies of cultural identification and discursive adress that function in the name of the ‘people’ or the ‘nation’(…)”.
Este conceito adquire um significado mais amplo, quando associado aos de transculturação e de transtextualidade, porque possibilita a leitura do corpus literário produzido por/contra os sistemas literários trazidos pela colonização, como transformações e apropriações das suas formas, com utilização de estratégias específicas que assim respondem à necessidade de forjar novos sistemas. São essas estratégias que, deixando entrever culturas diversas (orais e escritas), textualizam a nação, na perspectiva em que Benedict Anderson encara a construção dos elementos de pertença a um espaço nacional.
Esse foi um processo evolutivo que possibilitou que ao longo de cerca de 100 anos a "imaginação colonial" fosse cedendo o lugar à " imaginação nacional" e seja por isso possível perceber hoje a coerência e coesão dos paradigmas que em geral orientaram, desde o princípio do século XX, a produção escrita nos países africanos submetidos à colonização europeia, no caso presente à portuguesa, e que em Moçambique me parecem estruturados grosso modo, em torno dos seguintes conteúdos:
a) Ser Africano e Ser Europeu (Proto-nacionalismo) – Este primeiro paradigma está representado em Moçambique pela actividade jornalística e literária desenvolvida a partir dos jornais O Africano (1908-1918) e O Brado Africano (1918-1974) nas décadas de 20 e 30 e pela poesia de Rui de Noronha.
b) Ser Africano vs Ser Europeu (Negrismo/ Negritude) – Na problematização do Ser Europeu, visíveis nas primeiras manifestações poéticas de Orlando Mendes, podem-se reconhecer alguns dos tópicos da poesia negrista de outras latitudes, embora um trabalho de desconstrução as possa identificar como formas de pré-negritude. Horizontalmente este tipo de Negrismo vai cruzar-se com as utopias pan-raciais de grande parte da poesia inicial dos poetas da geração dos anos 50 (Fonseca Amaral, Noémia de Sousa, Rui Knopfli) extensivas a Godido, de João Dias. Esta tendência utópica transforma-se progressivamente num conjunto de valores de grupo exibidos como contra-discurso, criador de uma nova ordem, instituindo-se por isso em ideologia. Este movimento é coroado pela poesia negritudinista de José Craveirinha representada em Chigubo (1964) . e Nós matámos o cão tinhoso de Luis Bernardo Honwana
Ser Nacional vs Ser Universal (tendências variadas pós-independência) – A filiação numa estética dita universal, por parte das recentes gerações de escritores, embora se possa também ler nacional/regional, mas não necessariamente étnica. Isto é, parece que o percurso temático – e, a um outro nível, o discursivo – desta literatura se orienta no sentido da transformação da natureza do diálogo com o passado colonial, de tal modo que os seus elementos estruturantes se vão naturalizando ou "indigenizando", para usar a terminologia de Appadurai a propósito da indianização do cricket, desporto arqui-britânico à partida.
Esta consequência pareceria conferir ao corpus literário uma consistência ontológica que lhe garantiria por si só a existência, se não considerássemos o facto de, na definição de sistema literário nacional, não intervirem apenas o conjunto de obras produzido. Na verdade, o desejo (consciente ou não) de nação vai sedimentando temas e formas iscursivas, como parte de um novo sistema literário, mas a sua existência só é assegurada por um reconhecimento posterior pelos diversos elementos de recepção – crítica, reconhecimento nacional e internacional, prémios, edições nacionais e traduções – e que, integrados no sistema de ensino – (curricula, programas, manuais) reproduzem conceitos e valores que, actuando em cadeia, convergem para a instituição do novo cânone, a literatura nacional.
Há alguns anos reflectindo sobre esta questão produzi algumas considerações que verifico manterem-se actuais no que se refere à caracterização do cenário empírico que tornava explícita a posição a partir da qual se processava a minha reflexão: Cenário paradoxalmente desarticulado, com pontos de referência contraditórios, aberto neo-liberalmente a qualquer investimento ideológico, sem capacidade ou vontade de produzir resposta à sua amplificação pelas auto-estradas da informação, composto de uma diversidade de atitudes, que vão das nacionalistas e partidárias obliteradas até recentemente – e subitamente ressurgidas – às pragmáticas que se entrecruzam e colocam na concorrência o futuro da vida cultural do país, incluindo a literária. Atitudes cuja origem não é sempre localizada, mas que se encontram disseminadas nas complexas redes sociais económicas e políticas moçambicanas, desde as políticas de ajustamento estrutural impostas pelos organismos internacionais, fragilização do Estado, gravosa para políticas de educação e de cultura consistentes, múltiplas, diversas e por vezes contraditórias políticas de ajuda até ao papel da comunicação social, preocupada em perseguir a vida política e económica da nação, deixando de lado a esfera cultural e educativa, ou reservando-lhe o papel de derivativo;
Sintomaticamente Francisco Noa fazia eco desta situação nessa altura com um texto com características de manifesto, intitulado “A riqueza das nações”, que me parece reflectia nesse momento o incómodo das novas gerações de intelectuais moçambicanos que, não tendo – felizmente – vivido em pleno a situação colonial, i. é., sendo de alguma forma ‘filhos da independência’ e da sua dinâmica de orientação socialista inicial, não se revia na nova conjuntura política e económica, trazida pela economia de mercado, ainda que dela pudessem e possam parcialmente beneficiar, o que dava a medida dos efeitos gerados pelos factores que tentei caracterizar como conducentes à desvalorização do campo cultural.
(…) meter no mesmo saco, ciências sociais, livro, cultura (refiro-me a cultura como edificação), como alvos a abater, implícita e explicitamente, é bem um dos grandes sintomas de ligeireza do nosso tempo e da tirania do materialismo pós-industrial e rasca. E é também revelação do temor que se tem em relação à palavra enquanto expressão de ideias livres, plurais, dinâmicas, construtivas, inconformadas, diversificadas, questionadoras. Sobretudo, enquanto afirmação de sabedoria e de um apurado sentido crítico.
Ainda que muitos destes factores se mantenham actuais, no inicio desta década a situação evoluiu para outro patamar mercê de um fenómeno que se vinha manifestando desde os anos 90 (não me parece indiferente o estabelecimento do multi-partidarismo) com surgimento de grupos de jovens escritores que de alguma forma se afirmavam fora do quadro da protecção institucional de que tinham beneficiado os seus antecessores através da AEMO. Deu-se assim origem à consolidação de uma nova geração composta por escritores nascidos depois da Independência e que da anterior dinâmica de orientação socialista e partido único têm apenas conhecimento diferido. Destacam-se alguns poetas e ficcionistas talentosos que de forma recorrente forçam a sua entrada no campo literário.
Embora a AEMO tenha recuperado algum do seu dinamismo inicial, agora com Ungulani ba ka Khosa a dirigi-la esta geração parece não ter interesse numa dependência que lhe possa cortar ou controlar iniciativas. A intensa actividade cultural e nalguns casos editorial de outro tipo de instituições nomeadamente a Fundação Fernando Leite Couto e a Escola Portuguesa em Maputo, a Casa do Artista na Beira e os vários Centros Culturais ligados a diferentes embaixadas principalmente em Maputo e Beira abrem espaço para que estes grupos encontrem reconhecimento próprio quer através de edições quer através de iniciativas culturais de índole diversa, tomando a seu cargo diversas formas de estimular a recepção das obras que editam, o que está reflectido no contacto com escolas dos vários graus de ensino, em edições internacionais ou prémios. São jovens com formação superior e ocupação profissional estável o que lhes retira alguma da aura boémia os seus antecessores mas lhes confere em contrapartida capacidade para as engenhosas soluções editoriais e de marketing que praticam. São uma geração das novas tecnologias, aberta a um mundo em que as fronteiras se tornam porosas, que conscientemente aproveita as vantagens dos caminhos abertos pela Internet, no Facebook, nos blogs em todo esse aparato tecnológico que integra soluções culturais para o nosso presente e que nos caso de países como Moçambique em que existe uma hipertrofia dos grandes centros urbanos, permite colmatar as assimetrias existentes.
O surgimento paralelo neste ambiente, dos romances de João Paulo Borges Coelho, ele que do ponto de vista etário e social provém de um Tempo onde se sucederam regime colonial, guerra de libertação e toda a Utopia trazida por um discurso que se pretendia libertador, não deixa de ser um fenómeno que rompe com a uniformidade criada por esta nova geração em ascensão.
A vivência comum destes outros tempos num país, num continente e num mundo ameaçados por novas barbáries e outras tantas 'guerras santas', no âmago de outros paradigmas civilizacionais de que perplexos não descortinamos ainda os efeitos, será certamente um elemento a ter em consideração quando colocamos em contraponto a escrita de JPBC e a dos seus congéneres.
Os inúmeros estudos que lhe têm sido dedicados bem demonstrados neste Congresso dão conta de um percurso surpreendente e singular fora das expectativas que nos finais da década de 80 estavam criadas em relação ao desenvolvimento da literatura moçambicana.
Como nota final gostaria de assinalar que existe na recepção a JPBC uma tendência para privilegiar alguns dos romances, deixando na sombra outros por razões que me parece estarem relacionadas com alguma complexidade de discurso.
Por esse facto gostaria de os referir: trata-se de Campo de Trânsito e Cidade dos Espelhos a que ainda acrescento As duas sombras do Rio romance de estreia com que nos surpreendeu.
Se foco esta questão é porque me parece que nestes três romances reside a grande novidade trazida para a literatura moçambicana: uma consistência ontológica e perspectiva filosófica subjacente às narrativas com a construção de arquétipos que deixam perceber a concepção filosófica que lhes está subjacente, bastante próxima do pensamento de Emmanuel Levinas sobre a guerra, a violência, a tirania e os seus efeitos, destruidores da capacidade agir livremente.
O questionamento do conceito de totalidade que, segundo Levinas domina a filosofia ocidental, parece ser o fio condutor destes romances, cujas personagens podem ser percebidas como´´portadores de formas que os comandam sem eles saberem´´(Levinas) : Ao interpelarem de forma reiterada, visões do mundo consolidadas, opondo-lhes outras leituras do real, fornecem matéria abundante de reflexão, que ultrapassa a mera realidade de Moçambique.
A sua leitura reorienta-nos para o campo necessariamente vasto do presente cuja unicidade, para Levinas em Totalidade e Infinito (p.10) ´´ se sacrifica incessantemente a um futuro chamado a desvendar o seu sentido objectivo´´. Se seguirmos o ponto de vista deste filósofo para quem ´´só o sentido último é que conta, só o último acto transforma os seres neles próprios´´ (…) ´´eles serão o que aparecerem nas formas já plásticas da epopeia´´, não será difícil encontrar este subtexto nestas três inquietantes narrativas que marcam e distinguem de forma acentuada a ficção de João Paulo Borges Coelho de quem se esperam sempre surpresas.
Fátima Mendonça