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“Quem estuda literatura deve ter noção de responsabilidade social”, Carlos Reis

O ensaísta português Carlos Reis esteve numa conversa sobre o tema “História como ficção e ficção como história”, esta quarta-feira, na Fundação Fernando Leite Couto. Entre várias questões, tratou da importância da literatura e dos estudos literários.

 

Ontem à noite, o professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra esteve na Fundação Fernando Leite Couto, na Cidade de Maputo, para conversar sobre coisas importantes, tendo, como pretexto, o tema “História como ficção e ficção como história”. Entre várias perguntas colocadas ao ensaísta português, houve esta: “Por que continuar a estudar literatura neste mundo tão efémero?”.

Ao responder à pergunta, Reis, primeiro, esclareceu que um estudo literário não tem a pretensão de contribuir para que um autor escreva melhor. O estudo, neste contexto, é uma forma que a literatura tem de existir e de fazer experiências onde disputa espaços com outras disciplinas. “Quando a literatura desaparecer desse espaço material e, sobretudo, simbólico, então, estamos em apuros”. E lembrou: “Já começa a desaparecer no ensino secundário, em Portugal”.

Dito isso, indo directo à pergunta formulada, Carlos Reis defendeu que “quem estuda literatura deve ter noção de responsabilidade social, isto é, de que aquilo que está a fazer é orientado para uma sociedade”. Para o ensaísta português, o que não deve acontecer é pensar-se que a função da literatura é de responder a soluções imediatas. Não é sobre isso, mas sobre a importância de ensinar e de ajudar a ler textos e a desafiar à reflexão. “Quando nós perdemos isso…”. A frase não foi concluída, no entanto, o público que esteve presente na sessão ouviu Carlos Reis sustentar a tese de que a formação em literatura não é um risco, antes deve ser um gosto. “Não me vejo a ensinar e a estudar literatura sem eu gostar e sem as pessoas gostarem. Quando os meus alunos diziam que não gostam de um determinado texto, eu perguntava-lhes: E você acha que esse texto gosta de si? É preciso introduzir na noção do estudo da literatura a ideia de dificuldade. Estudar literatura é ler outras camadas que o leitor comum muitas vezes não vê. E o estudioso não tem de se gostar de todos os textos”.

 

Sobre o impacto da obra de Carlos Reis em Moçambique

Um dos autores de referência no curso de Literatura Moçambicana leccionado na Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane (UEM) é, seguramente, Carlos Reis. Quem se propõe a analisar textos de ficção, muitas vezes, tem nos seus estudos narrativos uma base indispensável. Por isso mesmo, à pergunta Carlos Reis tem noção do quão a sua obra é importante em Moçambique (?), tendo o caso da UEM apenas como exemplo, o intelectual português respondeu: “Nunca ninguém tem a noção da marca que deixa ou que não deixa, porque publicar um livro, ainda mais literário, de teoria ou de crítica, é como atirar uma pedra para um sítio que a gente não sabe muito bem onde irá cair”. De olhos fixos no público, Reis continuo: “Ao entrar para o Anfiteatro da UEM [para uma palestra sobre Craveirinha e Saramago, na manhã desta quarta-feira], ver que estava cheio de alunos – e de alguns colegas também –, alguns sentados nos degraus, eu fico emocionado e penso, valeu a pena, tem valido a pena. Tenho a noção de que, por vezes, acertamos no alvo”.

Ainda assim, Carlos Reis entende que os seus livros são invariavelmente efémeros. Os que não o são, pertencem aos grandes escritores, dos quais se fala mesmo passados tantos anos. “Os nossos, passam, com o desgaste daquilo que trazem consigo em termos de carga de fundamentação teórica”.

 

“História como ficção e ficção como história”

De acordo com Carlos Reis, na literatura e na filosofia cabe tudo. Enquanto não se faz um tratado de medicina escrevendo-se sobre praias de Moçambique, pode-se escrever um romance falando-se de operações cirúrgicas. A literatura e a filosofia desfrutam, segundo disse, da “suprema liberdade de não servirem para nada”. Essa inutilidade imediata, permite àquelas duas áreas do saber ter uma utilidade mediata. “Mas é preciso ler, entender e descodificar a mensagem, enquanto o tratado de medicina já passou de moda”.

Referindo-se particularmente do tema da conversa, Reis assumiu que a ficção também é uma forma de viagem. Nesse sentido, importante porque na viagem se vêem as coisas a seguir umas as outras. Tudo isso ganha corpo com a narrativa. “Não há motivo mais claramente narrativo do que a viagem”.

Durante a conversa, houve ainda oportunidade para o ensaísta revelar que prefere trabalhar de manhã, e não à noite, e a categoria narrativa que lhe interessa mais como estudioso: a focalização, para quem é muito exigente e perigosa, “mas é essa a grande perspectiva da narrativa e da arte’.

 

Craveirinha e Saramago

As semelhanças entre José Craveirinha e José Saramago não se resumem ao ano de nascimento, mas ao facto de terem enfrentado o mesmo tempo colonial, ditatorial, e por terem vivido uma relação narrativa com o mundo. “O que me apercebo na poesia de Craveirinha, por exemplo, em Karingana ua karingana, é que aqueles poemas têm potencial narrativo considerável. A própria construção do livro é pro-narrativa. A narrativa está inscrita na poesia como está inscrita no teatro”.

A sessão “História como ficção e ficção como história”, que durou uma hora, foi a primeira de seis conversas que irão acontecer ao longo deste ano. A conversa inseriu-se no programa “Estórias não habituais”, da Fundação Fernando Leite Couto em parceria com o Camões – Centro Cultural Português em Maputo.

 

Biografia de Carlos Reis

Carlos Reis é professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra, sendo especialista em Estudos Narrativos e em Literatura Portuguesa dos séculos XIX e XX, sobretudo no domínio dos estudos queirosianos. Autor de mais de 30 livros (último em data de publicação: Dicionário de Estudos Narrativos, 2018), ensinou em universidades da Europa, dos Estados Unidos e do Brasil.  Dirige a Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós (20 vols. publicados) e coordenou a História Crítica da Literatura Portuguesa (nove vols.). Foi director da Biblio­teca Nacional, reitor da Universidade Aberta e presidente da Associação Internacional de Lusitanistas e da European Association of Distance Teaching Universities.  É doutor honoris causa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e membro da Academia das Ciências de Lisboa e da Real Academia Española, tendo sido distinguido também com os prémios Jacinto do Prado Coelho (1996), Eduardo Lourenço (2019) e Vergílio Ferreira (2020). Actualmente, é comissário para o Centenário de José Saramago.

 

 

 

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