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Quando os dias correm mal aos astros – Uma narrativa faz de conta

Quando se diz “uma narrativa faz de conta” a ideia que fica é a de que estamos diante de uma coisa que não é, ou se quisermos, que pretende ser, que se insinua, que tenta. Mas neste caso em que o tema é  Jorge de Oliveira e o seu último livro, apresso-me a esclarecer que o termo “faz de conta” pretende ser apenas uma saudável provocação, uma alusão a uma forma de escrita que desde sempre o escritor pretendeu construir, “fazendo de conta” que a literatura também se pode erguer sem se estar amarrado aos paradigmas que orientam a arte de escrever. O Jorge de Oliveira vem criando o seu percurso literário de uma forma desinteressada, posicionando-se como um escritor que nunca levou a escrita demasiadamente à sério, ou seja, como uma questão de vida ou de morte, de tudo ou nada, para ele, escrever é uma imensa fonte de prazer, uma maneira de retirar da vida a solenidade que se lhe veste, emprestando-a outra roupagem, sem lhe retirar a seriedade que lhe é devida. Talvez seja a espontaneidade e a simplicidade, o grande mérito deste livro.

“Quando os dias correm mal aos astros” é um livro de contos, uma colectânea que fala de um povo em constante sofrimento, incapaz de ultrapassar as vicissitudes da vida e coagido por um poder que de uma ou de outra forma impõe a sua ordem, impedindo o progresso e o bem-estar. Este livro tem a particularidade de se apresentar como se fosse um álbum de fotografia e o Jorge de Oliveira uma espécie de fotógrafo ambulante que percorre os lugares mais desencontrados desta sociedade para captar com o seu “click” as imagens mais perturbadoras desta vida, assim como as situações mais caricatas, pois, como se sabe, “um escritor exerce sempre uma acção moral”, ele se insurge, se emociona, e depois, através da escrita, reivindica, consciencializa. Parece- nos ser esta a função do último livro do Jorge de Oliveira.

“No gelo do silêncio, sentiu-se o céu desabar sobre as cabeças. Pôs o dedo no ar, não queria incutir medo mas estimular, nos inseguros, a confiança em si e garantir a vitória final contra os inimigos da sua pátria de heróis. Ele vinha com as nuvens, toda gente via, até os que sonhavam abatê-lo, em si estava o Alfa e o Ômega, era, fora e havia de ser, preenchia o Estado, utilizava uma vara de ferro e quem se metesse consigo morria partido igual a uma vasilha de barro. Os seus caminhos iluminavam qualquer um, logo todos deviam temê-lo e prostrar-se diante dele pois as suas sentenças andavam há muito descobertas. Quem não me conhece? Experimentem contrariar-me, faço como da outra vez, retalho o mis espertinho, separo unhas e pestanas e meto na minha caixinha de joias. Estamos juntos?”

Jorge de Oliveira oferece-nos um livro com um título que nos sugere muitas coisas, “Quando os dias correm mal aos astros”, colocando-nos no dilema de questionar quem serão os astros, nós o povo ou os outros? E o que nos interessa saber? A única coisa que temos a plena consciência é de que “se os dias correm aos astros, ao Jorge a prosa corre bem!”. As estórias deste livro são construídas com a mesma naturalidade com que se respira, ou seja, da mesma forma como o autor observa as questões obscuras que afugentam a nossa sociedade, ou seja, “o luto que é viver no lado mais sombrio da pobreza”. São essas incongruências sociais que Oliveira privilegia de forma particular na sua obra fazendo dele uma espécie de griot que canta permanentemente à injustiça.

Cada conto é um conto, isto é, cada história vale por si mesmo, a fazer-nos recordar as nossas próprias histórias, os cenários que -assistimos no nosso país. Não restam dúvidas que o Jorge de Oliveira é um bom fotógrafo, quer dizer, um bom escritor, não existe palavra amais nem a menos, cada palavra tem a sua missão, por isso o espelho que Oliveira coloca diante de nós nos faz ver o país inteiro, as nossas pobrezas, as nossas sacanices, as nossas alfactruas. Os diálogos são elucidativos. Os perfis dos personagens são magistralmente definidos. Rimo-nos ao longo da leitura. Rimo-nos da triste caricatura que somos. Rimo-nos porque um livro que não nos faça rir é um livro que não vale a pena. “Quando os dias  correm mal aos astros” traz a interessante inovação de ter personagens sem nome, o que os identifica é o seu aspecto físico, isto é, “o homem alto”, “o funcionário baixo”, “o mais velho”, “a mulher de tranças onduladas e batom púrpura”, “o repórter de cor torrada”, “a miúda de vestido curto”, “a professora de feições orientais”. É assim que o autor caracteriza os seus personagens, “talvez para os proteger dos feiticeiros”, como o disse o escritor Suleiman Cassamo nessa sua saudável ironia. Se quisermos, podemos dar-lhes os nomes que acharmos, isso pouco importa. O que interessa é a sua representatividade dentro da narrativa. Apenas isso.

Estamos perante um escritor com uma imaginação fértil que nos coloca diante de mil imagens, donde podemos encontrar os vícios do poder, as querelas pós-eleitorais, a violência, a corrupção. Poderíamos concluir estar perante uma temática sombria, talvez, de certa maneira, o seja. Mas Suleiman Cassamo, ao se referir a este aspecto disse: “ …nem por isso o livro é triste. E isso simplesmente dada à forma como Jorge de Oliveira aborda os assuntos. Mesmo quando trata de questões sensíveis ou aflora episódios chocantes, com desfecho cruel, ele vai até ao fundo. Parece ter como intenção chocar, sacudir, despertar a gente para as anormalidades que nos rodeiam. Jorge de Oliveira não expurga, não rejeita palavra, raramente se socorre de eufemismos. Mantém hirta a pena, isenta a mente e minucioso o retrato”.

A forma eloquente, despudorada e repleta de significados que nos é oferecida neste livro leva-nos a concluir que a estrutura narrativa de Jorge Oliveira pode ganhar uma maior expressão no romance, os contos apenas asfixiam o escritor, porque está perfeitamente claro que o Jorge é um motorista de longo curso e as suas viagens são para lugares distantes. O romance é, sem sombra de dúvidas, o seu porto de ancoragem. É verdade ou não é, Jorge?“

 

 

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