Quando se constituiu o artigo 51 que garante à população o direito ao ajuntamento e
manifestação foi com base na fé racional de que, num Estado Democrático, a opinião e participação do povo são essenciais para que haja uma boa governação no país.
Neste sentido, o direito à manifestação devia ser tido como um veículo democrático concebido para transportar a opinião, o clamor, as inquietações das maiorias ou minorias sobre um determinado fenômeno social até a uma autoridade governamental com objectivo de esta criar um espaço de discussão ou negociação em busca de uma solução eficaz ao problema.
Por isso, não era suposto que as manifestações fossem vistas como um empecilho para a realização e consolidação do Estado Democrático em Moçambique. Pelo contrário, o seu exercício deveria ser tido como um meio fidedigno de captar-se a real vontade, a sensibilidade e a opinião do povo sobre assuntos importantes para
estabilidade, união e progresso duma nação.
E, quando avaliado o grito dos manifestantes e notar-se a sua pertinência, o governo deveria estar apto a criar um espaço de diálogo com os próprios manifestantes, buscando esclarecer mal-entendidos ou corrigir-se dos seus erros cometidos. Todo e qualquer governo que se põe a ouvir a inquietação do povo e se predispõe a dialogar com ele, consegue claramente encontrar soluções pacíficas e eficazes à altura dos problemas apresentados. A comunicação pode salvar uma nação.
Todavia, uma ideia errônea sobre a importância do direito à manifestação tem norteado mal o regime do dia. De forma prática, o governo moçambicano continua com a perniciosa concepção de que aquele que se manifesta nas ruas assume uma posição inimiga contra o Estado ou mesmo serve de boicote à governação do partido no poder.
Sendo assim, todos os grupos que se fizerem à rua com alguma objecção sócio-política amiúde têm sofrido repreensão violenta da Polícia, uma força legal sob o comando do executivo. Em Moçambique, as manifestações que não registam ocorrências de casos de violência policial são aquelas que normalmente louvam algum feito do governo. E, curiosamente, têm sido manifestações lideradas pelos grupos pró-governo como OJM, OMM, CNJ e outras filiações do partido no poder.
Esta clara descriminação reforça a impressão duma postura antidemocrática do governo quando se trata de respeitar as práticas civis previstas na constituição. Deste modo, servindo-se da política de violência policial contra as manifestações pacíficas, o governo fecha a esfera pública, proibindo assim o exercício da liberdade de expressão colectiva tanto às maiorias como às minorias na nossa sociedade.
Não havendo aceitação política de os grupos sociais participarem, ainda que de forma pacífica, na esfera pública, automaticamente, o governo impede-lhes o direito de serem ouvidos e a possibilidade de terem os seus problemas ou inquietações resolvidos por ele próprio. Esta postura de ignorar as reivindicações daqueles que marcham, protestam traduz fielmente uma política do silêncio de um regime ditatorial.
Ante este comportamento antidemocrático de uso excessivo da força policial e indiferença do governo às reais inquietações dos protestantes, que alternativas restam a este povo oprimido e ignorado?
Não resta outra alternativa conveniente às massas senão responder à ditadura com as versões da mesma moeda: violência, vandalismo, desobediência, insurreição. O líder socialista venezuelano, Hugo Chávez, já havia constatado essa eventual reacção de um povo farto de ditadura, quando sentenciou:
“Los que le cierram el camino a la revolución pacífica, le abren al miesmo tiempo el camino a la revolución violenta” (Trad.: aqueles que impedem o caminho para revolução (manifestação) pacífica, abrem, ao mesmo tempo, o caminho à revolução violenta.)
Em Moçambique, tal caminho para acções populares violentas ficou aberto, como consequência de um longo período de repreensão violenta a manifestações pacíficas que reivindicavam a verdade eleitoral, salários atrasados, raptos dos empregadores, má governação e alto custo de vida.
Quando se proíbe que um povo manifeste a sua indignação na rua, de forma pacífica e ordeira, o mesmo povo acaba vendo-se obrigado a recorrer à destruição como uma forma legítima de obter atenção suprema ou criar a pressão sobre o seu governo no desespero de que os seus problemas não sejam mais ignorados. Sendo assim, barricar as vias públicas, queimar pneus, pilhar e destruir as instituições públicas, incluindo propriedades privadas, passa a ser o seu novo modus operandi acompanhado de desobediência civil e, às vezes, de assassinatos dos supostos apoiantes ou defensores do regime.
Este comportamento popular, embora bárbaro e censurável, é de fácil compreensão,
pois é um comportamento que até se observa em relações interpessoais. Quando, por exemplo, um credor lhe é devido o seu dinheiro pelo caloteiro, e ele usa meios pacíficos para reaver o seu valor, mas é ignorado, evitado e, às vezes, humilhado, o que acontece é que este credor se acaba vendo na obrigação de mudar de método de cobrança da sua dívida. E, muitas vezes, o meio de pressão que ele encontra acaba envolvendo ultimatos, pancadarias e apreensão de bens. Reitero: a violência é um meio que se deve censurar e desencorajar, entretanto, a melhor maneira de dissuadi-la é abrir canais de diálogo e liberdade de expressão. Sem essas condições, as massas tenderão sempre a recorrer ao caos para impor a sua vontade ou obrigar que a sua reclamação seja ouvida e acautelada pelas autoridades, a qualquer custo.
Em suma, é a falta de abertura a um diálogo responsável e o uso excessivo da força
policial que obrigou o povo a recorrer a manifestações violentas e desobediência civil como meio de expressão. Se o povo chega a desobedecer ou violentar um polícia, é que predominou nele a sensação de que esta autoridade não está mais a servir os interesses do Estado para os quais foi consagrada, mas os interesses particulares do regime. Se o povo chega a queimar tribunais e sedes do partido, é porque provavelmente teve a percepção que estas instituições são lhe corruptas e manipuladoras.
Para os males presentes de vandalismo e desobediência que se ameaçam deteriorar em anarquia absoluta ou guerra civil, não há outro remédio mais eficaz que abertura a um diálogo comprometido com mudanças necessárias capazes de tornar as instituições públicas autônomas e credíveis. As sementes da insurreição popular, em Moçambique, já foram lançadas, desde as eleições turbulentas de 2024, e não há que as impedir de germinar com uso de mais violência estatal, isso seria mesmo que as regar e adubar.
Em tempos de ódio, apenas o diálogo e compromisso com a mudança podem impedir a derrocada de uma nação. Delongar o processo de reconciliação nacional assemelha-se a deixar a tuberculose propagar-se por mais tempo no nosso organismo. Quanto mais tarde a doença for tratada, mais penosa e difícil será a sua cura, como disse Nicolau Maquiavel.
O caminho para paz não passa por perseguir aqueles que estão no lado oposto ou contrário do regime, mas corrigir as razões que os levaram a passar para o outro lado, tal como apelou o artista moçambicano, Azagaia, “mude a causa para mudar a consequência” (in Povo no Poder).