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Pensar o teatro moçambicano a partir de “o embondeiro que sonhava pássaros”

Foto: Gillelio Cossa

Por: Eduardo Quive

 

A peça “O embondeiro que sonhava pássaros”, exibida na passada sexta-feira, no Centro Cultural Franco-Moçambicano, teve em palco os astros do teatro nacional a contracenar as nossas esperanças e certezas. Uma obra escrita e encenada por Evaristo Abreu e inspirada num conto de Mia Couto. Esta peça fez mais do que dar teatro ao público, reabriu um drama da cultura moçambicana, o debate sempre adiado e o descortinar de um futuro cheio de incertezas. Muito tem se falado destes tempos como a grande dúvida, Lipovetsky (1983) chegou mesmo a escrever o ensaio “A era do vazio”, onde parecer é ser, tudo é efémero, passa tão rápido que sequer chegou a acontecer. Mas já lá vamos, primeiro, exaltemos o espectáculo que, de certeza, mostrou-nos que a alma do teatro moçambicano está em chamas e que todas as gerações dão-nos garantias.

Ver em palco Adelino Branquinho, Yolanda Fumo e Elliot Alex, a contracenar com Horácio Guiamba — que já não tem mais nada a provar —, Fernando Macamo e Lucrécia Noronha, estes dois que já performaram em alguns espectáculos e a estudante Shércia Carolina que se mostrou à altura do desafio, é um acontecimento marcante. São actores de gerações diferentes, o que deixa à vista que o teatro vive, sobrevive e pode ganhar outras vidas, como por exemplo, o facto de as salas de teatro estarem em extinção ou a servir para outros fins, a falta do necessário apoio institucional e mecenas, tudo isto, curiosamente, quando já há um curso superior de teatro e muitos actores à disposição.

Em palco estava o passado que facilmente se confunde com o presente e, se não houver “vigilância” —  os acontecimentos diários mostram isso — pode se repetir esse passado tenebroso: escravatura, exploração e segregação. O resto é actual, as personalidades feitas de ira – de fúria irracional —, a coisificação do outro, o racismo, a bajulação e o cumprimento de ordens sem questionar. Em meio a tudo isso há um belo que se não vê: o encanto na natureza, nas coisas simples como os pássaros de várias espécies a voar livremente e a cantar para os humanos tomados pela insanidade instalada, o tempo que nos falta para contemplar de forma desinteressada o belo, mas também a classificação dos seres. Como pode uma criança branca brincar com uma negra? Como se não bastasse, falarem a mesma língua, apreciarem a mesma natureza e ainda mergulharem nas realidades de cada sociedade. A partir do diálogo dessas duas personagens, a preta e cuidadora de pássaros — Yolanda Fumo — e a criança branca — Shércia Carolina — encontram-se dois mundos: no mundo dos brancos representado por Adelino Branquinho, sempre zangado, com o chicote e a esbracejar “igual a uma coruja”; e, por outro lado, estão os pretos, representados por Yolanda Fumo, que compreende o desejo e a essência dos humanos, igual aos pássaros, nascidos para serem livres.

É uma família dominante, branca, vive amargurada e na encruzilhada do racismo, sobretudo por se julgar uma classe superior, que tem o direito à terra, os recursos, incluindo as pessoas pretas que são objectos de uso, força bruta, sem sequer capacidade de raciocinar — Elliot Alex, Fernando Macamo e Lucrécia Noronha —, que vai se ver desestruturada por uma criança que decidiu ignorar as diferenças, olhou com os olhos inocentes de uma criança o mundo à sua volta.

É possível ler-se os papéis de Elliot, Fernando e Lucrécia nas entrelinhas das personagens da vida real, capazes de aplaudir e executar tarefas sem questionar, por vezes, com danos sobre gente da mesma classe social que a sua. A ideia de estar com quem manda e que faz pensar que temos poder e por isso os outros seres humanos não valem nada, está muito bem representada.

O narrador Horácio Guiamba conseguiu ser o pivô da trama, sem deixar que ela se transformasse numa história contada, antes, um elemento para conectar os acontecimentos que ocorrem num ritmo frenético. Escusado é dizer que começa a ser moda o narrador Horácio Guiamba em palco (o actor cumpriu quase o mesmo papel em “Aqueles dias da rádio”, musical dirigido por Zé Pires). O acompanhamento musical de Cheny wa Gune e Xixel Langa foi certeira por torná-los presente no espectáculo, preencheu as cenas.

Foi, em suma, um trabalho ao nível do senhor de teatro que é Evaristo Abreu. O que nos leva à questão seguinte.

  1. As condições em que a peça foi exibida foram as melhores possíveis, é verdade. Aliás, não é em vão que o CCFM é dos melhores espaços culturais da cidade. Porém a sala grande não foi capaz de dar as condições que o teatro precisa: a acústica necessária para a projecção das vozes, para que as palavras sejam ouvidas e compreendidas. Apesar de todo empenho e esforço até, muitas foram as palavras que coube ao espectador mais atento tirar as certezas se foi dito. As falas de Adelino Branquinho, por exemplo, e até do Elliot Alex, foram disso exemplo. O Horácio cuja presença era sobretudo em discurso, não sei se não lhe sobraram dores pelo esforço para se fazer ouvir. E, aliado a tudo isso, como havia a voz no microfone e os instrumentos musicais, o desnível foi evidente. Ao contrário do que se viu e se vê com os especáculos do género quando acontecem no auditório. Esse, sim, era o sítio indicado.
  2. O cenário podia ser melhor, a sensação de um imenso vazio é inquietante. Sim, é a nossa realidade, fazer muito com pouco, mas foi notável o sofrimento dos actores naquele palco, ora à procura de prencher espaços ou a cuidarem para não se deixar derrubar nas poucas coisas ali presentes, porém de uma precariedade patente. Por outro lado, foi como se aqueles elementos fossem estranhos aos actores. Não será pelo tempo de ensaio com o cenário do espectáculo?
  3. Quando vai parar a sina de ver só uma vez os bons espectáculos de teatro, penso eu com os meus botões enquanto oiço os murmúrios dos espectadores. Compreendo as várias razões por detrás das instituições e do cenário artístico nacional, mas é um desperdício dos níveis de quem deixa uma torneira aberta com a água a escorrer pelas areias. Não é assim só com este espectáculo, foi assim com “Aqueles dias de rádio” (2023), por exemplo, uma das melhores obras de arte em palco que se produziu nos tempos actuais. Como é possível um elenco daquele nível, os ensaios de meses, a publicidade feita — a acrescer a que continua a ser feita por via de comentários positivos dos que viram o espectáculo — resultar em apenas uma apresentação? Será que o custo de uma repetição é maior que o de tudo o que se investiu para conceber o trabalho? Esta questão não é dirigida ao CCFM, é sobretudo uma reflexão que todo o sector cultural deve fazer. Um pouco por todos os centros culturais os espectáculos são exibidos só uma vez, nunca percebo as razões, mas se elas se prenderem com o factor “oportunidade para todos”, “cabimento orçamental” ou “público”, então é uma questão talvez mais fácil de resolver. Mas se a razão for do tipo fazer muito eventos e acolher a todos ou for por importar os hábitos da música para o teatro, então a situação é grave. Enquanto a música pode ser gravada e ouvida através de várias plataformas, a qualquer momento, o teatro precisa de palco para ser visto, e o bom teatro, ainda mais.

Quando a arte é exposta desta maneira, incorre-se ao risco de banalizar-se o talento, o trabalho árduo e comprometer o profissionalismo nas artes, como analisa Mário Vargas Llosa em A Civilização do Espetáculo (2012).

Pensar em tudo isto, na esteira de “o embondeiro que sonhava pássaros”, que instiga a memória colectiva, revisita a história, reflecte a contemporaneidade dos comportamentos, das trivialidades e desperta-nos para uma sociedade em modo loop — as diferenças entre classes, o medo de sonhar, os limites às liberdades —, é no mínimo exercer o próprio papel do teatro, despertar-nos para o drama da vida, dos indivíduos, das sociedades, enfim, levar ao palco os nossos dilemas e contextos.

Um trabalho como o visto no dia 12 de Abril de 2024, deveria ser possível revisitá-lo, pelo menos, mais três vezes. Ao contrário disso, quando tudo é dado assim, aos bocados, honestamente, é fácil cair na banalidade, no vazio enfim, no esquecimento.

 

 

 

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