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Paguei o prato e sumi

Estava sentado no mercado Mandela. A minha frente estava uma Torre Eiffel levantada com pilares de batatas bem fritas, o peito mal assado do frango era a Casa de Ferro enferrujada da Cidade de Maputo. A salada de alface sangrando o vermelho do tomate, o arroz pintado pelo batom da cebola e o carril que descaía pelo prato e pelo pano branco da mesa era como água suja dos prédios lutando na entrada dum esgoto com um cadeado de resíduos sólidos; tudo isso dava um ar gostoso ao prato.

Os gatos vigiavam cada osso que minha dentadura não conseguia resmungar. A vendedeira aguardava pela ida da minha mão ao bolso para o quebrar o vaivém dos seus olhos ao meu garfo e faca.

– “Mano, melhor pagar agora para facilitar o troco” – disse ela afogando suas mãos na algibeira do seu avental sujo, com um bordado no fundo, mal escrito: “Quiosque Dona Xperaçinha”. Pena que Mandela não conheceu esse mercado. Este pensamento aconteceu-me quando o gás da coca-cola desbravava os pêlos das narinas.

Um rapaz sem caminha vinha correndo do fundo das bancas. Corria atrás duma borboleta. A borboleta tinha suor de vento nas asas e seu corpinho, minúsculo, carregava um botija de cansaço às costas. O rapaz tinha olhos puxados para cima, a cabeça menor, o nariz pequeno como um amendoim, o corpo coberto por uma tecido de gordura, os seus cabelos lisos voavam no caminho que a borboleta abria e suas orelhas pequenas não captavam o barulho que o mercado fazia; eram como antenas sem altura.

– “Esse aí é maluco”. – “Mentira é doente”. – “O filho é maluco, os pais são ricos; há alguma raiz no meio”. As senhoras do mercado batiam-se tal qual lutam os deputados na Assembleia. Discutiam decretos de preconceitos, leis de estupidez e pequenez. O rapaz com síndrome de Down não parava de correr atrás da borboleta enquanto isso as deputadas do mercado discutiam e aprovavam verdades sobre si nas panelas e faziam das suas colheres de pau martelos de decisão.

A borboleta rasgou o tecto do mercado como vozes muçulmanas rasgam o tecto das mesquitas. Sumiu a borboleta. O rapaz olhou as senhoras deputadas. Seus olhos sobre ele pareciam câmaras de televisões públicas. Chorou. Chorou. As lágrimas desciam como chuva humana dos seus olhos com inclinação lateral. Achegou-se a um lavador de carros que comia à mão e disse:

– “Aquela borboleta é minha. Você pode me levar à sua casa?”

Olhei a estupidez de todos que estão no mercado. Olhei aquele garoto com síndrome de Down. E vi que todos tinham síndromes mais maléficos que a síndrome daquele garoto. Todos tínhamos síndromes e o garoto era o único que via.

Reajustei-me na cadeira. Olhei a Torre Eiffel levantada com pilares de batatas bem fritas, o peito mal assado do frango que era a Casa de Ferro enferrujada da Cidade de Maputo. A salada de alface tesa de vermelho do tomate, o arroz pintado pelo batom da cebola e o carril que descaía pelo prato e pelo pano branco da mesa era como água suja dos prédios lutando na entrada dum esgoto com um cadeado de resíduos sólidos. Olhei tudo aquilo. Paguei o prato e sumi na síndrome da cobardia e do desaparecimento…

 

 

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