É para mim um enorme prazer apresentar um livro de Clemente Bata, um autor, diga-se, já a contar com mais de 25 anos de publicação – quer em revistas e jornais, quer sob a forma de livros – e cuja actividade literária mereceu o reconhecimento nacional e internacional, como são os casos do Prémio Literário 10 de Novembro, Prémio Literário Instituto Camões e Prémio Literário da Francofonia. Clemente Bata faz parte de uma nova geração literária em Moçambique, a que começa a publicar livros a partir dos anos 2000. A sua forma de escrita é herdeira de obras consideradas, hoje, clássicos da literatura nacional, com destaque para o Nós Matámos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana. Aliás, é a partir desta herança que vemos o texto de Bata em diálogo com Os Molwenes, de Isaac Zita, ou com as obras de um Aldino Muianga ou Juvenal Bucuane. É com base também nestes testemunhos que Clemente Bata participa na construção da nossa literatura, consolidando a vertente realista como uma das suas características.
Porque falámos na corrente realista, um primeiro aspecto que gostaríamos de destacar em Outras Coisas tem a ver com o narrador das histórias, aquele a quem Clemente Bata delega a missão de relatar as «coisas». Clemente opta, na generalidade, por um narrador «ausente» da história que conta. Ou seja, não é um narrador pessoalizado a falar de si, não participa dos eventos narrados, as histórias existem simplesmente, tal como nós vivemos a realidade, sem que dela tenhamos algum controle. De qualquer forma, importa dizer que esta ausência é relativa apenas aos factos da história, porque, do ponto de vista do discurso, o narrador está sempre presente, ainda que o enuncie (o discurso) numa terceira pessoa: é ele que narra, isto é, seleciona o que e como narrar. Mas este é outro assunto. O que interessa aqui é que esta impessoalização do narrador faz com que a narrativa de Clemente Bata atinja uma dimensão realista que, no jogo da literatura, pretende-se inquestionável, exactamente porque é da aspiração do real que falamos.
Uma das características do realismo é a ambição de falar das coisas ao pormenor, ao detalhe quase fotográfico – e aqui é preciso lembrar que o primeiro livro de Bata é, sugestivamente, Retratos do Instante, facto que parece provar que Clemente tem uma espécie de obsessão pelo real. Ou seja, a ambição da corrente realista é a de falar das «coisas tal como elas realmente são». Nesse sentido, Outras Coisas é um conjunto de histórias captadas de situações das mais comuns de viver ou de se ouvir no dia-a-dia, mas sem nunca se transformarem em histórias banais, muito pelo contrário.
Se nos lembrarmos que o título deste livro é uma apropriação de uma expressão muito popular hoje («hum, outras coisas!»), que serve para expressar sentimentos variados, como os de indignação, espanto ou assombro, vamos perceber que o realismo de Clemente Bata pode revelar-nos um mundo em desequilíbrio, uma realidade desorientada. E para revelar esse desequilíbrio do mundo, Clemente elege a ironia como técnica de escrita, o que de resto já acontece no seu primeiro livro. De facto, o que vemos neste livro são retratos da vida sugestivamente irónicos, pois, afinal, não se trata de retratar as coisas apenas, mas de as revelar como sendo outras. Ou seja, o que se lê nestas histórias revela-nos outras dimensões da vida que não as que logo à partida percebemos, afinal, a própria vida já é irónica. Diríamos, então, lembrando Roland Barthes, para quem a literatura só pode ser absolutamente realista, que o realismo aqui patente revela-se a dois níveis, dos factos em si e dos seus significados também eles.
Um segundo aspecto a destacar em Outras Coisas é o facto de as histórias darem-se num espaço preferencialmente rural, mas também suburbano e, às vezes, entre o subúrbio e a cidade. Ou seja, as coisas de que nos fala Clemente são periféricas, não do centro urbano ou citadino, e há-de ser também por essa razão que são outras.
Aos espaços rural e suburbano junta-se um tempo que é este nosso tempo, o actualíssimo: «O embrulho», um dos contos do livro, é suficiente para ilustrar o que dizemos: uma empregada doméstica, afligida pela crise financeira, decide roubar do recheio da casa da patroa, peixe, bata e cebola, para alimentar a família que a espera. Entretanto, antes de abandonar o local de serviço, misteriosamente, o embrulho onde guardava o produto do roubo, desaparece. Afligida agora pelo desaparecimento misterioso do embrulho e com medo de que a patroa viesse a descobrir o acto, já no my love, a empregada conta o caso a um velho que, a seguir, a aconselha – conselho que aqui não vou revelar, pois cito este conto apenas para situar o tempo destas histórias como um tempo actualíssimo, para o que concorrem entidades como crise financeira e my love.
O terceiro aspecto a destacar é que ao escrever sobre a actualidade num cenário sobretudo rural e suburbano, Clemente Bata destaca temas como a morte, quer a biológica, quer a simbólica; o roubo – em Outras Coisas, rouba-se um pouco de tudo: rouba-se gado como roubam-se amores; a superstição; o insólito; o absurdo, o nepotismo; o amor; a fidelidade vs. infidelidade, a confiança vs. desconfiança. De uma forma geral, e em coesão com o espaço rural e suburbano, em Outras Coisas há também uma dimensão ancestral da vida, ou seja, os factos narrados assentam na crença na tradição e na veneração dos antepassados defuntos, um imaginário muito caro aos escritores moçambicanos, como é o caso de um Marcelo Panguana ou Ungulani Ba Ka Khosa. Perpassa, portanto, pela obra, a representação de uma sabedoria ou de uma particular visão do mundo, quer sobre a forma de máximas, quer sobre a forma de provérbios, quer ainda sobre a forma de práticas ritualísticas. Por conseguinte, essa sabedoria se faz guardiã do respeito que merecem os velhos ou a tradição representados na obra. Um exemplo pode ser encontrado em «Marozana», conto que abre o livro, quando a personagem Mpulani, para convencer Guedjo a aceitar o primeiro grande peixe que pescou na vida, diz: «– É preciso sim. É como o primeiro salário de um filho que se preze. Não se recusa…» (p. 23)
Mas, de todos os aspectos destacados, o que nos parece definitivamente interessante é o emprego da ironia. Como já o dissemos, a ironia é, de facto, a forma escolhida por Clemente para escrever as suas histórias. Ou seja, todas elas têm um quê de irónico a estruturar o destino das personagens. Quer de forma velada, quer de forma revelada, o pensamento de Clemente é, nesta obra, profundamente irónico. Por sua vez, a ironia é responsável, em alguns casos, por um humor subtil que atravessa obra. É o que se vê no já citado conto «O embrulho»: a empregada doméstica, antes de abandonar o posto de trabalho e afligida pelo medo de a patroa vir a descobrir o roubo, decide procurar na casa inteira pelo embrulho, o que a leva a fazer uma limpeza que fez admirar a filha da patroa, pois esta nunca vira a casa tão limpa como no dia do roubo. No conto «O outro lado do mar», Makhate, para se livrar da pobreza, convence a mulher, Rindza, a sentar num bar e a fazerem-se passar por irmãos que têm o pai muito doente, pelo que Rindza deveria conseguir que alguém a desse dinheiro para a saúde do pai; o resultado é que Rindza acaba casada com o primeiro homem que a conquistou, um pescador, e Makhate acaba morto, atirado ao mar. Ou seja, tanto Rindza como Makhate acabam «pescados», facto que pode alertar-nos para o absurdo dessa outra vida, ou destas Outras Coisas do universo rural ou suburbano, com as suas crenças, práticas e peripécias.
Obrigado!
Texto de apresentação do livro Outras Coisas, de Clemente Bata, no BCI, no dia 30 de Agosto de 2018.
Cf. Shaw, Harry, Dicionário de Termos Literários, Lisboa, Dom Quixote, 1982.