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Os vidros que não refletem a exploração de que as crianças são vítimas

Nas luzes do semáforo, está o melhor resumo de algumas histórias que tem entre 11 e 15 anos, mas que em experiência de vida, de longe, superam aquilo que crianças com a mesma idade normalmente tem.

O semáforo mostra luz verde na Avenida Eduardo Mondlane, enfrente a Assembleia da República. As crianças se sentam, descansam o corpo maltratado pelas difíceis condições a que são submetidas, afinal, chegaram a pé (por volta das seis horas), vindos do bairro Luiz Cabral, arredores da cidade de Maputo, para começar mais um dia de trabalho.

Acende a luz laranja, chamando a atenção para os automobilistas, mas também alerta os rapazes, alias, é a única luz que tem o mesmo significado para os pequenos lavadores de carro e os automobilistas.

São quase sete horas, e Hélio (nome fictício), com as vestes desgastadas com o tempo, empoeiradas, cabelo despenteado e chinelos que só tem uso graças aos diversos remendos feitos a mão por arames, já com garrafas de um litro na mão e o seu limpador de vidros, posiciona-se.

O semáforo (finalmente) acende a cor vermelha e, tic toc, tic toc, tic toc, tic toc, o tempo começa a contar tic toc, tic toc, tic toc, tic toc. Quanto mais veloz, mais carros e, tic toc, tic toc, tic toc, tic toc, mais dinheiro Hélio ganha.
Mas é também uma verdadeira linha de morte, porque qualquer passo em falso pode simplesmente significar um acidente que pode ser grave ou não, como o que aconteceu com Hélio.
“Enquanto limpávamos os vidros, tentávamos ganhar o máximo de tempo sendo rápidos para conseguir limpar mais carros, e nestes movimentos, um amigo meu empurrou-me quando o semáforo estava prestes a abrir, eu cai, o semáforo abriu e um carro atropelou-me” contou.

O rapaz de 11 anos de idade, natural de Xai – Xai e citadino de Maputo desde 2018, revelou que veio a capital do país a convite do irmão, para “fugir da situação de pobreza que vivia” em Gaza.

Para além de afasta-lo dos progenitores, a saída de Hélio para a cidade de Maputo, também o afastou da escola, onde frequentava a quinta classe, mas, o pior mesmo, é que fugiu da pobreza e acabou fora da escola devido a mesma (pobreza).

“Não estou a estudar neste ano porque o meu pai e a minha mãe não tem condições para que eu estude”, explicou, mas quando questionamos se o irmão que o chamou para Maputo não podia coloca-lo numa escola, ele respondeu que o mano prometeu coloca-lo na escola no próximo ano.

Se para o rapaz de 11 anos, a prioridade é voltar a estudar já no próximo ano, para Timóteo (outro lavador de carros), que também veio da província de Gaza, aprender a ler e a escrever numa sala de aulas não passa de um sonho distante.

Timóteo partilha o semáforo da Avenida 24 de Julho, a poucos metros da Assembleia da República, com cinco companheiros de “rua”, com quem partilha histórias, pratos, quarto e mantas. Um desses parceiros é Orlando. Muito calmo, muito observador e muito tímido. E fica mais ainda quando o assunto é escola.

Ele diz que ganha cerca de 200 meticais por dia, dinheiro que considera suficiente para voltar à escola. Mas quando questionamos o porquê de não o fazer, ele suspira… sorri timidamente… e responde que não sabe.
Mas nós somos jornalistas, e perguntar é o nosso trabalho, por isso Insistimos a primeira, insistimos a segunda e sem nos cansar, insistimos pela terceira vez, mas para o espanto da equipa, a resposta foi sempre a mesma. “Não sei” respondia o rapaz.

As respostas escasseavam, e por muito que o jornalista da equipa perguntasse, elas teimavam em não surgir, e as dúvidas teimavam em aumentar, porque nem Orlando, nem Hélio, sabiam o porquê dos semáforos não só lhes roubar a infância, mas também os sonhos.

Se por um lado o futuro é sombrio, sem sonhos e cheio de dúvidas para estes meninos, por outro, há nos seus passados uma certeza: todos vieram das províncias para melhorar a vida na capital, trabalhando para o “mano”, o suposto recrutador. Para este indivíduo, os meninos são obrigados a entregar 300 meticais, sem se importar com o quanto eles ganham por dia, explicou Orlando, que acrescentou que o que sobra serve para suprir as necessidades diárias.   

Mas “mano”, um jovem com quase um metro e 60 centímetros, 24 anos de idade, refuta as acusações, e diz que nunca fez cobranças aos meninos, justificando a recolha de dinheiro como sendo um acto de contribuição diária para alimentação. Para além de recusar qualquer tipo de exploração de trabalho infantil, o jovem não aceitou levar-nos até à casa onde vive com meninos, muito menos fornecer os números de telefone dos seus familiares.

Ao “O País”, "mano" revelou que reside nos arredores da cidade de Maputo para onde chegou em 2014 depois de sair de Gaza. Ele conta que já foi vendedor ambulante, onde comercializava chocolate, mas agora só se dedica a limpar vidros de carros. No país existem mais de um milhão de crianças no trabalho infantil, mas não há registos do número de pessoas que mandam em crianças. Sabe-se apenas que quase sempre o trabalho infantil obriga a criança a não frequentar a escola.

Hélio, Timóteo, Orlando, Silica e tantas outras crianças que perdem a infância nos semáforos nunca irão desistir enquanto os automobilistas colaborarem e pagarem pelos serviços. Ainda assim, há quem diz que é preferível isso do que ver as crianças envolvidas no mundo do crime. Suleimane, por exemplo, pagou os serviços de um dos meninos, mas disse ser uma pena que hajam crianças nas ruas sem a possibilidade de frequentar a escola. “Mas é melhor isto do que vê-los a roubar”.

Um outro automobilista de nome Alexandre disse que esta questão é preocupante e que apesar de reconhecer o mal que pode constituir a oferta de dinheiro aos rapazes, “é preciso que alguém continue a dar para que eles possam viver”. Em 2018, Moçambique lançou um plano para reduzir com o trabalho infantil, uma iniciativa que vai exigir o esforço não só do Governo, mas de todos moçambicanos que olham para coisas anormais como normais.

 

 

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