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Os rostos por detrás dos dados sobre o agravamento da fome em Moçambique

O número de pessoas que passam fome no país poderá aumentar de 1.7 milhão para perto de dois milhões, devido ao impacto da COVID-19, que se traduzirá na pouca disponibilidade de alimentos. Contribuem igualmente para a insegurança alimentar, os ataques em Cabo Delgado, os ciclones Idai e Kenneth e a seca que afecta a região sul do país.

A nossa reportagem escalou a comunidade de Baka-Baka, no distrito de Namaacha, a sul da província de Maputo. Numa viagem de carro, leva-se cerca de uma hora para lá chegar, a partir da capital do país. Ao longo do percurso, a paisagem é possível ver vegetação verde e lá mais para o fundo as montanhas caracterizam a zona.

Para o interior da comunidade, percebe-se que não é vegetação verde que predomina. A seca fez das suas. Tudo está seco. O solo infértil. Até as culturas resistentes à seca (mandioca e milho) cederam à estiagem que “castiga” o sul do país há cerca de quatro anos. A fome é uma realidade e a situação vai piorar com os impactos negativos da COVID-19, segundo as autoridades.  

Naquela zona encontrámos Alice António, de 52 anos de idade. Ela nasceu na província de Maputo e sempre viveu do que tira do seu pedaço de terra, mas já lá vão quatro anos que nada produz.

“Para podermos sobreviver usamos o pouco dinheiro que conseguimos para comprar 12 kg de farinha de milho. Quanto ao carril, vamos à zona baixa, onde tiramos o caniço para poder plantar folhas de batata-doce e irrigamos com a pouca água que lá achamos”, contou Alice António.

Mas não são todos os dias que da zona baixa se consegue tirar alimentos. Por causa disse há famílias que não poucas vezes dormem sem comer. “Mesmo dois dias passam sem comermos. Onde vamos achar (comida)?”, questionou Alice e respondeu: “não há onde recorrer porque o milho queimou com o sol intenso e é na machamba que tirávamos algo para comer’’.

O que a mulher de 52 anos tirava da sua machamba vendia também em alguns mercados da cidade de Maputo, mas devido ao Coronavírus as coisas vão de mal a pior. Com um ar de desespero, ela não tem dúvida de que “as coisas não estão a andar como o desejado’’. O seu filho Edilson Ubisse nunca esquece que “alguns dias comemos uma vez (ao dia) e são pouquíssimas as ocasiões que comemos duas ou três vezes. De manhã comemos mais pão e tomamos água quente”  

Em meio ao sol intenso, com os pés descalços na terra que há muito tempo apanha chuva, enxada na mão e trouxa na cabeça, Isabel João volta da machamba depois de uma manhã inteira dedicada a uma colheita não muito satisfatória. Além do calor, a podridão tomou conta das culturas.

“Quando cai uma pequena chuva tentamos semear alguma coisa, mas nunca temos colheita. Quando as culturas crescem um pouco depois apodrecem. É assim que vivemos”, expôs, acrescentando que “nós que temos filhos menores é-nos difícil fazê-los crescer e também para fazê-los ir à escola”.

Diante da fome e de uma seca que não dá tréguas naquela região do país, a mulher de 46 anos não vê noutra saída senão sacrificar os estudos dos seus filhos pela comida, mas nem sempre funciona…há dias que se dorme sem comer.

“Eles não ficam em casa definitivamente. Apenas faltam porque para irem à escola devem tomar um chapa. Então, aquele dinheiro que era para transporte dos meninos utilizamos para comprar farinha e isso pode significar dois dias sem irem à escola’’.

Aliás, a outra forma de sacrificar menos os estudos do seu filho seria vender parte da sua colheita na capital do país, mas com a COVID-19 nem o negócio é fonte alternativa de renda.

“É difícil porque não temos onde achar comida. Se porventura (alguém) ficar doente sem se alimentar será que pode se salvar? As coisas tendem a piorar porque já não vamos a sítio algum. Querendo sal, onde vais achar, uma vez que não vamos mais ao mercado?”, questionou a mulher.

Ainda na comunidade de Baka-Baka, uma idosa reformada contou que não sente muito os impactos da seca naquela região porque recebe a pensão, mas não lhe serve para grande coisa e a terra, pior ainda. Mesmo assim, ela levanta todos os dias para machamba na esperança de obter sucesso. “A colheita não é satisfatória, mas não se pode cansar porque não tem nada na machamba. Nós continuamos a ir para lá. É difícil viver assim, mas o que fazer?!”.

O “Sumário da Situação de Insegurança Alimentar Aguda e Desnutrição Aguda em Moçambique – 2019/2020 – produzido pelo Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural refere que de Abril a Setembro do ano passado havia no país cerca de 1.7 milhão de pessoas que enfrentavam dificuldades para ter acesso à comida.

O estudo realizado em 63 distritos, entre Outubro de 2019 e Fevereiro de 2020, indica que o número de pessoas que passam fome poderá aumentar para perto de dois milhões de pessoas, devido à pandemia do Coronavírus, que se prevê que tenha impacto negativo na disponibilidade de alimentos.

Junta-se à COVID-19, os já conhecidos factores tais como a fraca época chuvosa entre Janeiro e Março na região sul do país (Maputo, Gaza e Inhambane), que causou perdas na produção agrícola. Os efeitos dos ciclones Idai, Kenneth e Desmond, que afectaram o centro e norte de Moçambique fazem igualmente parte do que piora a situação.

Além dos ataques promovidos por terroristas em Cabo Delgado e que continuam a afectar grande parte de agregados familiares em alguns distritos, constam as pragas que atacaram culturas nas zonas sul, centro e norte do país, causando perdas agrícolas.

O relatório divide a insegurança alimentar em Moçambique em cinco fases, nomeadamente: mínima, estresse, crise, emergência e fome ou catastrófica.

Mínima: os agregados conseguem satisfazer as necessidades essenciais alimentares sem recorrer a meios atípicos e insustentáveis para aceder alimentos ou rendimento. A viver nesta fase estão, pelo menos, 1.878.082 pessoas e número que poderá reduzir para 1.693.964 pessoas.

Estresse: as famílias têm um consumo mínimo adequado mas não dispõem de meios para responder a algumas despesas essenciais, recorrendo assim a estratégias de resposta à situação de estresse. Aqui também há projecta-se uma redução de pessoas que vivem nesta fase de 1.747.834 para 1.600.589.

Crise: as famílias passam por falta de consumo alimentar demonstradas por desnutrição aguda elevada ou acima do normal e têm uma capacidade mínima para satisfazer as necessidades alimentares. A previsão é que o número de pessoas a viver nesta fase aumente de 1.169.377 para 1.424.615 o que equivale a uma subida de 255.238 pessoas.

Emergência: as famílias passam períodos longos de falta de consumo de alimentos demonstrados por uma desnutrição aguda muito elevada e excesso de mortalidade. Nesta quarta fase prevê-se também a subida do número de pessoas de 188.669 para 264.793. Ou seja, um aumento em 76.124 pessoas.

O aumento de pessoas nas duas últimas fases de insegurança alimentar deve-se aos motivos acima mencionados.

Fome: é a última fase em que os agregados familiares sofrem uma falta extrema de alimentos e/ou de outras necessidades básicas, mesmo após utilizarem todas as estratégias de resposta a crises. O estudo não especifica, entretanto, o número de pessoas que vivem nesta condição.
 
Do total das pessoas que estão na insegurança alimentar e que precisam de uma intervenção urgente grande parte são as províncias de Sofala (493.119), Tete (288.578), Gaza (241.742), Zambézia (233.733), Cabo Delgado (202.202), Inhambane (79.160) e Maputo (49.292). E no caso concreto do distrito de Namaacha, onde gravamos a nossa reportagem há 8.345 pessoas que estão nas fases de crise, emergência e fome, precisando de assistência.

O documento a que nos referimos revela que 67.500 crianças menores de cinco anos sofrem de desnutrição crónica aguda, sendo 6.500 grave e 61 mil moderada.

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