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O silêncio que mata 

Era por volta das 20 horas quando regressei à cidade de Inhambane, depois de mais um dia de trabalho intenso. A noite começava a envolver as ruas com o seu manto escuro e silencioso. Ao aproximar-me da zona de Nhapossa, na entrada da cidade, presenciei uma cena que, infelizmente, já não é estranha aos habituais viajantes da estrada. Um cobrador, pendurado precariamente do lado de fora de um chapa 100, equilibrava-se entre o risco iminente e a indiferença coletiva. O silêncio dentro do carro era quase ensurdecedor, como se aquele cenário fosse um mero detalhe de um dia comum.

Pergunto-me: em que momento normalizámos o absurdo? Como chegámos ao ponto de ignorar o perigo à nossa frente, tratando-o como parte de uma rotina inevitável? O cobrador, desafiando as leis da física e da prudência, representava não apenas a negligência dos transportadores, mas também o reflexo de um sistema que insiste em valorizar a pressa em detrimento da segurança. E nós, os passageiros, calados, será que somos cúmplices dessa imprudência?

O episódio daquela noite é apenas um entre tantos outros que se repetem diariamente nas estradas moçambicanas. Os chapas, lotados muito além da sua capacidade, percorrem caminhos que mais parecem testes de sobrevivência. Condutores e cobradores desafiam não só as regras de trânsito, mas também os limites da responsabilidade. E quem viaja como passageiro assiste a esse teatro de imprudência com uma apatia que assusta.

É impossível não se questionar: onde está a voz do povo? Onde está a coragem para exigir respeito? Como podemos aceitar que a vida humana seja tratada com tamanha negligência? Cada um de nós, ao permanecer calado, legitima um sistema que perpetua a indiferença. A cada dia, vemos mais cobradores pendurados, mais ultrapassagens perigosas, mais vidas postas em risco. E, ainda assim, seguimos como espectadores passivos desse cenário.

Os condutores desses chapas, muitas vezes pressionados pelos patrões para atingir metas financeiras impossíveis, acabam por sacrificar a segurança em nome da rapidez. Mas será que essa justificação basta? Será justo colocar toda a responsabilidade sobre os ombros dos trabalhadores, ignorando o papel de um sistema que pouco ou nada faz para regulamentar e fiscalizar de forma efetiva o transporte público?

E os passageiros, por que não se levantam? Por que não reclamam? Aquele cobrador pendurado na entrada de Inhambane podia ter caído e perdido a vida, mas a indiferença no interior do carro era quase palpável. O que nos impede de agir? O medo de represálias? A resignação de que nada vai mudar? Ou é simplesmente o peso de uma cultura que nos ensina a aceitar o que é errado como norma?

A situação dos chapas em Inhambane é um reflexo claro de um problema maior. Não se trata apenas de transporte, mas de uma crise de valores e de consciência coletiva. Quando toleramos a negligência, quando permitimos que a rapidez seja mais importante do que a segurança, estamos a enviar uma mensagem perigosa às gerações futuras: a de que a vida humana é descartável.

Mas há soluções. O que falta é vontade. Fiscalizações mais rígidas, punições exemplares para os infratores, campanhas de educação cívica que incentivem os passageiros a exigir os seus direitos. E, acima de tudo, é necessário despertar a consciência coletiva de que o silêncio também é uma forma de violência. Quando nós, passageiros, aceitamos passivamente as condições precárias dos transportes, estamos a contribuir para a perpetuação de um sistema que despreza a vida humana.

Que o episódio daquela noite em Nhapossa sirva como um alerta. Que possamos olhar para o cobrador pendurado, para o motorista imprudente, e entender que eles também são vítimas de um sistema falho. Mas nós, passageiros, também somos parte desse sistema. E cabe a nós decidir se queremos continuar como espectadores ou se queremos ser agentes de mudança. Porque, ao fim da linha, o preço do silêncio será sempre mais alto do que qualquer bilhete que possamos pagar.

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