Por: Paulina Chiziane
Vim de lugar nenhum. Aprendi a escrever na areia do chão. Calcei os primeiros sapatos aos 10 anos de idade. Sou a primeira africana, negra, bantu, a receber tão alto prémio. Aqui estou! Eu sou! Caminhei sem saber para onde ia mas cheguei a algum lugar, que lugar é o Prémio Camões, que recebo hoje, 5 de Maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa. Para quem veio do chão, estar diante dos Governos Português e Brasileiro, do Corpo Diplomático e personalidades tão distintas, é algo que me comove profundamente e a todos endereço os meus profundos agradecimentos.
Agradeço aos meus editores, tradutores, livreiros. Agradeço ao júri que me escolheu para merecer este prémio. A minha gratidão maior vai para os meus leitores, em Moçambique e no mundo.
Sou da tradição oral. Os contos à volta da fogueira foram a minha primeira escola de arte. Gosto muito de contar histórias. Trago nas veias o sangue da cultura bantu e europeia, cuja transfusão recebi nas escolas do mundo e, por isso, a língua portuguesa que eu escrevo tem as marcas das minhas origens. Nesta ocasião tão especial, gostaria de partilhar algumas lições aprendidas na estrada da vida.
1 – Originalidade – Seja original em todos os teus actos. Saiba que a dignidade de um povo é feita pela sua originalidade. Se não és original, alguém irá apropriar-se do teu ser. Não tenha medo nem vergonha das tuas origens. Eu sou originária de África, sim, sou negra e tenho a minha cultura, porque renegá-la?
2 – Auto-afirmação – Afirma-te, se queres ser alguém na vida. Afirma os teus passos, deixa as marcas do teu pé gravadas de forma indelével pelos caminhos, para que todos digam: por aqui passou alguém. É preciso afirmar, com toda a pujança: eu sou, eu tenho! Jamais deixarei de ser quem sou. Ninguém irá usurpar o que é meu! Se isso não acontecer, serás apenas mais um, uma nulidade ou simples estatística.
3 – Auto-conhecimento – Conhece-te. Usa uma língua seja ela qual for, e serás original e único. É preciso resgatar os rastos da nossa história, que foram omitidos ao longo dos tempos. Não podemos andar à deriva. Quem não se conhece, é facilmente manipulado pelo mundo.
4 – Poder interior – Desperta o poder interior que Deus te deu. Se não o fazes, serás sempre secundário, subalterno, eterna imitação do outro. No acto da escrita, imprimo na língua portuguesa o poder da minha alma. Os sonhos de liberdade do meu povo. Negoceio a minha identidade e dignidade, como mulher e negra. Escrevo a língua como a sinto, porque não devem existir donos da língua.
Estas quatro etapas alcançam-se com dois verbos fundamentais: o ser e o ter. Comecemos por conjugar o verbo ser.
Eu sou, tu és, nós somos. Esta conjugação remete-nos ao UBUNTU, nossa filosofia: sou porque tu existes. Leva-nos aos caminhos da complementaridade, harmonia, fraternidade. Eu sou negra e tu és branco. Somos diferentes, mas podemos ser amigos. Sou humana, feita à imagem e semelhança de Deus. Sou africana, mulher e negra e, por isso mesmo, afirmo que Deus é mulher e é negra. Eu sou!
Na noite colonial, havia uma certa dificuldade na conjugação deste verbo. No presente do indicativo, colocava-se a afirmativa e a negativa à mistura. Eu sou e tu não és. Nós somos… o que é que somos? Inimigos? As guerras travadas ao longo dos séculos provaram a necessidade de uma conjugação perfeita. Quando me diziam tu não és, eu questionava: não sou porquê? Não sou a imagem de Deus? Será que Deus se enganou ao criar a mim, mulher, negra, e o continente africano? Diziam que me vinham civilizar, usurpando todo o meu ter e o meu ser, para transformar-me numa outra pessoa? Queriam eles substituir Deus na criação do mundo?
Olhemos agora para o verbo ter.
Eu tenho, tu tens, nós temos. O que tenho eu, filha de África? Tenho uma terra.
Tenho uma língua materna, minha herança divina. Tenho a língua portuguesa, minha herança humana trazida pelas circunstâncias da história. Eu tenho. Este verbo era também conjugado na afirmativa e negativa: eu tenho, mas tu não tens. Não é justo.
Nas lutas pela liberdade, os africanos conjugaram este verbo com mestria: eu sou, eu tenho, vou lutar pelo meu ser e meu ter.
Uma visita rápida aos dicionários mostra-nos como os africanos são retratados nos seus livros sagrados da língua ao longo dos tempos. Há palavras que nos repelem, excluem e, por vezes, assustam. Dou alguns exemplos:
Catinga – cheiro nauseabundo característico dos negros. Espero que tenha sido retirada. Se ainda permanece, gostaria que solicitar a sua eliminação imediata.
Matriarcado – costume tribal africano.
Patriarcado – tradição heróica dos patriarcas.
Palhota – habitação rústica dos negros. Hoje a palhota é reconhecida como uma habitação ecológica.
A língua portuguesa, para ser definitivamente nossa, precisa de um tratamento, limpeza e descolonização. É preciso conjugar os verbos ser e ter de acordo com as boas regras gramaticais.
Premiar uma negra bantu com uma distinção tão alta abre uma nova era na nossa história. Nós, os africanos, aprendemos a língua portuguesa, mas eles não apreenderam as nossas. Aproveito esta magna ocasião para convidar a todos a conhecer a beleza das nossas línguas. Termino afirmando com toda a convicção: eu africana, eu sou, eu tenho!
Muito Obrigado.
Lisboa, 5 de Maio 2023
*Discurso de Paulina Chiziane na recepção do Prémio Camões 2021, no dia 5 de Maio de 2023.