Mangue é um homem trabalhador, um chefe de família muito ordenado de cabeça e nos planos. Para atestá-lo estão ali aquelas inumeráveis palhotas que formam o seu povoado_ Ka-Mangue_, a abarrotar de mulheres e de filhos, dos quais alguns já lhe haviam dado netos e netas, outros a labutar na cidade-capital distante, e não tarda nada que outros ainda se lhe juntem nos labores das minas na África do Sul. As machambas e o gado completam e justificam a vida de opulência e de fausto que são os distintivos do seu pristígio. Em poucas palavras, avassala os outros habitantes com a riqueza que ostenta.
Em cada época de quadra festiva, ou por ocasião de celebrações de rituais para honrar os defuntos, a sua casa é de todos; um corre-corre de gente, vinda doutras povoações, e das casas vizinhas para outro reencontro entre amigos e familiares.
Ele disfruta os momentos de tranquilidade à sombra das árvores que cresceram frondosas ao redor da casa principal. É aí onde, na companhia das três esposas, revezadas no cumprimento das obrigações matrimoniais, ou em convívios amenos, um petisco aqui, uma aguardente acolá, repousa os seus cansaços e elabora projectos para maior enriquecimento. Quando já a força das bebidas amolece os ânimos e convida ao sono, estira-se sobre a esteira e adormece no embalo da prosperidade.
Quem o visse mergulhado no sono diria que, durante o mesmo, vivesse ou revivesse eventos como se estivesse em plena vigília. O dele é um descanso laborioso, atormentado de pesadelos. É só vê-lo a mexer-se, a remexer-se, a rolar na esteira, ora para a direita, ora para a esquerda, a resmungar discursos, a transpirar de tal sorte que emerge do mesmo encharcado de água, ou como sobrevivente de um grande perigo.
Desperta de brusco e sacode a cabeçorra calva para afugentar as imagens dos sonhos. Sentado, arfa como se o ar lhe escasseasse do peito.
A partir de uma determinada altura Mangue começou a levar para a esteira do descanso uma catana, a mesma que empunhava quando se dirigisse aos matos para o corte de galhos de arbustos_ e ele era louco por exercitar-se nestes pequenos trabalhos domésticos, embora não faltasse quem os pudesse executar com a mesma perfeição. A princípio, o gesto causou estranheza entre as mulheres e os filhos, mas as perguntas sobre o motivo ou os motivos conservaram-se no silêncio das dúvidas.
Com o tempo os espantos da família subiram de tom. Como se não bastasse o questionamento sobre a função da catana no decurso dos sonhos, o dono da casa começou a revelar comportamentos que avolumavam as apreensões. Depois das convulsões dos pesadelos Mangue ergue-se de chofre, aos safanões, de catana em punho e, com modos furibundos, de quem se defende ou ataca um inimigo, desfere golpes ao tronco da árvore em cuja sombra descansara com o empenho de um guerreiro. Fá-lo com um vigor tal que se alvejasse um ser humano dividi-lo-ia em dois, ou era capaz de decapitá-lo ou decepar-lhe um braço.
A lâmina do instrumento enterra-se quase toda na dureza da madeira húmida das árvores. Nestes lances_ outro mistério e outra coincidência por decifrar!_ os alvos atingidos são sempre os mesmos: as lagartixas.
Destas, que abundam nas redondezas da casa pela riqueza de insectos nos arvoredos, a princípio inadvertidas daquelas violências, muitas foram sacrificadas nos impetuosos ataques do dono da casa. Outras, muitas outras, perderam as caudas nas tentativas de fuga. Estas, as caudas, precipitam-se no ar e caem no solo para estrebuchar e acabar imóveis, mortas e sem valia. Os corpos remanescentes rastejam as dores, em curvas espirais para se abrigarem nas pequenas concavidades dos troncos das árvores. Na trajectória da fuga deixam rastos dos seus líquidos internos.
Tirando esses episódios, Mangue exibe o comportamento de um homem equilibrado e ponderado, senhor do seu juízo, ainda merecedor do respeito e da admiração da sua prole e dos demais residentes na povoação. Dir-se-ia que depois dos sacrifícios ele olvidava os incidentes, como se houvessem passado de insignificantes pesadelos a que não atribuía importância alguma, nem que lhe afectassem a disposição e os humores.
Quantas caudas teria amputado naquelas práticas é questão que nem ele próprio seria capaz de responder com acerto. Sempre que regressa ao lar para os festejos do fim do ano, _ e já faz três épocas em que se envolve naquelas batalhas_ todos adivinhavam a carnificina de lagartixas iminente. Seria aquele um ritual a que se obrigava ou que alguém, ou algum poder oculto, a tal o forçasse? Porque os há, os espíritos, que se apoderam do corpo de um cidadão e dele a mente e a mão tomam para executar as suas vontades, as mesmas que em vida não foram capazes, porque o tempo, as oportunidades e a habilidade para isso não tiveram.
Mas o que estaria por detrás das sessões de amputação daqueles pobres répteis e, ainda por cima, porquê com aquela violência toda?
Mangue fora sempre um homem ambicioso. Esta gula desmedida pelo poder e pela riqueza data da adolescência, desde os tempos em que era pastor das manadas do avô Gonhane. Nos campos era de exibir valentias_ todo jactâncias e estilos_e de propalar conhecimentos sobre tudo e sobre todos. Açulava os rapazes, uns contra outros, em brigas para dividir amizades e camaradagens. As melhores pastagens eram para os seus animais, os melhores frutos colhidos nas matas iam parar à sua boca, aos restantes reservava sempre o papel de servos dos seus caprichos. Dizia, de modo a todos escutarem, que, quando crescesse teria aquela região a seus pés. E fazia-o com aquela voz de bode, de timbre grave, que emanava do peito e ressoava na garganta como uma salva de trovões e que parelhava com o seu corpo avantajado, conjunto este que a muitos intimidava. As moçoilas do lugar tinham-lhe em simultâneo admiração, paixão e medo.
Não lhes respeitava a graça, o recato, e muito menos a castidade. Servia-se de artimanhas e de ameaças para conseguir os seus intentos, e esses eram os da exploração do medo e das fraquezas dos outros, das manipulações das fragilidades dos que dele necessitavam. Muitas fez, e muitas outras ficou por fazer, até à primeira viagem para as minas do Djone, em Caltonville. Em resumo, era um troca-tintas, um divisionista ambicioso e insuportável!
Nos compondes ao redor daquele complexo mineiro envolveu-se em pelejas que lhe deixaram marcas no corpo e no espírito. Bateu e foi sovado; pisou e foi pisado, esfaqueou e foi esfaqueado. Era a experiência de luta pela vida e pela sobrevivência que se acumulava. Aprendeu que para ser bem sucedido não podia voltar as costas à luta, que necessário era abrir o caminho à catana, porque esta vida é mesmo uma selva, onde apenas sobrevivem os mais fortes. O seu estandarde é o dos que acreditam que melhor é morrer do que ser derrotado.
Naquela quadra festiva_ a quarta depois do início daqueles surtos_ Mangue foi de novo acometido pelas crises dos ataques às lagartixas.
Aquelas, porém, distinguiam-se das anteriores por uma estranha singularidade.
As primeiras etapas do sono de Mangue são uma viagem tranquila e paulatina para um universo envolvido por uma atmosfera de penumbra, onde as imagens de eventos do dia e de pessoas se embrulham e confundem entre si. Nada que tenha algum sentido material, apenas sombras disformes que flutuam num encantamento, a caminho da inconsciência. Mas eis que, às tantas, ele penetra no isolamento de um descampado, ou então acha-se perdido nos labitintos dalguma povoação.
O seu corpo agigantado volve-se ora para esquerda, ora para a direita, e mostra sinais de um atarantamento, como se desconhecesse ou duvidasse dos caminhos a seguir. É um ser erguido na praça do nada. Os olhos vasculham para o lado nascente; daí vem a claridade avermelhada do nascer do dia; quando se volta para poente a escuridão intercepta os horizontes. Do norte e do sul a névoa leitosa da cacimba oculta mistérios.
Na mão empunha a catana companheira dos combates. Da retaguarda detecta movimentos. Então assiste àquela procissão de seres que rastejam ao seu encontro. São seres de fantasmagoria, semelhantes àqueles que se inventam nas estórias. Pequenos, porém, são incontáveis, multidões de caudas de lagartixas que se sustentam na marcha, cada qual sobre a sua muleta. Mancam em silêncio porque não possuem bocas com que falem.
Suas vozes emudecidas levaram-nas os restos dos seus corpos. São animais mutilados de membros e de palavras.
Mangue agita-se na esteira, não desperta, todavia. O seu sono é de chumbo, paralisado nos instantâneos do hipnotismo da surpresa. Estuga uns passos em direcção à fuga. A sua, porém, é evasão para o universo doutros desfiles. Na sua intercepção marcham cortejos de espectros: os de cabeças decapitadas de pessoas que se reconhecem na névoa dos horizontes: as dos pastores do seu tempo, as dos rostos transfigurados das mulheres que violou, os dos traços severos e disformes dos homens a quem de bens usurpou, as das crianças cujos pais imobilizou de ferimentos nos combates em terras longínquas. Não possuem corpos com que se ergam, apenas flutuam, tais balões, ao compasso da revolta. As bocas entoam cânticos de um cancioneiro de protestos: “…queremos os nossos corpos de volta…o que são as nossas cabeças sem corpos que movimentem?…o que são os nossos corpos sem membros que os agilizem?…queremos a nossa dignidade….queremos ser inteiros…”.
Neste transe, Mangue esboça corridas de escape. Esbarra, porém, nas muralhas do cerco do seu próprio pesadelo. Desfere golpes de catana contra a revolta dos mutilados em levantamento. É uma batalha desigual a que trava: grita por socorro, brada maldições na correria desenfreada.
Hoje em dia, ele é um homem que não dorme, prisioneiro duma insónia que o acompanha pelos dias fora e pelas noites dentro, com receio do seu próprio descanso. Vela a queda na cascata da desgraça. Se concilia sono, deste desperta em grandes sobressaltos, e galopa alucinado, em fugas para a cerração dos matos, em pelejas contra as imagens dos súbditos que subjugara e abusara com o fim de angariar glórias e acumular fortunas, os mesmos que então reclamam pela devolução da dignidade que ele lhes usurpou.
In “ Contos Profanos”. Alcance Editores, 2023.