Há poemas que não se deixam domesticar. Entram na boca como brasas, roçam a garganta, inflamam os sentidos. Há poemas que não cabem em uma moldura de significados fixos, que não se prestam ao descanso da interpretação clara. A poesia de M.P. Bonde é assim: um território de tremores, uma margem onde a palavra não ancora, mas resiste, se refaz, se desdobra em espectros de luz e escuridão. Um umbigo arde na boca longe de ser um mero livro, é um corpo em combustão, onde o íntimo e o simbólico colidem e deixam marcas.
Ao longo de seus versos, Bonde faz da palavra um campo de forças. Não há linearidade confortável, não há pausa para a respiração. O tempo se fragmenta, a memória se entrelaça ao presente, a experiência do corpo se confunde com o ônus da realidade.
No Caderno Primeiro: margem, nota-se uma reflexão sobre o tempo e a memória, com versos que dialogam com silêncio. O poema III traz elementos como “há anjos relendo Elliot no quarto onde amadurecem as palavras…”, evoca uma atmosfera introspectiva onde a literatura se torna um refúgio e, ao mesmo tempo, uma prisão melancólica.
Ademais, no poema IX, “na aflição escura a dureza do sono expande os gestos no soalho…”, o sono longe de ser um descanso, é uma matéria dura, um espaço de gestos que se expandem, talvez involuntários, talvez forçados pelo próprio desconforto da existência. O eu lírico não se abandona ao repouso – ele se movimenta no soalho, que amplifica sua presença tornando cada gesto audível, visível, palpável.
As figuras de estilo utilizadas por Bonde são afiadas e desestabilizadoras. A personificação das manhãs que “penduram o cume na folha pálida” , não é apenas uma atribuição poética da humanidade à natureza; é uma afirmação de que a luz não dissolve a angústia, mas a sustenta.
Há na sua poesia um brilho intenso, mas que não se entrega à claridade total, pois, como escreveu Antero de Quental, em Raios de Extinta Luz, “a arte é como luz: brilha do alto”, e é
desse lugar que Bonde conduz suas imagens – ora iluminando, ora mergulhando no escuro,
sem jamais se fixar em um único ponto. A sinestesia, subtil, entretanto presente, costura sensações e emoções em um mesmo tecido, criando uma poesia que se sente tanto quanto se lê.
Esse jogo entre a claridade e o desespero reaparece nos paradoxos da obra. A expressão “na claridade do desespero, as confidências do eco”, inverte a lógica comum: o desespero normalmente associado à escuridão aqui o autor o veste de luz. Esse tipo de subversão semântica, é recorrente na obra e exige uma leitura activa, onde cada verso pede para ser relido, decifrado, revirado como um enigma. O poema não se entrega de imediato — ele impõe resistência.
Por vezes essa resistência se manifesta no próprio estilo tornando-se excessivamente hermético. O excesso de deslocamentos sintéticos, pode gerar uma sensação de afastamento, impedindo que o leitor se conecte emocionalmente com o poema. No entanto, essa escolha estilística não é gratuita: é parte do próprio jogo de combustão que sustenta o livro. O desconforto não é um efeito colateral, mas um convite à imersão.
Já no Caderno Segundo: Porções do tempo, o tom parece mais intenso e onírico. No poema 4, a angústia é materializada em imagens como “Amarrei fios de lã na dobra da angústia” e “vozes amordaçaram lágrimas no vórtice da boca”. A recorrência do corpo – boca, umbigo, pupila – aponta para uma escrita que inscreve a subjectividade no físico, transformando emoções em matéria.
O título do livro já sugere essa fusão entre carne e verbo, entre matéria e discurso: um umbigo arde na boca. O umbigo, esse primeiro vínculo com a vida, o traço da conexão primordial, queima no lugar do discurso, na casa do dizer. É uma representação que ressignifica a oralidade não como um dom, no entanto como um fardo, um incómodo que inflama e queima. Mas o que resta ao corpo, se um umbigo arde na boca? Talvez resta apenas desassossego — um corpo incendiado pela linguagem, onde cada verso é fogo.
O impacto dessa escrita não está apenas no que ele diz, porém na forma como diz. A ausência de pontuação, a quebra abrupta dos versos, a escolha por imagens que desafiam a lógica habitual do pensamento: tudo isso faz de Um umbigo arde na boca um livro que exige uma leitura imersiva. Não há concessões ao leitor; há, sim, um convite – mas é um convite para a vertigem, para o fogo que arde na palavra e no corpo.
Ao final, resta a sensação de que fomos atravessados por algo indomável. Bonde não escreve para apaziguar, não escreve para ser decifrado em uma única leitura. A sua poesia é um organismo vivo, que nos escapa sempre que a tentamos fixar. E talvez seja essa a sua maior força, permanecer ardendo, mesmo depois que fechamos o livro.