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O fim da inocência

Por José Paulo Pinto Lobo

 

Lourenço Marques 7 de Setembro de 1974.

Nove meses e dez dias após ter completado 16 anos.

Carros buzinando em alegre cacofonia com gente incauta e outros nem tanto, dependurada nas janelas das viaturas e com bandeiras portuguesas desfraldadas ao vento.

Galo, galo. Galo amanheceu!

E feras travestidas de homens atacaram os bairros suburbanos exterminando todos o que podiam sem qualquer pingo de humanidade. A reacção do povo agredido foi colocar na equação similar irracionalidade e adicionar ferocidade aplicando sem dó nem piedade a pena de Talião.

Apelos na rádio para doadores de sangue e voluntários para ajuda na triagem de feridos e noutras tarefas hospitalares. Convocado, prontamente no Hospital Central Miguel Bombarda me apresentei. Com uma bata azul envergada aguardei na entrada pela chegada dos maltratados na demente sanha assassina.

Carros particulares apitando em aflição, fazendo coro com o uivar estridente das sirenes das ambulâncias que afluíam sem cessar, despejando gente, muita gente. Parecia um enxame de vespas furiosas atacando a hospitalar colmeia.

Pessoas irmanadas na dor. Não se distinguia cor, aliás, apenas uma só cor. Vermelho. Tanto vermelho. Rios de sanguinolento vermelho. Até o céu se pintou de rubro ardente.

Todas as tonalidades de vermelho jorravam de ferimentos na cabeça, peito, braços e pernas. Feridas de balas de todo o calibre, de cartuchos de caça, zagalotes, cortes de catanas, machados ou qualquer outro instrumento contundente. Pessoas queimadas ou mutiladas nas pirómanas barreiras da estrada, nas palhotas incendiadas, ossos estilhaçados por balas explosivas e granadas, por pancadas de raiva, vingança e medo.

Médicos capitaneando unidades de combate. Queimados para ali, traumatismos aqui, ferimentos de bala para acolá. Cortem a roupa, limpem as feridas. Enfermeiros e auxiliares meio aturdidos afadigavam-se como regimentos disciplinados. E eu perdido no meio de uma guerra qual soldado recruta sem treino e sem armas.

Roupas, faces e corpos ensanguentados, sangue gotejando para as macas. Gritos de agonia e gemidos sem fim. Penetrando nos ouvidos e reverberando sem cessar enquanto se tentava fazer a (im)possível triagem. E o sempre omnipresente cheiro doce e enjoativo de sangue. E a morte ceifando vidas inocentes.

Mãos trémulas e exauridas buscavam as minhas em silencioso pedido de socorro e alento na minha desfalecida juvenil incapacidade. Emudeci em vã busca de palavras. Inexistia dicionário para aquela condição. A minha bata azul era tela de um louco pintor cuja paleta só tinha uma cor. Vermelho.

Olhares aterrorizados, outros vagos, catatónicos, tentando compreender tamanho pavor. Incrédulos ainda perante a crueldade e barbárie sofrida. Olhos revirando-se buscando mães, pais, irmãos, filhos, amigos, lancinantes apelos perdidos na balbúrdia hospitalar.

E as pessoas irmanadas no horror. Fraternizadas no desespero. Que adolescente poderia aguentar tal abominação? Não suportei. Baqueei.

Nesse mesmo dia e dias seguintes, refúgio encontrei na cozinha do hospital descascando batatas, cortando legumes, lavando pratos e tachos. Mas não deixei de ouvir as sirenes das ambulâncias. Nem os gritos e gemidos dos moribundos ressoando na minha cabeça.

Trágicos e tenebrosos dias fendendo o sonho de prometidas alegrias. Dias de mudança. De céu azul e também de nuvens carregadas prenunciando outras tempestades.

Assim, com a inocência abruptamente perdida fiz-me então incompleto adulto.

 

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