Por: Ivan Collinson
No ano 2019, o mundo assistiu à uma apresentação da origem de Joker, o arqui-inimigo de Batman, do Mundo da DC Comics. Com um orçamento modesto, o filme posteriormente aclamado pela Academia das Artes e Ciência de Hollywood, registou uma receita superior a $1 bilião de dólares americanos.
A história é íntima… pessoal… até familiar… e esclarece a génese desta figura incontornável do mundo dos super-heróis, em especial, do Batman. Com uma interpretação de altíssimo nível que, aliás, valeu ao protagonista Joaquin Phoenix o galardão de melhor actor, este filme contou com actores de enorme gabarito, nomeadamente, entre eles, Robert De Niro e o director, ambos galardoados pelo seu desempenho em produções anteriores.
Mas é na Cidade de Gotham que a história de Joker se desenrola sempre, desde a criação deste personagem em 1940, por Bill Finger, Bob Kane e Jerry Robinson. Nesta produção, diante de uma cidade essencialmente tomada pela violência e economia atrofiada, caracterizada, por um lado, por uma enorme latência por parte de quem tem o poder e, por outro lado, pela perniciosa e consumidora corrupção, o comediante Arthur Fleck, portador de uma condição neurológica, depois de uma sucessão de eventos, entre eles um ataque visceral, inicia um processo de defesa pessoal, que culmina com o confronto junto de quem considerava ser seu progenitor – curiosamente, pai de Bruce Wayne, para depois perceber que sua mãe, esquizofrénica, terá idealizado tal fantasia. Contudo, o movimento de protesto, usando a máscara de um palhaço, que aliás, era instrumento de trabalho, antes de ser despedido, já havia ganho momentum, principalmente depois da sua trágica aparição na televisão local, que culminou com o assassinato da personagem de Robert De Niro, Murray Franklin.
Esta cidade utópica marcada pela desigualdade… pelo foço entre os ricos e pobre, pela corrupção que, mais tarde, sustentou a emergência de um sentimento anti-rico entre aqueles que nada tinham (alegadas vítimas do sistema) e os que tinham (vistos pelos primeiros como corruptos), como se não houvesse uma terceira via… dos honestos que, trabalhando honestamente, conquistaram um pedaço de felicidade e estabilidade social.
Não se trata de um artigo de opinião sobre cinema. Nem de longe!
Trata-se, antes, de uma contribuição às várias interpretações de fenómenos sociais que convergem numa narrativa de alegada opressão, que remete o clamor até à quem já não mais governa, anteriores dirigentes, de tempos razoavelmente bons e de calma colectiva.
Trata-se de encontrar no mais recente filme Joker, galardoado nos Óscars e não só, os sinais presentes e similares (comparação!) entre o sentimento dos habitantes de Gotham e os de Maputo, Matola, quiçá Moçambique. Aqui nestas cidades, enquanto se condena a vandalização do bem público e da perturbação da ordem, há um certo sentimento paralelo de compreensão, talvez até de corajosa empatia para com quem protagoniza estes actos.
Daí que esta proposta atrevida de interpretação de um evento social se chame o Efeito Joker.
Os actos ocorridos no dia 14 de Julho de 2022, decorreram depois de anúncios feitos por promotores “sem cara”, contudo, capazes de paralisar uma cidade capital de um País, provocando dezenas de milhares de Meticais em prejuízos, alterando planos colectivos, individuais. Mas estes actos, denominados por “greves” por quem os convocou ou promoveu, foram ecos de outras com mais ou menos as mesmas características, designadamente, o fundamento de que a situação de injustiça, de desigualdade e impunidade, diante das condições de vida precárias da maioria dos cidadãos, não pode prevalecer.
Em 2008, também diante de um aumento dos preços dos combustíveis, populares terão alegadamente se organizado para protestar com recurso à violência no dia 05 de Fevereiro, com queima de pneus, saque de lojas, vandalização de propriedade privada, interrupção da circulação nas estradas.
Em 2010, o aumento do custo do pão, da electricidade, da gasolina, do gás doméstico e seu efeito replicador noutros produtos essenciais, levou com que uma greve violenta culminasse até com perda de vidas humanas, para além dos danos materiais avultados.
Há que lembrar que, desde os protestos em 2008, condenado por várias forças da sociedade, do lado de quem se considerava “oprimido”, houve uma sensação de justiça servida. Como que dizendo “à vocês também chega a dor”. E aí, uma nova ordem é formada.
No filme de que nos servimos para fazer a analogia, o actor Joaquin Phoenix, ao interpretar o carácter de Joker, tem a ilusão de que é filho de Thomás Wayne e, portanto, meio-irmão de Bruce Wayne, o Batman. Afinal, como terá também imaginado Penny, mãe de Jocker, somos todos irmãos; filhos do mesmo pai, entretanto, um abandonado e outro acarinhado, mesmo que numa esfera completamente surreal e inautêntica. Mas é aí que reside o sentimento de abandono que também caracteriza a exclusão social, mesmo que a origem seja completamente esquizofrénica.
Afinal, de que mente sã sairiam tais pensamentos destrutivos? Colocando em risco a estabilidade da colectividade?
Seja qual for a origem, falsa, esquizofrénica, o facto é de que há um parte do povo que experiencia qualquer coisa próxima à opressão, à desigualdade e exclusão sociais e estas têm consequências nefastas para as sociedades, como aliás a história documenta. Um documento agora pouco consultado, mas muito referido nos meus tempos de faculdade, foi a Agenda 2025. Os cenários propostos por aquela equipa de profetas, descreveram os possíveis caminhos de Moçambique, caso determinadas características permanecessem, neste caso concreto, invocam-se a corrupção, desigualdade e exclusão sociais, descritas no Cenário do Cabrito.
O Efeito Joker seria apenas uma nova etapa, uma consequência quase que inevitável, de origem esquizofrénica, diante das pressões à que determinados grupos se sentem sistematicamente sujeitos. Não se pretende justificar qualquer acto perturbatório da ordem pública, muito menos conferir respaldo teórico à vandalização. Mas apenas oferecer um quadro de análise com o qual também nos identificamos, para entender (atenção: entender!) a actual realidade social.
É preciso ouvir o povo.