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O dicionário da sobrevivência

Por: Óscar Rosário Jorge Daniel

 

O dicionário da sobrevivência, de Francisco Raposo, publicado pela editora moçambicana Fundza, em Agosto de 2022, é um romance típico moçambicano, que se caracteriza por uma junção de pequenos contos, apresentados ou não em títulos. Raposo não foge desta característica. A sua obra está composta por 10 contos, curtos e simples de leitura. Embora cada conto apresente um título diferente, a temática abordada em cada um destes é a mesma, a que dá título a sua obra “O dicionário da sobrevivência”.

Considera-se de dicionário uma obra de referência onde se encontram listadas palavras e expressões de uma língua, por ordem alfabética, com informação linguística sobre cada uma delas, como a respectiva significação ou tradução para outra língua, a classe a que pertencem, informação fonética, etimológica etc., mas este dicionário, que hoje é lançado neste auditório, não é da listagem de palavras com a informação da classe a que pertence, informação fonética ou etimológica, é sim, uma listagem da vida social dos moçambicanos que sofreram e sofrem ciclicamente com desastres naturais, nos últimos anos, tais como, ciclone IDAI, retratado no conto que introduz a obra; Covid-19; a guerra contra os insurgentes, entre outros, influenciando negativamente a vida social dos moçambicanos, como, mortes de formas diversificadas, perda de produtos nas suas machambas, nas suas lojas, não apenas pela força da natureza, mas também pela força humana (aproveitando a oportunidade para saquear os produtos), como refere na seguinte passagem textual: “Daí toda a comunidade entrou e transformou-se em bando de bandidos desarmados fisicamente. Mexeram em tudo, para retirar farinha de milho, arroz e óleo” (p.14).

Além disso, trata-se da subida de preços dos produtos “Os preços das coisas subiram. Tudo já custa o triplo. Até pensar correctamente já custa” (p.15), criando endividamento aos bancos, “Submeteu o seu expediente ao banco. Em uma semana, alguém trouxe a carta assinada pelo próprio gerente. Já estava consumado, já se conhecia a primeira pessoa a beneficiar-se do crédito do novo primeiro banco de dinheiro da vila” (p.58) (…) “- Viva! Viva! Eu tenho crédito. Viva! Viva! Ndano maleyapepa” (p.59). Endividamento nas casas vizinhas, “Lembra que tem muitas dívidas conhecidas e outras ocultas na banca do vizinho, que, com certeza, não lhe faria novamente o favor de empréstimo – o pai de Bebito tem fama de mau pagador” (p.20).

Falta de comunicação através das redes de telefonia móveis “Sem redes telefónicas, a única forma de contactar os outros era pelo método antigo” (p.16). Há também oportunismo, para além do referenciado nas linhas anteriores, os personagens inventam a separação conjugal para obter oportunidade de receber os produtos oferecidos por vários doadores ao dobro, “Do outro lado, estava a família Flores, combinando falsa separação e divisão dos filhos, para driblar a intercessão matemática e receber mais tendas e comida” (p.17).

Contudo, o custo de vida subiu, tendo levado às pessoas a se prostituírem para ganharem a vida “E no ano seguinte pôs em prática os novos saberes, cedeu a todas seduções, deu carne a quem teve fome. Deu aconchego a quem teve tormento (…). Chegam dois homens que invadem a mesma mesa. Expelem charmosos olhares. E elas cruzam as pernas, e jogam alguns centímetros de nádega como amostra do sabor que escondem. Entre si, elas escolhem os futuros parceiros no vapor do álcool” (pp.40-41). “Muita bebida. Beijos de múltiplas parcerias. A lascívia agudiza-se a cada segundo. Tonito agarra-se à Maria Mecubela. As outras estendem-se ao Russel por ser branco e este joga a camisa para o chão de forma canibal” (p.51).  Outras pessoas encontram a igreja como refúgio, “Rufino Alegre ficou curioso, não quis perder mais tempo. Anotou rapidamente o endereço da igreja ODD e os horários do culto. Anotou os números de telefone do Profeta Novo Moisés” (p.27). “Quando chegou, foi recebido por um grupo de jovens e adolescentes designados faz de conta levitas”, vestidos de preto e branco. As gravatas dos rapazes e os laços das raparigas traziam desenhos de pombos beijando a cruz” (pp.28-29).

Estas e várias outras consequências que afectam negativamente a vida social dos moçambicanos são descritas de forma detalhada por um narrador fotógrafo. É fotógrafo por ter trazido a cada detalhe do que viu, viveu e ouviu, dando testamentos aos seus mais próximos acompanhantes, como se pode sustentar com as seguintes frases: “O senhor Marcos que o diga” (p.10); “O Sérgio que o diga” (p.14); “Ele também não soube dizer ao certo” (p.58); “- Foi estuprada. Especulam” (p.72). Estas são expressões típicas em relatos históricos da tradição oral.

E para que não esgotemos a obra, convidamos a todos para uma leitura em outras vertentes da mesma. Portanto, kalibu ao dicionário da sobrevivência.

 

Muito obrigado!

 

Lichinga, 19 de Outubro de 2022

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