Em alturas assim, só as Pequenas Coisas acabam por ser ditas. As Grandes Coisas permanecem latentes.
Arundhati Roy
Para começar, o campo literário de Léo Cote é de palavras, e não de areia. Entretanto, a areia também é uma palavra, que simbolicamente representa princípio e fim, vida e morte. Os mais devotos acreditam que a Humanidade é produto de terra e, muitos deles, é para o (sub)solo que regressam. Então, a alusão à areia no título do terceiro livro do poeta pode suscitar interpretações de género ou de outra amplitude. Mas não é por aí que se pretende caminhar. Esta é apenas uma espécie de exórdio, evidentemente, sem nenhum rigor.
Indo ao que realmente interessa, bem se sabe, Campo de areia, de Léo Cote, publicado pela Fundação Fernando Leite Couto, é um livro constituído por dois cadernos complementares: gravuras e inclinações geométricas. No livro, uma linha de leitura passível de ser desenvolvida atrela-se a três factores: objectos, seres e espaços. Neste terceiro caso, facilmente denota-se que as superfícies permanentemente apresentadas nos textos situam os sujeitos de enunciação em relação a uma imagem onírica construída com padrões de realidade e, por conseguinte, projectam o olhares daqueles em vários meios, como se a pretensão fosse levar à poesia alguma peculiaridade naturalista ou impressionista.
São os espaços que nesta escrita de Léo Cote permitem um tácito movimento aos versos, à medida que, vezes sem conta, as falas dos sujeitos deslocam-nos de um sítio ao outro, vagarosamente. Com isso, o universo encantado criado evidencia a atmosfera de um Moçambique possível e raro, fonte da subtil porção da transfiguração literária. Por exemplo, se a rua e a estrada em Cote são passagens para a captação de certa emergência, a casa (que às vezes adquire feições antropomórficas) e o cais são lugares de onde se projecta a emoção do sujeito poético sobre as coisas simplórias e graves.
Na verdade, o cais, o mar e os rios, principalmente, aparecem nos poemas a definirem-se como locais enigmáticos e sedutores, por isso ali sobrevoarem gaivotas. Em geral, com raras referências a abelhas, andorinhas e crianças, os seres mais convocados ao terceiro livro de Léo Cote são os pássaros, responsáveis por pintarem a paisagem e nela construírem um lugar além do real, mas sem ser surreal. Com os pássaros, esses protótipos da liberdade, a poesia floresce, ganha um carácter concreto, mais visual e expande-se numa direcção vertical. As aves dão pulsação à escrita de Cote. Todavia, ainda assim, essa mesma escrita toca uma dimensão escatológica, quando a morte – “um princípio sempre ao nosso encontro” (p. 26) – é convocada com insistência.
Quanto aos objectos, estes, em Campo de areia, são capazes de contrariar o impossível, fazendo do tempo e do dia coisas tangíveis: “O tempo é uma casa grande/ que apodrece devagar” (p. 17). Do mesmo modo, objectos como barco, amuletos, muletas, de forma fragmentada, satisfazem a necessidade de Léo Cote tornar a sua poesia, nos dois cadernos, algo exterior, como se assim “arranca-se a beleza máxima das coisas” (p. 40). Mais do que essa, a seguinte passagem é muito clara em relação à preferência aos objectos (coisas): “Começo a conhecer-me nas coisas/ porque tudo em mim está baço e embaciado/ como uma vetusta ferida/ as coisas concretas dão razão a minha inteligência/ e um desejo forte de me deixar possuir por tudo/ de me abrir inteiro para o que há” (p. 81).
A inserção dos objectos, seres e espaços nos textos tornam Campo de areia um livro mais ou menos sensitivo e muito ambiental. Tal vertente é importante pois o poeta consegue, através das delicadezas da arte literária, pintar o planeta de cores bonitas, distanciando-se dos cataclismos criados pelo Homem. Com Campo de areia Léo Cote assume-se poeta da vida, ora solidário com as crianças, ora entregando-se ao que a Natureza tem de melhor, sem grandes aspirações. Portanto, este também é um livro sobre a indispensabilidade das pequenas coisas, num contexto em que os humanos dão tanto azo à megalomania.
Título: Campo de areia
Autor: Léo Cote
Editora: Fundação Fernando Leite Couto
Classificação: 14