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O amor e o Íntimo na voz de Guto D’Harculete

Guto D'Harculete é cantor e produtor musical. Compõe e também actua como corista. Em 2013, lançou o seu primeiro álbum no formato digital, Íntimo e pessoal, constituído por 13 temas, muito afeiçoados ao amor. Actualmete, o artista encontra-se a trabalhar num segundo projecto, inspirado na sua filha. Nesta entrevista, o artista fala da sua relação com a música e com o humor, do que o move e do que alimenta a sua imaginação.

 

O seu álbum de estreia, Íntimo e pessoal, do ponto de vista temático, é carregado de muitas componentes líricas. Há uma explicação?

Íntimo e pessoal é uma experiência de uma simbiose entre produtores musicais e eu como artista. Íntimo e pessoal fez parte de um projecto chamado Excentric Music, que, em 2013, estava constituído por produtores que seleccionavam cantores para fazer a parte cantada nos seus beats. Eles convidaram-me também e, a partir daí, criamos um produto que foi inteiramente neo soul e Hip-Hop, em que a composição estava na minha responsabilidade. Na verdade, a partir do momento que tínhamos quatro músicas, começamos a chamar o álbum de Muito íntimo. Mais tarde, por sugestão de Neuro Toxina, ficou Íntimo e pessoal. Ao trabalharmos neste projecto, tentamos não fugir da alma neo soul, que era uma coisa nova aqui em Moçambique.

 

As suas músicas, neste álbum, apresentam constantemente uma musa, que responde, corresponde e, às vezes, nem por isso. Quem é esta “dádiva” – e este é o título de uma das músicas do álbum – não existencial que tanto o ilumina durante a composição?

Na produção deste álbum, procuramos não fugir ao estilo poético do neo soul. Quisemos ter a ficção, o futurismo e imaginação apenas, ao invés de assuntos reais. Isto é, essa dádiva não existe.

 

Está observado que não existe. Mas quem é essa dádiva na sua imaginação?

Pois é. Ela não existe, mas a tal dádiva que sempre coloco nas minhas composições é a própria música. Grande parte dos temas em que coloco a imagem feminina, é da música que se está a tratar.

 

Neste Íntimo e pessoal o amor é o ponto de partida para se pensar nas próprias relações reais, embora há pouco tenha dito que a realidade não lhe interessa muito. Estou e pensar, por exemplo, na música “Tarde de sexo”. Admite?

Sim, até porque o título dessa música, no caso, já sugere um envolvimento físico. Aqui nós tentamos levar ao álbum a parte passional do amor, procurando aproximar a parte carnal desse sentimento.

 

Mas nisso que chama aproximação, na verdade, há uma rejeição…

Sim e não. Refiro-me a parte carnal mais no aspecto do que a música vai criar. Não é carnal porque não existe contacto físico. Nessa música que se refere há uma conversa ao telefone que depois resulta num encontro. Aí procuramos apresentar uma imagem mais vermelha – costumo chamar as relações de cores –, mas aproximada às relações que chegam ao momento de sexo. De facto, além dessa música, a outra que tem essa particularidade é “Perfume”. Estas são duas das três músicas mais reais do álbum, em que a personagem não é exactamente a música.

 

O amor é apenas um elemento para concretizar um estilo musical ou a sua ocorrência tem outras razões?

Eu penso no amor como um tema muito vasto. No álbum, usei o amor apenas como um instrumento que me permite chegar a outros temas que queria tratar. Não é um elemento final, mas um trampolim para tocar em tantos outros assuntos. Essa tem sido minha estratégia na composição de vários temas. Eu uso muito amor, e não só no aspecto conjugal. O fraternal também me interessa.

 

Qual o ponto de intercessão entre o período em que se descobre na música e o período que se apresenta ao público?

Com os meus sete ou oito anos de idade fui convidado a participar num programa televisivo. Na altura, claro, nem fazia ideia de que poderia ter algum talento para a música. Por gostar de música, e até porque na família tenho coleccionadores de música, aceitei ir ao programa. Fiz mímica de uma música e, a partir dali, passei a interessar-me pela arte musical. Por volta de 2001 identifiquei-me com o estilo Hip-Hop e criei o nome artístico Guto. Dois anos depois, aprendi a fazer beats e, em 2005, começo a trabalhar como beat maker. Em 2007, percebo que, se calhar, eu poderia cantar nos meus próprios beats. Em 2008, quando me mudo para estudar em Maputo, dá-se a intercessão entre o Guto apenas beat maker e o Guto beat maker e cantor. Lembro-me que nessa altura calhei numa turma em que estava um irmão de Azagaia, com que fiz parte de um grupo. Algum tempo depois, Azagaia convidou-me a fazer parte da banda dele como corista e foi ouvindo os meus beats. Mais tarde ele convida-me para fazer o beat da música “Filhos da…” e uns tantos outros que entraram para o período de gravação do álbum Cubaliwa. No final ficaram no disco três beats: “Calaste”, “Cão de raça” e “Wa Gaia”.

 

E nessa mesma altura Guto aparece como humorista…

Nessa mesma altura eu imitava a voz do nosso ex-Presidente. Esse episódio levou-me a fazer parte do grupo Impro Riso e, a partir daí, as pessoas passaram a conhecer-me mais como humorista do que como cantor. É engraçado que algumas vezes era convidado para ir aos programas televisivos. Pensando que fosse para cantar, levava o meu instrumento, e lá ficava a saber que era para o humor.

 

O humor é posterior à música?

Sim, mas também diria que não. O humor é algo que vem na família. O meu irmão mais velho, Alberto, já fazia isso, e, nós, os mais novos, sempre imitávamos. Aliás, o meu irmão mais velho sempre foi um exemplo para nós. Por causa do meu pai, e, depois, dele, muitos membros da família passaram a coleccionar e a gostar de música. Agora, na minha família, sou o segundo de quatro irmãos que cantam. Então, a parte do humor surge com o empurrão do Azagaia, eu fiz um número numa música dele. O Azagaia passou a chamar-me para os seus shows. As pessoas que ouviam a minha actuação gostaram. O Impro Riso ouviu e convidou-me a fazer parte do grupo.

 

O que mais lhe entusiasma entre a música e o humor?

A música… sempre. E agora tem sido mais música porque as pessoas já não estão muito familiarizadas com a imagem do antigo Presidente.

 

E em relação a produzir as instrumentais, participar nos coros ou a cantar as suas próprias músicas, há algo mais especial?

Eu gosto de ouvir a minha voz. Não interessa se é na minha ou na música de outra pessoa. Ultimamente, tenho feito muitos coros nas músicas dos meus colegas e isso dá-me muito prazer. É um trabalho que gosto muito e gosto muito de saber que, se calhar, a música do meu colega ficou bem porque contribui com a minha voz. E muitas vezes a minha participação até passa despercebida. Sendo mais concreto, acho que o que eu mais gosto é de fazer coros para as músicas dos meus colegas.

 

Voltando ao disco, em que momento da sua vida Íntimo e pessoal foi lançado?

O álbum foi lançado num momento que eu considero de recriação pessoal. O álbum foi lançado na minha ausência. Naquele ano de 2013 tomei algumas decisões importantes para minha vida. Foi no ano que desapareci para as artes.

 

O que significa desaparecer, aqui?

Significa parar de fazer tudo. Em 2013, eu estava a estudar, e como me dedicava à música e ao humor, tive maus resultados na Faculdade. Isso afectou a minha vida pessoal e espiritual. Então aí decidi dar um passo em tudo e recriar a minha vida. Tive um reencontro com Deus e, a partir daí, comecei a redefinir algumas prioridades para mim. Portanto, não vi e nem acompanhei como foi lançado o álbum, mas sempre tive a confiança na equipa que o lançou. Quando retornei em 2019, com actuações ao vivo, as pessoas deram-me um retorno positivo, como se o álbum fosse ainda uma novidade. As pessoas ainda estão a consumir o álbum como se tivesse sido lançado ontem.

 

É por ser ainda novidade que vai relançá-lo no formato físico?

Exactamente. Nós estamos a pensar na reedição do álbum com uma versão física a acompanhar a digital. A ideia é também dar resposta aos coleccionadores de discos, que são muitos.

 

Há datas prováveis para esse lançamento?

Antes da pandemia chegar a Moçambique, tínhamos datas. Havíamos agendando um show para este mês, que iria culminar com a venda da versão física de Íntimo e pessoal, que as pessoas estão a consumir pouco. Além disso, tínhamos perspectivado lançar o meu segundo álbum, intitulado Guta, em Outubro. Por causa da pandemia, teremos de remarcar tudo de novo.

 

Além do seu segundo álbum ter um título inspirado no seu nome, tem outra história?

Tem. Guta é o nome da minha filha. Dei este nome ao álbum porque, além de tudo aquilo que um pai sente pela sua filha, amor incondicional, eu já apreciava a minha filha já antes dela nascer. Por ela desenvolvi um amor antes mesmo de a minha esposa estar grávida. Como manifestação de toda alegria dos eventos que se cumpriram, desde que eu a idealizei até nascer com a minha cara, comecei a criar algumas músicas e intitulei o álbum Guta, quando já possuía três músicas. Ou seja, criei as músicas do álbum inspirado na figura feminina da minha filha. Portanto, Guta será um álbum muito feminino, com conselhos para mulher e valorização da mulher.

 

Actualmente, como não podia deixar de ser, há uma nova vaga de cantores, instrumentistas e produtores musicais, com e sem discos lançados. Como está a nossa música a esse nível?

Acho que a música moçambicana está a passar por dois extremos. Criativamente, estamos muito ricos. Com o aparecimento de novas casas culturais que têm promovido muita música moçambicana, têm-se notabilizado muitos nomes que andavam escondidos ou que não conhecíamos os potenciais. Agora tem-se visto um investimento em novos ritmos e estilos e têm aparecido muitos novos bons cantores, mais ousados. Temos bons executores, e desenvolvemos muito na actuação ao vivo. Em segundo lugar, temos bons estúdios. Isso nos enriquece.

 

Faltam-nos editoras…

É aí onde que queria chegar. Estamos muito presos nessa questão. Não temos editoras radicadas em Moçambique com capacidade para albergar todos os artistas.

 

E como será com os seus discos?

Farei a captação e gravação cá. Se tudo correr bem, faremos a mistura e a masterização fora de Moçambique. Será trabalhado e impresso fora. Depois, vendemos nós próprios.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro Cubaliwa, de Azagaia, e o livro Ritmo, alma e poesia, de Emílio Cossa.

 

 

PERFIL

Guto é o nome artístico de Augusto Delfim Harculete. Nasceu em Nampula, a 18 de Julho de 1988. Em 2005, ao lado do seu amigo de infância (C Duarte), inicia a carreira como beat maker e corista no estilo Hip-Hop. Em 2007, começa a estudar música e a cantar num grupo da igreja. Um ano depois, muda-se para Maputo a fim de se formar em Engenharia Civil, na UEM. Ali conhece Hélder Luz, irmão de Azagaia, com quem cria o grupo Gregos e Troianos, junto do Adviser. Gregos e Troianos gravaram sete músicas, tipicamente rap consciente, e lançaram a mixtape apadrinhados por Azagaia. Nas suas experiências, Guto também gravava discursos em forma de paródia de personalidades políticas, explorando a sua inclinação para comediante. Em 2010, Azagaia, tendo ouvido um desses discursos, pediu que Guto fizesse um semelhante numa das músicas que iria lançar. Na sequência, ouvindo os beats produzidos por Guto para os Gregos e Troianos, solicitou que Guto o fornecesse alguns dos seus beats. Em 2011, o grupo de stand up comedy, ImProRiso, convidou Guto a fazer parte do seu colectivo, inicialmente fazendo discursos imitando a voz do Presidente da República de forma cómica.

 

 

 

 

 

 

 

 

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