Quando Dom Dinis Salomão Sengulane nasceu, no Posto Administrativo de Zandamela, Distrito de Zavala, em Inhambane, foi-lhe atribuído o nome do bisavô paterno, Nyanzume, do cicopi, “fazedor das coisas do céu”. O oitavo filho de Solomoni Sengulane, mineiro nas minas sul-africanas, e de Rosita Massango, camponesa, viu a luz do dia pela primeira vez no dia 5 de Março de 1946, lá vão 75 anos.
Mesmo com um nome celestial, o pequeno Nyanzume não perceberam de imediato o alcance dos seus ministérios. Na verdade, ainda imberbe, Dom Dinis descobriu a vocação eclesiástica sem que disso se apercebesse. Tudo começou como brincadeira e tantos foram os que viram-no inventar missas e baptizar bonecos feitos de laranja pelas irmãs, ao mesmo tempo que improvisava um inglês que nem sabia falar. O líder daquela igreja de brincadeira em que se autoproclamava bispo era ele, e os irmãos mais velhos restringiam-se, sem contestação, a ajudá-lo nas orações. E os manos não eram “subordinados” porque lhe queriam agradar. Novo, Dom Dinis já indicava caminhos que seguiu de forma leal e particular. Para o efeito, valeu-lhe muito a irmã Melta Sengulane, primeira Enfermeira-Parteira que nasceu em Zandamela, a quem coube zelar pela educação do infante, quando foi viver consigo.
Já que o trabalho de Parteira obrigava Melta Sengulane a deslocar-se muito, na companhia da irmã mais velha, o pequeno Nyanzume foi ampliando a sua mundividência, à medida que se contactava com outras realidades e disponibilidades: em Canda, Dengoíne, Salela e Xai-Xai, na Província de Gaza. Por onde passou, distinguiu-se como um aluno inteligente e dedicado aos estudos – virtudes que mais tarde lhe permitiram ser um homem com ideias claras, baseadas no afecto pelo próximo. Por isso não surpreendeu a ninguém ter feito o 5º ano do liceu e, em pleno regime colonial português, ter trabalhado no Gabinete do Governo Geral de Moçambique, dois anos depois de cumprir o Serviço Militar Obrigatório, em Lichinga.
No Niassa, Nyanzume soube ser uma entidade congregadora, que, em vez de ver diferenças entre os seus compatriotas, focou-se nas semelhanças. Sucedeu do seguinte modo. Naquela tropa dos anos 70, católicos e anglicanos tinham espaço para a celebração da Santa Missa. No entanto, os crentes de outras congregações limitavam-se a rezar no quarto, pela falta de espaço. Inconformado com essa realidade, o então jovem Dinis convenceu a todos a passarem a rezar juntos. O plano consistiu num sistema rotativo. Em cada domingo, crentes de uma congregação orientavam a oração e os outros acompanhavam com cordialidade. Assim nasceu a Comunidade dos Irmãos Unidos. E mais. O seu poder unificador levou-lhe a conseguir do bispo católico Dom Eurico Dias Nogueira o espaço para que todos pudessem se reunir.
Aquele episódio da juventude de Dom Dinis, aliado à boa fama que tinha do ponto de vista religioso, contribuiu sobremaneira para que mais tarde o 9º bispo da diocese dos Libombos, o português Dom Daniel de Pina Cabral, arranjasse-lhe uma bolsa de estudos patrocinada pela Igreja Anglicana, para cursar Teologia no Seminário de Salisbury e Wells, na Inglaterra. Lá esteve de 1971 a 1974, ano em que, depois de regressar à terra natal, foi ordenado Diácono no dia 17 de Março e Presbítero a 01 de Dezembro.
Assim, o novo sacerdote foi aumentando a responsabilidade terrena do “fazedor das coisas do céu”. Paulatinamente. Com distinção e de forma exemplar. Por isso, dois anos depois de ser nomeado Diácono, eis que em Julho de 1976 os sonhos de infância do oitavo filho de Solomoni e Rosita Sengulane se tornaram realidade, ao ser sagrado décimo bispo da Diocese dos Libombos, primeiro negro e um dos mais novos do mundo, com trinta anos de idade. Entretanto, quando o sonho se concretizava, parece que a sua missão iniciava. Daí ter se empenhando como ninguém a levar a Igreja Anglicana às regiões mais recônditas do país. Durante o seu episcopado, foram construídas mais de oitenta igrejas, fontes de água, escolas e postos de saúde. No seu ofício, Dom Dinis Sengulane não só alargou o raio de influência da sua Diocese – fundada em 1893, cujo nome vem da cordilheira dos Libombos, onde existiam comunidades anglicanas –, como a tornou conhecida ao nível do país. Mas a sua missão foi além das fronteiras moçambicanas. Não fosse ele quem fundou e organizou a igreja anglicana nos moldes actuais em Angola, a partir dos anos 90. Até hoje, aquela comunidade religiosa reconhece-lhe todo mérito, conforme afirma mais adiante Dom André Soares, Bispo da Diocese de Angola.
No entanto, a vida de Dom Dinis Sengulane não é simplesmente preenchida de conquistas e momentos felizes. Também há lágrimas que se consumaram com perdas de ente queridos. Como o episódio da morte inesperada de Esperança Berta Sengulane, sua primeira esposa, mãe dos seus primeiros quatro filhos. Foi em Muxúngwè, Sofala, a 28 de Novembro de 1998, num acidente de viação que deixou feridos os filhos mais velho (Teófilo) e o mais novo (Bruno) – o sinistro despertou as autoridades moçambicanas para a construção do Hospital Rural de Muxúngwè na zona do acidente, já que só em Nhamatanda as vítimas puderam receber primeiros socorros.
Do mesmo jeito que o bispo anglicano não teve tempo de se despedir da esposa, dois anos antes, em 1996, também não pôde se despedir do pai, que se encontrava doente quando Dom Dinis foi chamado para ir pacificar o conflito entre os Hutus e tutsis, no Burundi. Porém, o bispo não só foi cumprir a missão da sua igreja como também, antes de partir, deixou tudo pronto para a cerimónia do velório e funeral do pai, caso morresse na sua ausência. E foi o que aconteceu. Quando regressa a Moçambique, Solomoni Sengulane já não se encontrava entre os vivos.
O jubilado e a permanente intervenção activa
Há sete anos, Dom Dinis Sengulane jubilou. Foi em 2014. Mas será que abdicou dos seus ministérios? Na verdade, não. O bispo emérito da Diocese dos Libombos encerrou, de algum modo, um ciclo da longa caminhada de serviço a Deus, perspectivando, com o mesmo ardor, o início de uma nova era de sua vida. Ao invés de descansar, o bispo Sengulane lançou-se no ousado desafio de criar uma Fundação que se dedica à saúde, à ética, à paz e à espiritualidade, dando azo ao valores que continuam a inspirar os seus seguidores.
Dom Dinis sempre foi defensor dos valores relacionados com a concórdia, quer como Presidente do Conselho Cristão de Moçambique, quer como Presidente da Comissão de Paz e Reconciliação. Nessa função, criou o movimento TAE – Transformar Armas em Enxadas, uma iniciativa que se esmerou em desarmar os moçambicanos do ponto de vista anímico e militar. Eminentemente, o movimento TAE permitiu que os moçambicanos recebessem instrumentos de produção como máquinas de costura, charrua ou instrumentos de carpintaria.
Além disso, o bispo (emérito) anglicano nunca foi um homem de medir esforços naquilo que faz. De coração aberto, lidera o movimento “Fazer Recuar a Malária”, o Conselho de Administração da Visão Mundial e o Seminário Teológico que forma clérigos para as Dioceses Anglicanas do Libombo e do Niassa. A sua vida sempre foi assim, oscilando entre o religioso e o social como se de um pêndulo se tratasse. Não surpreende, em virtude da sua vocação, ter sido Prémio da Paz 1992 e 1993, atribuído pela Conferência das Igrejas de Toda a África (CITA) e pela DIAKONIA (instituição ecuménica sueca), respectivamente, em reconhecimento à importância que teve no processo que conduziu o país ao Acordo Geral de Paz. E as distinções não ficaram por aí. Em 1996 foi condecorado pela Rainha Elizabeth II da Inglaterra com a Insígnia de Companheiro Honorário de S. Miguel e S. Jorge, em virtude do seu empenho por uma sociedade moçambicana e universo Anglicano melhores. Foi ainda distinguido pela incansável luta contra a sinistralidade nas estradas, um reconhecimento da Associação Moçambicana para as Vítimas de Acidentes de Viação e eleito personalidade do ano 2014, pela revista Vilas e Golf .
Quem com Dom Dinis priva, reconhece nele um homem pontual, didático, encorajador, engraçado e com alta capacidade de gerir as suas emoções – há poucas pessoas que devem ter-lhe visto aborrecido. Quase que ninguém conhece esse lado do bispo, outrossim, pelo menos os crentes da igreja anglicana sabem que gosta muito de cantar. Quando orientava a Santa Missa, ao logo do tempo que esteve à frente da igreja¸ a escolha das canções era muito cuidada. Dom Dinis Sengulane demonstra ainda a sua paixão pelo canto ao escrever algumas canções da nova edição do hinário Hinos e coros, editado por Atanásio Mungoni.
Mas as suas preferências não se esgotam no canto. Envolvem ainda o universo da leitura e da escrita. É autor de Vitória sem vencidos, Não podemos deixar de falar daquilo que temos visto e ouvido, Questões litúrgicas e A liturgia anglicana sobre a perspectiva anglicana, intervenções que ajudam a compreender o quanto o bispo é um homem ponderado e pacifista.
Quando é chamado a resolver problemas ou a lutar pela paz, Dom Dinis escolhe reconciliar e unir. A ideia consiste sempre em olhar para os aspectos que aproximam as partes e nunca para as diferenças.
Em 1982, Dom Dinis Sengulane esteve entre os líderes religiosos que se encontraram com o Presidente Samora, cujo propósito era desfazer a tensão existente na altura entre o Estado e as igrejas. Nesse encontro, o bispo anglicano levantou-se e disse ao primeiro presidente moçambicano que, mais do que a insegurança, a guerra estava a gerar fome aguda nos moçambicanos, com milhões de famintos. Samora Machel tomou em consideração as sugestões do bispo e tomou certas medidas.
Essa é parte da sua obra. Num passado um pouco mais recente, viajou para Santungira com o seu amigo Lourenço do Rosário para juntos conversarem com o líder da Renamo a propósito da paz, que também foi negociada durante dois anos no Centro de Conferências Joaquim Chissano, na cidade de Maputo. Dom Dinis também esteve entre os que foram a Gorongosa buscar o líder da Renamo, Afonso Dhlakama. Contra as suas expectativas, na casa do falecido líder, na Cidade da Beira, viu-se cercado pelas Forças de Segurança e ainda enfrentou o povo beirense que, diante daquela situação inesperada, chamou aos pacificadores de traidores. Mesmo nessa situação, o bispo não desistiu de afirmar, com serenidade, “olá, paz!”.
A renovação carismática por uma vida plena
Dom Dinis é uma pessoa carismática em constante renovação. Por isso, adapta-se às circunstâncias e quase sempre tem uma opinião sobre diversos tipos de assuntos. Quando Graça Machel, personalidade eminente no Mecanismo Africano de Revisão de Pares, cessou o seu mandato, o Chefe do Estado, Filipe Nyusi, mandou perguntar quem é que no país podia substitui-la. Lourenço do Rosário não teve qualquer dúvida em indicar o nome de Dom Dinis. Neste momento, o bispo representa a África Austral como personalidade eminente para o Mecanismo Africano de Revisão de Pares. Nessa missão, encarregou-se em avaliar Uganda, um país extremamente complicado, dada à personalidade do Presidente Musseveni, mas Dom Dinis foi capaz de apresentar na União Africana, em Addis Abeba, uma avaliação do Uganda muito objectiva, sem qualquer hesitação no que diz respeito a aspectos de interferência do que o separa Musseveni.
Na percepção de Lourenço do Rosário, Dom Dinis merece ser considero uma das grandes personalidades que Moçambique tem. “Uma das notas que importa apresentar sobre o seu carisma, quando ele se jubilou como bispo anglicano, foi capaz de encher o Pavilhão de Maxaquene como ninguém é capaz de encher. As pessoas sabiam que Dom Dinis ia-se jubilar. Foi um momento profundamente emocionante, porque era um amigo que estava ali a deixar o cargo de bispo anglicano. Ao mesmo tempo, foi um momento de grande festa e de grande consagração dessa personalidade que é Dom Dinis Sengulane, que está bem na política, na sociedade, na cultura e na família”, afirmou o académico.
Além de se envolver na pacificação do mundo, contribuindo com acções concretas para tornar a humanidade uma espécie melhor, continua a conciliar o que Ilda Grachane, sua sobrinha, considera casamento perfeito entre a sabedoria e a humildade. Na igreja, é responsável pela Zona Pastoral de S. João Evangelista, em Chinonanquila, Província de Maputo, com cinco congregações em crescimento, tanto no número de crentes como em infra-estruturas, construção de edifícios.
Não obstante, na fundação com o seu nome, com a ajuda de parceiros criou um programa denominado “Eu vou esperar”, com o objectivo de enconrajar os jovens a não se envolverem em casamentos prematuros ou uniões forçadas, para preferirem a formação. Para alguns jovens de ambos os sexos que não estavam na escola promoveu um curso de corte e costura e serralharia, enquanto cresciam para poderem casar-se. O projecto está baseado em Inhambane, Distrito de Massinga, e devia seguir para mais um distrito, mas a pandemia chegou e impediu tudo o resto.
Do mesmo modo, Dom Dinis continua com iniciativas ligadas à ética e espiritualidade, como o programa Vida plena, que acontece com a parceria com a Stv, todos os domingos de manhã. Até aqui, já foram exibidos mais de 300 programas, com um nível de interesse acentuado por parte dos telespectadores. Há seis anos, o programa começou com moderação da apresentadora Carmen Manhiça, que trabalhou com o bispo ao longo de cinco anos.
Com a iniciativa televisiva, Dom Dinis quis levar às famílias moçambicanos questões sociais com base na palavra, investindo assim numa transformação da sociedade com base na partilha dos ensinamentos bíblicos. Com Vida plena, o bispo emérito reflecte sobre assuntos que ajudam a compreender por que falta felicidade no mundo. Recorrendo a uma experiência que atravessa 45 anos de episcopado, Dom Dinis Sengulane ilumina pontos cegos da sociedade, usando do melhor que a tecnologia, no caso televisiva, oferece para continuar a promover a paz, a esperança, a moral, a ética e a fraternidade. Por isso, Vida plena não é e nem pretende ser um programa anglicano. Vida plena é um programa para os crentes de todas as congregações religiosas e para aqueles que ainda não a verdade eterna.
Há mais ou menos um ano, o programa evoluiu para um novo formato. Além da partilha do verbo, Dom Dinis praticamente levou a igreja aos lares moçambicanos. Numa missão pastoral, Vida plena ganhou uma estrutura mais paroquial, agora canto evangélicos usados como acção de graças e como recurso para expandir a boa nova.
Dom Dinis é presidente de PIRCOM, programa inter-religioso de combate à malária, que tem conhecido grandes avanços nas comunidades, tendo-se expandido para muitas zonas do país. Com a ajuda de parceiros, o programa abraçou outras causas, como HIV/SIDA e agora a COVID-19. O bispo faz parte dos membros do Conselho de Administração da FDC. No ramo internacional, foi eleito membro do MARP (Mecanismo Africano de Revisão de Pares), um órgão criado pela União Africana para o controlo e incentivo à boa governação pelos países membros. Cada membro tem a responsabilidade de proceder à revisão em cinco países membros da União Africana. Ao Dom Dinis coube a responsabilidade do Uganda, Zâmbia, Botswana, África do Sul e São Tomé e Príncipe. Ainda no domínio do MARP, Dom Dinis foi também indicado para pertencer a uma missão para se dedicar aos assuntos de paz e segurança nesses países africanos.
A outra metade de Dom Dinis Sengulane
O Bispo Emérito da Arquidiocese dos Libombos vive de e para o amor. A outra metade de Dom Dinis Sengulane, a mulher que o acompanha nos seus ministérios é Lina Sengulane, o farol do seu lar, a quem cabe a missão de lhe ajudar a cuidar dos filhos, dos netos e da família em geral.
Na verdade, Dom Dinis e Lina Sengulane conheceram-se há mais de 45 anos, em Maputo. Nessa época, Nyanzume acabava de regressar do Seminário de Londres (Inglaterra), onde fora tirar o curso de Teologia, patrocinado pela Igreja Anglicana e com apoio moral de Dom Daniel de Pina Cabral, o bispo da diocese dos Libombos que lhe antecedeu.
Depois do regresso, ainda padre, Nyanzume fundou, no seio da comunidade anglicana, um grupo cujos objectivos eram de evangelizar e moralizar a juventude do ponto de vista ético, de modo a combater, por exemplo, o problema da violência doméstica. Entre vários jovens, integrou o grupo evangélico Lina, que na altura ainda não era Sengulane. A relação amorosa não começou naquele período em que cada um tomou o seu percurso. Lina Valoi foi para Tete e Dom Dinis para Niassa, pouco tempo depois.
Passados quase quarenta anos, os antigos jovens da comunidade anglicana reencontram-se em Maputo e deixam brotar nos seus corações o amor que lhes mantem unidos na graça de Deus. Por isso, trocaram as alianças a 8 de Dezembro de 2014, numa cerimónia realizada na Igreja Anglicana São Cipriano, na capital do país. Desde então, Lina Sengulane tornou-se ossos dos ossos de Dom Dinis, a outra metade de um homem que nasceu para procurar o bem, mesmo nas circunstâncias em que parece impossível, como em conflitos armados ou em contextos de guerra.
Dom Dinis é um lutador destemido, segundo Lourenço do Rosário. Por isso, encara as dificuldades de frente. Uma vez o bispo esteve de baixa, devido a gota, que lhe afectou o dedo polegar. Um dia depois do internamento, a esposa pergunta-lhe como estava o dedo. Recusando assumir a dor, o bispo respondeu “os outros dedos estão bem melhores”. É desta forma optimista que Dom Dinis Salomão Sengulane vive, sempre tentando mostrar como a vida pode ser diferente se as pessoas pensarem diferente. Daí sempre estar presente nos momentos decisivos da vida social e política de Moçambique. Portanto, é esta voz de autoridade moral, imparcial, que coloca os interesses de qualquer moçambicano em primeiro lugar, independentemente das pequenas diferenças que possam existir, que hoje, 5 de Março de 2021, celebra 75 anos de uma vida intensa ao serviço da igreja e da nação moçambicana.