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Mia Couto pede que vítimas do terrorismo não sejam tratadas como “números”

Mia Couto lamenta o facto de as vítimas do terrorismo em Cabo Delgado serem tratadas apenas como “números”. O escritor que falava ontem em Maputo, no lançamento do seu recente livro, “Mapeador de Ausências”, propõe a imortalização dos martirizados pelo fenómeno.

Mia Couto está atento com o que ocorre em Cabo Delgado, sobretudo com os relatos bárbaros de cada dia. No dia reservado ao lançamento de “Mapeador de Ausências”, sua recente obra, o escritor expressou a preocupação.

“As pessoas que estão a ser assassinadas em Cabo Delgado não podem ser, simplesmente, objecto de notícia, em que elas são números. Ou que sejam dados estatísticos. Essas pessoas têm que ter nome, tem que ter história”, defendeu, para depois exemplificar com um facto recentemente ocorrido na Europa.

“Quando foi morto um professor na França; quando foi degolado um professor, todos jornais, todas rádios tinham a notícia com a vida dessa pessoa”, disse o escritor, expressando ainda que acha estranho que os moçambicanos ainda não tenham procurado no drama que está a ocorrer em Cabo Delgado, “fonte de mobilização que que faça perceber que aquelas pessoas que estão a ser mortas, ou os afugentadas, têm direito a existência presente e viva” nas nossas televisões e literatura.

Tais factos que agoniam o escritor figuram entre as inspirações que o levaram à redacção de “Mapeador de Ausências”. “Foi isso que tentei fazer nesse livro”, justifica, apontando ainda outro problema: “o esquecimento da história”.

Para Couto, a memória efémera de um povo perante acontecimentos ricos na história é lastimável. “Ninguém sabe, por exemplo, que no exército português houve 60 mil moçambicanos. Qual é a história dessas pessoas?”, ilustra, trazendo ainda à tona o massacre de Inhaminga, em Inhambane, que no seu entender, “quase ficou no esquecimento”.

O autor entende ser constrangedor que haja essa capacidade de “embalsamar aqueles que nos ligaram à esta pátria, os que chamamos de heróis moçambicanos, mas que depois não sabemos converter as suas vidas em histórias”.

Mia aponta, como outro exemplo, o facto de todos (os heróis) povoarem as nossas cidades com nomes, mas não com as vidas e exemplos. “Não existem. É uma maneira de os matar pela segunda vez”, deplora.

 

Mia, o curioso

Para Filipe Nyusi, que esteve no lançamento da obra de Mia Couto, o escritor se configura num “autêntico curioso”.

“Desta vez pareceu-me que Mia é curioso. Cada um que interprete a palavra “curioso” à sua maneira”, afirmou o Presidente da República, em jeito hilariante.

“Ele está a ver que o tempo está a correr muito mais rápido daquilo que ele gostaria. Por isso, ele está toda hora a procurar reencontrar-se com o tempo”, avançou Nyusi, que distanciou-se de um discurso formal, tendo justificado que esteve no evento “como amigo” e não como Presidente.

Nyusi que teve uma apresentação mais poética declarou ter algum rabisco da obra de Mia. “Me parece que procura ser mineiro e não garimpeiro. Que escava o tempo. O tempo que é real, mas para ele parece que é fictício”, deixou ficar, Filipe Nyusi.

Entretanto, Nyusi não apenas “navegou no ritmo da poesia ao declamar estrofes com rimas que entre si cruzavam.

Realçou, também, sobre o aspecto que preocupa o escritor com a obra lancada: o facto de a história ser esquecida.

“A história é inconveniente por algumas sensibilidades. Mas o esforço de apagar a história, de facto, é o mesmo que querer impedir o vento com as mãos”, expôs.

“As nações falam de proteção da natureza; os biólogos e ambientalistas como o Mia lutam para preserva-la, mas nós nos esquecemos que um dos maiores desastres é a erosão da memória”, lembrou o Presidente, afiançando que “a partir do momento que se perde a memória, torna-se insignificante. Por isso que não podemos perder a memória no tempo”.

Filipe Nyusi explicou o eufemismo ao expressar que “as nações ficam em erosão, por tornar histórias insignificantes. Tem a sua dignidade, mas começam a ter a pior erosão por causa da história, por causa do tempo. O que é a razão da pobreza, provocada por não acreditar no passado”.

A terminar, Filipe Nyusi manifestou ter motivos para concordar com escritor, quando defende a tese que para perdoar é preciso não esquecer. “E só pode não esquecer quem tem história, que tem referências. Estamos aqui porque queremos apenas não esquecer”, concluiu.

O “Mapeador de Ausências”, obra de Mia Couto que cruza o romance em forma de proza, já tinha sido lançada na cidade da Beira e, desta, foi a vez da cidade de Maputo. No livro, o autor busca por memórias do passado ao presente, em diversos marcos.

“As pessoas que estão a ser assassinadas em Cabo Delgado não podem ser, simplesmente, objecto de notícia, em que elas são números”

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