O País – A verdade como notícia

Nikolai Gogól e Fany Mpfumo

1.

Leio o conto “A carruagem”, de Nikolai Gógol. A história passa-se numa cidadezinha B…, que vive mergulhada num tédio profundo, mas passa a ser um lugar muito animado quando  nela se aquartela um regimento de cavalaria. Num grande almoço, que reunia homens apenas, dos mais influentes da cidadezinha, onde se encontravam desde oficiais a proprietários de terras, eis que o mais conhecido aristocrata, de seu nome Pifagór Pifagórich Tchertokútski, quando o anfitrião exibia o seu novo cavalo,  se gabará  da sua nova carruagem.

            Nikolai Gógol:

            “- Qual? Aquela com a qual chegou?

– Ah, não! Esta é própria apenas para as minhas viagenzinhas, mas a outra… é um espectáculo, leve como uma pena e, quando a gente se senta nela, então…! Excelência, se me permite, é como se uma aia o embalasse em um berço!

– Então é bem confortável?

– Muito, muito confortável; as almofadas, as molas…tudo parece uma pintura.

– Que beleza!

– E as acomodações, então? Eu nunca vi coisa igual, Excelência. Quando eu ainda estava em serviço, cabiam no seu maleiro dez garrafas de rum e umas vinte libras de tabaco, sem contar, Excelência, que ainda levava comigo uns seis uniformes, roupa-branca, dois cachimbos dos mais compridos, e nos bolsos ainda dava para colocar um boi inteiro.

– Que beleza!

– Paguei por ela quatro mil rublos, Excelência.

– A julgar pelo preço, deve ser boa mesmo. E foi o senhor mesmo que a comprou?

– Não, Excelência, consegui-a, assim, de ocasião. Meu amigo comprou-a, pessoa muito rara, amigo meu de infância, com o qual o senhor se daria muito bem. O que era de um era do outro, tanto fazia. Ganhei-a dele no jogo de cartas. Se Vossa Excelência me der a honra de vir almoçar comigo amanhã, então poderá vê-la também.

– Não sei bem o que lhe dizer. Eu assim sozinho, não sei bem… A não ser que o senhor me permita ir acompanhado por dois oficiais.

– Claro, por favor, os senhores oficiais também. Senhores, será para mim uma grande honra ter prazer de recebê-los em minha casa!

            O coronel, o major e os demais oficiais agradeceram com cortesia e fizeram uma reverência.

– Eu mesmo, Excelência, também penso que, quando compramos alguma coisa, tem de ser boa, caso contrário, é melhor não comprar nada. Amanhã, em minha casa, por exemplo, quando me derem a honra de me visitarem, mostrar-lhes-ei algumas aquisições de uso doméstico.

            O general observou-o e deixou a fumaça escapar da boca.

            Tchertokútski ficou muito satisfeito de ter convidado os senhores oficiais, e mentalmente começou desde logo a encomendar os patês e molhos, olhando alegremente para os senhores oficiais, que, de sua parte, também pareciam agora redobrar a simpatia para com ele, o que podia ser notado pelos seus olhos e pelos pequenos movimentos do corpo na forma de ligeiras saudações.

            Tchertokútski passou a conduzir-se de modo mais desenvolto, a voz tornou-se então mais relaxada, com uma entonação plena de contentamento.

            – Vossa Excelência conhecerá também a dona da casa.

            – Com muito prazer – disse o general, acariciando o bigode.”

 

Tchertokútski quis sair cedo e voltar para casa para preparar o almoço do dia seguinte, mas hesitou e foi ficando. Primeiro foi um copo de ponche, bebido num gole, depois foi outro, e ainda outro e outro e outro. Entre o copo e a diversão no jogo do whist ficou até de madrugada, tendo chegado a casa completamente embriagado.

 

Nikolai Gógol:

“Em casa todos dormiam profundamente. Custou muito ao cocheiro encontrar o camareiro, que conduziu o seu senhor pela sala de estar, entregou-o à criada de quarto, com a qual Tchertokútski alcançou cambaleante o quarto de dormir e se aninhou ao lado da jovem e bela esposa, que estava deitada de forma encantadora em seu traje de dormir, branco como a neve. Ela despertou com o movimento produzido pela queda do marido na cama. Estirou-se, ergueu as pálpebras e, depois de semicerrar rapidamente os olhos três vezes seguidas, abriu-os com um sorriso algo amuado, mas ao certificar-se de que desta vez ele não lhe dispensaria a menor carícia, virou-se para o outro lado com certo desgosto e, apoiando a bochecha fresca na mão, pegou no sono.

            A manhã já ia bem adiantada, o que para o campo não é nada cedo, quando a jovem acordou ao lado do marido, que roncava. Ao lembrar-se de que ele voltara para casa às quatros horas da manhã, teve pena de despertá-lo. Calçou então as pantufas que o marido mandara vir de Petersburgo e, vestida em uma camisola branca cujas pregas ondulavam ao longo de seu corpo como cascata, entrou em seu toucador, lavou-se com água tão fresca quanto a sua tez e aproximou-se do espelho. Depois de se olhar uma duas vezes, concluiu que não estava nada mal naquela manhã.”

 

Sentada mais tarde, na alameda sombreada, de onde se divisava a longa estrada, esquecida da hora e do facto de o marido estar a dormir, para lá das 12 horas, avistou, perante uma nuvem de poeira, várias carruagens e adivinhou que se trata de visitas que se dirigiam à sua casa.

 

Nikolai Gógol:

“- Será que estão vindo para cá? – pensou a dona de casa. – Ah, meu Deus! É mesmo, eles viraram na ponte! – Ela soltou um grito, ergueu os braços e correu pelo canteiro de flores directo para o quarto de seu marido. Ele dormia como um morto.

– Levante. Levante! Levante rápido! – gritava, pegando-o pelo braço.

– Hein? – murmurou Tchertokútski e espreguiçou sem abrir os olhos.

– Levante, meu pomponzinho! Não está ouvindo? Temos visitas!

– Visitas, como visitas? E dizendo isto, emitiu um pequeno grunhido como um bezerro que procura com o focinho as tetinhas da mãe.

– Mm…- resmungou. – Traga aqui esse pescocinho, minha mumu, que vou te dar um beijinho.

– Levanta, meu amorzinho, pelo amor de Deus, rápido! Vem aí o general e seus oficiais! Ah, santo Deus, você tem bardanas nos bigodes.

– O general? Então ele já vem vindo? Por que diabos ninguém me acordou? E o almoço, então já está tudo pronto para o almoço?

– Que almoço?

– Será possível que eu não encomendei?”

 

Tchertokútski decidiu esconder-se, cogitou fazê-lo na cocheira, mas quando estava lá, percebeu que poderia ser encontrado. Então, lembrou-se da carruagem e abaixou o estribo e meteu-se lá dentro e fechou-se, cobrindo-se de uma manta e de uma cobertura de couro.

 

Nikolai Gógol:

“- O senhor não está em casa – disse um lacaio, aparecendo no terraço da entrada.

– Mas como não está? Mas deve estar para o almoço, não?

– De modo algum. Estará fora o dia todo. Talvez amanhã por volta deste mesmo horário já esteja por aqui.

– Mas veja só isso! – disse o general. – Como é possível?

– Aposto que é uma brincadeira – exclamou o coronel, rindo.

– Ah, não, isto não se faz! Prosseguiu o general nada satisfeito. Arre! Que diabo! Se não nos podia receber, então por que convidou?”

 

O coronel resignado propõe que se vão embora, mas o general antes de abandonar a casa procura pelo cavalariço e pergunta pela carruagem que Tchertokútski adquirira recentemente. Vão todos até à estrebaria.

 

Nikolai Gógol:

“O general e os oficiais deram uma volta ao redor da carruagem e examinaram cuidadosamente as rodas e as molas.

– Bem, não vejo nada de especial – disse o general. – É uma carruagem das mais comuns.

– Sem graça nenhuma – confirmou o coronel. – Absolutamente nada de especial.

– Me parece, Excelência, que não vale nem quatro mil rublos – acrescentou um dos jovens oficiais.

– Quê?

– Eu disse, Excelência, que ela não vale quatro mil rublos.

– Mas que quatro mil rublos! Não vale nem dois mil. Ela não tem nada de nada. A não ser que dentro tenha algo de especial…Por gentileza, amigo, levante a cobertura de couro…

            E diante dos oficiais surgiu Tchertokútski, envolto no roupão, encolhido de uma forma bem esquisita.

– Ah, então você está aqui!… – exclamou o general estupefacto.

Dito isto, no mesmo instante o general bateu as portinholas com violência, atirou de novo a cobertura sobre Tchertokútski e foi embora com os senhores oficiais.”

 

Este belíssimo texto, resumido aqui de forma canhestra, oriundo de uma tradução btrasielira, aqui adaptada, data de 1836. Nikolai Gógol viveu entre 1809 e 1852. Tanto ele como Fiódor Dostoiévski (1821-1881), que escreveu Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov ou O Jogador; Ivan Turguêniev (1818-1883), que foi o primeiro autor russo a adquirir fama fora da Rússia, que escreveu Pais e Filhos, ainda hoje considerada uma obra-prima;  Anton Tchekhov (1860-1904), autor de peças como A Gaivota ou Tio Vânia, são importantes na minha formação literária, nos anos 80, quando eu fazia teatro radiofónico. Tchekhov abandonaria o teatro e ficaria na história da literatura como um grande contista, tendo influenciado nomes que me são caros, como John Cheever, Ernest Hemingway, Raymond Carver, entre outros, só para citar os mestres americanos; Lev Tolstói (1828-1910),  o da Guerra e Paz, mas também da Ana Karenina. Estes são os grandes nomes da literatura russa anterior à revolução bolchevique de Outubro de 1917, que fez por estes dias – 7 de Novembro –  100 anos. Viveram a revolução ou os anos da revolução Maximo Górki (1868-1936), de quem li muito jovem o romance A Mãe; Boris Pasternak (1890-1960), autor de Dr. Jivago, famoso por ter recusado o Prémio Nobel dois anos antes da sua morte;  Isaac Bábel (1894-1940), que lembro de ter em casa dos meus pais e de ler Os Contos de Odessa, que muito me impressionaram; ou ainda Vladimir Nabókov (1899-1977), muito conhecido pelo romance Lolita, autor russo e simultaneamente anglo-saxónico. Alexander Soljenítsin (1918-2008) nasceu um ano depois da Revolução. O autor de Um Dia na vida de Ivan Denisovich e Arquipélago de Gulag foi laureado pelo Nobel em 1970.

 

2.

Fany Mpfumo morreu há 30 anos. Procuro, na noite de 3 de Novembro, o disco Nyoxanini. Sei que o tenho algures. “Famba ha hombe” traz-me de volta aquela voz. Sobressalto de emoção. Cresci a ouvir Fany Mpfumo. Eu ouvia vezes sem conta “Hodi”, “A vasati va lomu”, “Georgina”, “Unga hlupheki” ou “Lesvi wene unga xonga”. Retorno, nesta noite de sexta-feira, à minha infância. Vi-o duas vezes – no vetusto Scala e no pavilhão do Estrela Vermelha. Creio que foi o último espectáculo que ele deu. Já estava carcomido pela doença e pelo infortúnio. Lembro o seu virtuosismo e a sua voz atravessando a sala. Vibrante. Ele era um espectáculo. O espectáculo. Representa uma época que, de certo modo, terminou. A época de grandes compositores e cantores populares que hoje são autênticas lendas. Talvez Xidiminguana e Dilon Djindji tenham sido aqueles que mais prolongaram essa aura. Fany Mpflumo também representa a dureza da nossa tragédia colectiva: a condição social do artista. Legou-nos uma obra exemplar. Porém, morreu pobre e desgraçado.

 

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