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Negros importam? A cor como factor determinante na sociedade

Numa tarde ensolarada, o vento fresco dançava suavemente, entrando pela janela da minha sala como um sussurro sedutor. Eu estava reclinada no sofá, imersa num filme, mas o calor era tão intenso que o meu corpo parecia afundar na superfície, pesado como se não tivesse descansado a noite inteira. Os meus olhos, por sua vez, tornaram-se pesados como se fossem depósitos do mundo, lutando contra o chamado do sono que crescia a cada instante. O vento, que antes era apenas uma brisa leve, começava a assumir um propósito contrário. Entrava no meu espaço, carregando consigo uma paz inquietante, como se me convidasse a mergulhar num poço de tranquilidade. A cada carícia da brisa no meu rosto, a resistência tornava-se mais difícil; deixava-me levar, presa numa teia de sonolência crescente.

Finalmente, a inevitável rendição chegou. Fechei os olhos, e a linha entre a vigília e o sonho desfazia-se. Não sabia se realmente adormecera ou se tinha sido transportada para um mundo além da compreensão. Uma sensação de confusão envolvia-me, enquanto imagens começavam a fluir diante de mim. Acima de tudo, o que eu realmente sabia era que havia algo ali, nas profundezas do que contemplava, algo que pulsava com uma energia misteriosa e intrigante. O que seria aquilo? Um sonho premonitório ou um vislumbre de outra realidade? Sombras dançavam à periferia da minha mente, e a cada instante, a curiosidade tornava-se ainda mais intensa. O enigma estava apenas a começar a revelar-se.

Foi então que me apareceu um homem, envolto em lágrimas, o seu semblante transparecendo uma angústia profunda. A dor interna que o consumia era tão intensa, tão opressiva, que senti as lágrimas surgirem nos meus próprios olhos, sem sequer compreender o porquê. A expressão dele falava por si, revelando que o peso da tristeza e do desespero que carregava era colossal, como se ele fosse o portador de toda a dor do mundo ao qual pertencia. Sem pensar, abracei-o, unindo as nossas almas naquele instante de desespero compartilhado. Juntos, chorámos numa sinfonia de lamentos que ecoava na vastidão daquela realidade. O seu sofrimento ressoava em mim e com cada lágrima que caía, uma parte do seu fardo parecia transferir-se para mim.

À medida que a sua tristeza se acalmava e permitia que me aproximasse ainda mais, aproveitei a oportunidade e com a voz ainda trémula perguntei-lhe o que havia acontecido. Que tormento o trazia até ali a partilhar o seu fardo comigo? A expectativa enchia o ar e eu sabia que a resposta iria desvendar segredos ocultos e histórias de dor que precisavam ser contadas.

Nesse instante, ele perguntou-me: “De que vale o direito à liberdade de expressão num mundo onde não podemos efetivamente exercê-la?” O seu olhar penetrante refletia um desespero profundo e ele não se ficou por ali. Prosseguiu: “Por que consagramos esse direito no documento mais importante do nosso mundo se no final somos obrigados a falar aquilo que se chama ‘o politicamente correto’?” Fiquei sem palavras. As suas questões reverberavam em mim como ecos dolorosos, desafiando as certezas que eu trazia comigo.

No mundo de onde eu vinha, a liberdade de expressão era um direito inalienável e um pilar da nossa sociedade. Ali podíamos exercê-la sem amarras; éramos fiscais das políticas públicas e responsáveis por garantir que os interesses da coletividade fossem sempre respeitados. O confronto das nossas realidades era avassalador. Ele falava de um mundo onde as vozes eram silenciadas e onde o medo da retaliação transformava as palavras em correntes.

Perguntas sem resposta enchessem o ar entre nós: O que acontece quando o direito à liberdade de expressão e outros direitos fundamentais se tornam meros ideais? Conceitos bonitos em papel mas distantes da vivência quotidiana? O silêncio que se seguiu foi pesado e repleto de um entendimento mútuo. Cada um de nós trazia fardos invisíveis; máculas de um mundo que muitas vezes nega a verdadeira essência do ser humano.

Um diálogo formava-se não apenas sobre palavras não ditas mas sobre o próprio significado de sermos humanos. Cheia de curiosidade e questionamentos, aprofundei a conversa ansiosa por compreender melhor aquele mundo oposto ao meu. Pedi-lhe para me falar mais sobre a sua realidade e ele começou a narrar um relato atingindo o âmago do seu ser – uma história sobre o próprio filho.

Contou-me que em meio a um conflito feroz onde as vozes da maioria lutavam por interesses diversos, o seu filho abraçou uma causa em defesa dos que não tinham voz. Dotado de conhecimentos científicos que lhe conferiam uma posição privilegiada para desafiar os opressores, decidiu usar esse poder para lutar por justiça. Era um jovem corajoso; alguém que ousou confrontar o sistema. Mas essa bravura não levou à recompensa; muito pelo contrário.

O choque profundo veio quando ele revelou: foi assassinado e tratado como um indigente; como se nunca tivesse sido filho ou amigo de alguém. Fiquei horrorizada. No mundo de onde eu vinha aqueles que demonstravam tal coragem eram celebrados como herois; recebiam medalhas e reconhecimento.

A imagem desse jovem morto sem alarde e esquecido era dolorosa demais para suportar. As perguntas começaram a fluir em minha mente como um rio tumultuoso: Que mundo era aquele? Como podiam existir realidades tão distintas onde o valor da vida e a coragem eram reconhecidos de formas tão opostas? O seu relato deixou-me assombrada; empatia pelo seu sofrimento brotava em mim criando uma conexão intensa.

 

Desabei em lágrimas incapaz de suportar aquele relato devastador quando ele disse: “Não chores ainda porque eu tenho mais a relatar…” Explicou que o filho se envolveu naquela luta com o objetivo de tornar o seu mundo um lugar melhor para viver mas também tinha a história da sua filha por contar… Um frio na espinha percorreu-me ao ouvir aquelas palavras.

Começou então a narrar outra história aprofundando-se num tema perplexo: a injustiça sofrida pela sua filha. O sofrimento dela era um dano permanente, pois naquele mundo horrível o dinheiro era mais valorizado do que a saúde de alguém da sua cor.

Confusa, interpelei-o: “Cor? Como assim?” Ele respondeu afirmativamente; sim, em seu mundo a cor da pele determinava como se era tratado. No ambiente corporativo essa característica tornava-se decisiva para numerosas questões; os negros eram vistos como meros instrumentos; mão-de-obra descartável.

Aquilo me indignou mas pedi-lhe para parar pois eu já não suportava ouvir mais sobre aquilo. Contudo ele implorou para continuar apenas para concluir sobre sua filha: “A minha filha“, disse ele com os olhos cheios de tristeza “que eu tive completa hoje está incompleta porque a sua cor não lhe foi favorável…”

As suas palavras pesavam no ar; um lamento reverberando em mim como grito por justiça. O sofrimento descrito era mais do que relato pessoal; era testemunho de uma realidade cruel e inaceitável.

A cada frase uma imagem vívida daquele mundo desafiador surgia… Eu sentia com ele angústia de quem luta contra o sistema opressor. O choque foi tão grande que joguei-me ao chão e depois de alguns minutos, apercebi-me que estava no chão em frente ao sofá onde estava reclinada, incapaz de levantar-me sem sequer entender a qual mundo pertenço.

Eu não sei qual mundo pertenço – se ao de dor e injustiça descrito por aquele homem ou ao de liberdade e igualdade que eu própria descrevi. Mas agora entendo: essas vozes precisam ser ouvidas; a luta pela verdade e pela justiça não deve ser silenciosa.

Cada lágrima derramada, cada história contada ecoa necessidade urgente mudarmos aquilo que nos divide. O que farei agora, caro leitor? Tornar-me emissora desses relatos; porta-voz da compaixão e da justiça para juntos transformarmos essa realidade garantindo que nenhuma vida, nenhuma luta seja esquecida? 

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