Reuniram os meninos de rua numa pilha de fila e noutro canto da sala, onde crescia uma árvore de Natal com luzes, tinham sido amontoados miúdos vindo dum infantário próximo. Os meninos de rua sujos, com suas vestes brilhando de sujidade e os miúdos do infantário cheirando ranho seco esperavam, na sala, o Pai Natal Solidário.
Os rapazes do infantário, uns colados às cadeiras de rodas e outros de cabeças arredondas de doenças estranhas, eram cuidados e concentrados em molho por um grupo de irmãs brancas, baixas, com saias gotejando até as dobradiças dos joelhos e com cruzes em terços de ferro cruzando-se entre os seios pestanejando tetas nas suas batinas.
Os meninos de rua faziam da sala uma rua. Arrancavam-se balões inchados de ar e molhados de saliva; faziam de golpes e pontapés meios de divertimento e caçavam-se piolhos em suas cabeças cheirando a erva daninha das suas almofadas de pedra. A filosofia da rua andava com eles em todos sítios.
Os meninos irmanados pelo infantário e os familiarizados pela rua fizeram fila na sala grande. Palhaços de cabelos coloridos, com vestes abotoadas de cores diversas, tentavam alegrar aquelas criaturas tristes. Uma música infantil ressoava dos altifalantes sobrepostos. Uma figura vestida de Pai Natal distribuía rebuçados aos meninos. Era o Natal Solidário. Tudo era feito pela solidariedade.
Cada menino foi servido uma sopa onde legumes flutuavam como sobreviventes dum acidente culinário. Os meninos de rua tomavam-na sem usar as colheres e enfiavam-se na fila vezes infinitas para repetir a dose líquida. Sorviam a sopa como pequenos monstros. As mãos das irmãs carregadas de colheres de sopa pareciam máquinas de guindastes nas bocas dos rapazes do infantário. Todos tomaram sopa, fizeram os estômagos nadaram na sopa quando saltitaram num pula-pula.
Moças lindas, vestidas de jeans, com camisetas estampadas a frase: “Natal Solidário para Todos”, circulavam e recolhiam os pratos de sopa atirados ao chão. As moças por questões de higiene trabalhavam com a nudez das mãos vestida de luvas. E os tinham máscaras. Eram voluntárias apesar de voluntariadas pelo subsídio mais alto que alguns salários.
O “Natal Solidário” terminou. Os presentes do Pai Natal não se fizeram mais presentes. Os meninos com a sopa gaguejando nos estômagos voltaram ao calor da rua e os outros recolheram a casa das irmãs. O coordenador da equipa solidária, carregando ao colo uma criança abananada no infantário, falou aos microfones de rádios e televisões que eram excitados por mãos de jornalistas. Falou e falou. Agradeceu aos patrocinadores.
A equipa da solidariedade foi a uma sala luxuosa dum restaurante. Balançou copos bem gordos de vinhos ao ar e fez balanço. Conferiu os cheques, contou os parceiros sérios e seleccionou fotos bem focadas de crianças sorrindo com a sopa na boca para publicá-las nos jornais. Todos foram às suas casas carregados de salários oferecidos por Pai Natal, embrulharam números enormes em suas carteiras e esqueceram o apetite que abriram aos meninos.