O País – A verdade como notícia

Não foi só desta, Elsa Mangue!

Por: Reinaldo Luís

 

 

Este mês, de maio, decidi lembrar Elsa Mangue. Não pela morte, e nem pela vida – pálida e cruel a que foi sujeita durante os seus 56 anos na terra. Faço-o porque, acredito, ser uma manifesta entrega à solidão. Relembro e tolero, aqui, a solidão, o ancorar da voz suave de uma menina de Zavala, filha de régulo, quejanda das agruras. E são, precisamente, sete anos que, entre os esplendores da luz perpétua, encontra o alento, o descanso merecido.

Não digo nenhuma novidade ao afirmar que Elsa Mangue merecia mais do que demos e que o Estado o devesse muito mais. Mas aí está: qualquer homenagem que se preste agora é fruto dessa solidão que nos acostumou e nos deixou. E o Estado, esse, qualquer tributo que possa prestar às grandes figuras artísticas da história deste país é/será sempre feito de ausências. É o que nos acostumam enquanto vivos e nos oferecem na morte, na dose máxima da indiferença.

Elsa Mangue, como outros bons artistas perecidos nesta pérola, viveram imerso no meio dessas antinomias, onde aproveitamentos e apontares do dedo do meio se misturam na algazarra de assobios e saudações com champanhes. A ideia da valorização, do cuidar, do proteger e do querer o bem convive com a exploração intensiva, quais lobos em peles de cordeiros. É o que temos. Aceitamos…e a roda da vida move-se.

E naquele setembro de 2014, quando deu o seu último suspiro, era o “azar” e a vida no extremo intersecto. Depois de 56 anos de lágrimas, vontades, pavores, renúncias e várias mortes da alma. Era o fim, colorido de esperança e carregado de ar novo para encher os pulmões atónicos. E a voz? Continuou acutilante, qual marca da sua vida, revivendo a solidão, a indiferença, a tristeza, a dor, a vida, a morte. E como sempre, foi do mesmo jeito: voltou à Zavala, sua terra natal, a bordo de uma carinha “my love”, entre a chaparia, um caixão e capulanas como cobertores, tal como veio à Maputo na ventosa quarta-feira do dia 18 de Agosto de 1974, aos 15 anos.

E foi assim: nasceu a 14 de setembro de 1958, em Inhambane, no distrito de Zavala. Foi baptizada Elisa Filipe Mudumane, filha de Filipe Mudumane Mangue, grande régulo, e de Doroteia Carlos Mutlombene, a 36.º esposa do regulado, com cerca de 162 irmãos. Sua mãe foi entregue ao Mudumane, como mulher, aos 12 anos de idade num tratado de cooperação. De imediato fez parte do regulado, onde teve Elsa, ainda no auge da adolescência.

Foi negado o direito à educação pela madrasta, Dona Marta, supostamente para não ser “puta”. Por isso, os seus dias no regulado, quando não estava a cuidar dos irmãos pequenos, eram feitos na machamba e no rio, das 5 horas da manhã às 16 horas. Tinha apenas sete anos.

Aos 15, Elsa foge da casa do pai, em Zavala, para Maputo. Era uma quarta-feira, à noite, quando todos estavam a dormir. Caminhou em direcção à Estrada Nacional Número 1, durante um dia e uma noite sem parar. É aqui, na capital do país, onde a narrativa da sua mísera condição humana retoma. Buscando memórias do abandono, na solidão, cantou “Lágrimas”. Aproveitada, por homens energúmenos, cantou “Fim de estrada” e “Kuni Kanganhissa”, a maldizer Joshua, seu eterno amor. Humilhada, cantou “Tindjombo”. E também quis largar tudo, voltar para sua casa, encontrar sua mãe. E fê-lo a partir das suas entranhas. Transitou a dor, o sofrimento, o passado, a vida de música em música até o último suspiro.

 

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos