A música moçambicana não se encontra num estágio muito agradável, porque, de acordo com Stélio Mondlane, existe uma desvalorização generalizada dos valores culturais nacionais: “estamos a tornarmo-nos muito ocidentais e a deixar de tocar, por exemplo, a nossa música tradicional”. Logo, em geral, as coisas não estão bem. Além disso, na percepção do baterista, produtor e compositor, é necessário que a maioria dos músicos moçambicanos melhor a sua performance, aprofunde o conhecimento sobre música e pare de competir uns com os outros. Neste entrevista, Mondlane fala, igualmente, dos seus projectos musicais: The Stélio Mondlane’s Project e New chapter, a ser lançado ainda este ano.
Considera a música um meio viável para a transmissão de vários saberes. Que impacto pretende que a sua música tenha na vida das pessoas?
O meu grande projecto é dar a conhecer as raízes africanas através da música. Por isso, nos vários projectos que tenho, estou firme e constantemente valorizo as nossas culturas, mantendo os nossos ritmos sempre vivos. Sempre que faço uma composição, seja de jazz, pop ou afro/pop, deixo lá uma identidade moçambicana, que é para dar a entender que sou africano e, acima de tudo, moçambicano.
Como é isto de enaltecer a(s) identidade(s) de um território tão vasto como Moçambique numa música de três, quatro ou cinco minutos?
Quando entramos para o meio da música, devemos começar a distinguir o que nos faz bem e o nosso horizonte. Assim torna-se mais fácil destacarmos a nossa identidade. Temos de saber definir como queremos ser ouvidos ou interpretados.
Esta identidade de que se refere é mais pessoal ou mais colectivo?
Eu acho que é mais individual, porque é uma coisa muito minha. De tal modo que, quem me conhece, ao ouvir a música sabe que é minha ou que tem um dedo meu. Agora, claramente, nunca faço música sozinho, a dimensão colectiva também é algo a ter em consideração, porque trabalho com outros músicos.
Para si, é importante considerar as emoções do destinatário da sua música?
É sempre bom ter uma opinião dos outros. Há uma coisa que nós chamamos de listen sessions, um momento que, depois de termos a música produzida, levámo-la a ser escutada por algumas pessoas que confiamos. Aí colhemos as sensibilidades e daí tomamos a nossa própria decisão. A decisão final é sempre nossa.
Em 2012 cria The Stélio Mondlane’s Project. Quais foram os seus motivos com esta iniciativa?
Apeteceu-me abordar a música jazz de forma diferente. Antes tivemos Jimmy Dludlu, Moreira Chonguiça, Ivan Mazuze e Orlando Venhereque… Eu decide, com o projecto, adicionar a minha abordagem do jazz, com continuidade, variações e tocando com vários músicos. Este é um projecto como se fosse um sindicato. Quero mostrar a minha forma de ver a música em Moçambique.
E como vê a música no país?
Actualmente, para ser sincero, a nossa música está no estágio não muito agradável, porque estamos a deixar morrer os nossos valores. Não tenho nada contra a tendência da música actual, mas é preciso não deixar morrer aquilo que é a essência da música moçambicana. Estamos a tornarmo-nos muito ocidentais e a deixar de tocar, por exemplo, a nossa música tradicional. Agora, estamos muito naquela de misturar marrabenta com qualquer outro estilo e, no final do dia, o ritmo não tem nada de Moçambique. Ou seja, fica sem ser nosso ritmo e nem se torna ritmo dos outros. Na verdade, estamos perdidos.
Em termos de qualidade e quantidade?
Nós ainda temos de trabalhar muito. É preciso melhorarmos a nossa orquestração, a nossa performance e aprofundarmos o nosso conhecimento. Acho que ainda não estamos a conseguir sair da caixa. São poucos os que já encontraram a visão.
Há algum start que demos dar para as coisas acelerarem?
Acho que sim. Primeiro, temos de parar de competir uns com os outros. Segundo, temos de parar de fazer música para os músicos. Temos de fazer música para o povo, tocar e começarmos a inspirarmo-nos nos melhores músicos mundiais, até para vermos onde é que estamos a falhar.
Numa entrevista que concedeu ao jornal O País, Childo Tomás, com quem já tocou, disse que sentiu mais na Europa a necessidade de tocar as suas raízes. Acha que a viagem é fundamental para este tipo de posicionamento?
Definitivamente, a viagem é importante. Uma das várias viagens que fiz com artistas renomados, e que me marcou, foi a Bélgica, ano passado, num projecto maioritariamente constituído por moçambicanos. Mas também tinha uma sul-africana e um belga. Aí confirmei o quão importante é mantermos as nossas raízes firmes e sermos constantes naquilo que caracteriza a nossa identidade. No projecto, a sul-africana promoveu actuações chopes. Ela estava preocupada com os ritmos africanos e isso é uma coisa muito bonita. Isso mostrou-nos que a opção de valorizarmos as nossas culturas é a mais certa.
Um dos seus grandes objectivos é internacionalizar a sua música, estando esta enraizada nos ritmos moçambicanos. Como é que estamos nesse domínio?
Os poucos que se preocupam com isso, fazem bem. É de felicitar ao Jimmy Dludlu, Stewart Sukuma e Deltino Guerreiro. Esses são os músicos que entram na área do jazz preocupados com a internacionalização dos ritmos tradicionais (além deles, claro, Ghorwane e Kapa Dech também). Precisamos de mais, que é para valorizarmos a nossa cultura.
É baterista, produtor, compositor e arranjista. Destas áreas, existe alguma, para si, que se impõe às outras em termos de relevância?
Eu acho que não. Penso que consigo ter todas áreas no mesmo nível.
Em termos de instrumento musical, quanto vale para si a bateria?
Eu estou cheio de conceitos muito confusos dentro de mim. A bateria é um instrumento muito importante para mim, pois me fez chegar onde me encontro. Mas eu vejo-me mais como músico, sem a especificação baterista, tanto que criei The Stélio Mondlane’s Project, para quebrar essa coisa de ser baterista. Eu gosto que me vejam como baterista, mas eu quero quebrar essa coisa, de modo que as pessoas me olhem como músico completo: sou compositor, produtor, arranjista e, acima de tudo, tenho o meu projecto a solo. Vejo a bateria como qualquer outro instrumento musical.
Será? A bateria foi a sua porta de entrada para a música…
Foi a minha porta de entrada, mas nem tanto… Quando era criança, eu cantava e fiz, na altura, parte de vários concursos. Primeiro cantei, depois, veio a bateria. E quando achei que já não queria mais esse instrumento, fui a Escola de Música, onde aprendi a tocar um pouco de piano, guitarra e outras coisas. Nessa altura não queria saber nada de bateria. Depois vi que a bateria era o instrumento com o qual me destacava facilmente. Decidi então investir na bateria, e gosto desse instrumento, com certeza.
Considera-se activista social…
Sou músico, mas, acima de tudo, considero-me activista social. Eu nasci no Bairro Polana Caniço, onde existem várias carências. Se consegui tornar-me um baterista foi graças a muito esforço. Agora, quando olho para trás, sinto a necessidade de pesquisar e encontrar formas para ajudar crianças que, nos subúrbios, não têm condição de se tornar músicos, tendo amor à arte e com talento. Penso que podemos usar a música para concretizar certos objectivos, como forma de rendimento para pagar a escola e etc. É assim que cada vez mais eu penso a música.
E fazer da música uma fonte de rendimento para concretizar outros objectivos é mais possível agora?
Sim. Se tivermos os objectivos bem traçados, é bem possível.
Oiço “Moya wanga”, “África”, “Inhamussoro”, “Sê ndza famba”, todas músicas do The Stélio Mondlane’s Project. E perguntou-me, como é que a música surge consigo?
Se dissesse que não é nada fácil, estaria a mentir. Eu acho que tudo isso é fruto do talento, e o talento é uma coisa que Deus dá. Para mim, o processo de criação é uma coisa que não tem igual. De repente encontro-me a bater numa mesa e surgem-me certos sons. Quando tenho uma ideia bem concebida, ligo para os meus colegas e vamos ao estúdio. É um processo único e eu gosto, porque naquele momento sou eu e a minha consciência. A partir daquele momento começo a imaginar como a música vai ficar. Para mim, é um momento muito bonito.
Tem tocado com vários autores. Quais são as vantagens e as desvantagens de trabalhar com tanta gente?
A vantagem é aprender mais, porque cada músico tem sua forma de estar e a sua bagagem. Por exemplo, ao trabalhar com o Stewart, aprendi muito dele como aprendo hoje ao trabalhar com Jimmy ou Moreira. Essa partilha é importante para mim porque cada um passa-me o seu testemunho.
Retornando ao The Stélio Mondlane’s project, qual é a história do seu CD/ DVD Mixed cultures ao vivo no CCFM?
Este DVD será sempre importante para mim, porque é o meu primeiro bebé. Foi com muito esforço que concretizei o sonho de ter esse DVD, numa altura em que toda a gente está a lançar CD. Tive muita ajuda do meu tio, Filipe Mondlane, uma das pessoas que muito me tem apoiado. Quis fazer algo diferente e, por isso, sou o único baterista em Moçambique com um DVD live no Franco. É algo que tenho orgulho e sempre vou procurar honrar.
E imagino que também vai querer sempre honrar a distinção Melhor Canção atribuída à sua música “Nilangue Wene”, em 2013, no Ngoma Moçambique…
Com certeza. Sempre que entro para o estúdio e vejo aquele prémio fico feliz. Vou trabalhar para que tenha mais prémios. Eu não esperava por aquele prémio, na altura, e achei que fosse impossível ganhar. Foi muito emocionante.
Tão emocionante como o prémio Melhor Voz conquistado no mesmo concurso três anos depois?
Também foi emocionante. E isso sempre impulsiona a carreira de um músico, contribuindo para que trabalhe e investigue mais.
Ainda este ano vai lançar o seu novo trabalho: New chapter. Que capítulo vem aí?
É um novo capítulo do Stélio Mondlane. Quis fazer uma coisa perfeita, mesmo porque sou muito perfecionista. O New chapter vem com géneros musicais diferentes. Não segui à risca a linha do jazz. As coisas ainda estão no forno.
Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?
Sugiro + Eu, de Assa Matusse, e Kwiri, de Roberto Chitsondzo.
PERFIL
Stélio Mondlane é baterista, compositor e produtor, com participações em vários festivais, como AZGO, More Jazz Series (Moçambique), Bushfire (eSwathini), MASA (Costa do Marfim), Lugano (Suíça), Sesco Series (Brasil), Quaresma (Eslovênia) e Mindelo Jazz Summer (Cabo Verde). Viveu por mais de 10 anos na África do Sul. É autor de um CD/DVD: Mixed cultures.
