É certo, pelo menos para mim, que o país se tem dilatado cada vez mais, tem-se tornado um campo de opiniões divergentes e convergentes. Primeiro que o país é sempre feito de opiniões, isso não é de hoje. Contudo, essa possibilidade de divergência torna esse país já num campo de força, num lugar mais belicoso, para ser mais ou menos hiperbólico. E isso tem os seus motivos, desde a bem dita (ou a maldita para outros) democracia, a liberdade de imprensa, a liberdade de opinião, o direito à informação e outras coisas relacionadas, cujos moçambicanos lutaram e lutam para ter.
É nesse prisma em que percebo e interpreto o acrílico s/tela, 150 x 150 cm, do artista plástico Vovo’s. Com o título “Cruzamento de pensamentos”, além dessa mensagem político-social, resguarda também em si uma outra interpretação possível, talvez menos plausível por conta do contexto, que é a sua exposição “Vozes da inclusão”, que é uma proposta para se pensar artisticamente o desenvolvimento do país.
A interpretação ‘não plausível’ dá conta de uma personalidade desintegrada ou de uma alma em que o Eu não é o senhor da sua própria casa, como imaginado por Freud, e atacado por pensamentos com diferentes origens, entrecruzando-se. Essa perspectiva, sugere que a mente é um lugar onde a sua funcionalidade foge do controlo do Eu. O quadro oferece-nos esse lado interpretativo, “Um cruzamento de pensamentos”, onde as várias figuras de cabeças desenhadas não passam de metáforas de múltiplos “Eu’s” que compõem um sujeito. Cada Eu fala na sua própria voz, às vezes, desrespeitando os outros Eu’s e criando esse dumba-nengue de pensamentos na cabeça.
O quadro nos sugere também isso, que nós somos habitados por várias vozes, vários pensamentos e múltiplos Eu’s dentro de nós. “Eu sou vários. Há multidões em mim. Na mesa da minha alma sentam-se muitos, e eu sou todos eles”, esse versículo, atribuído à Friedrich Nietzsche, mostra também, por um dado momento, essa fragmentação da personalidade. Um outro texto poético atribuído a Ricardo Reis, um dos heterónimos de Fernando Pessoa, intitulado “Odes”, também mostra que o humano, talvez, tenha esse cruzamento de pensamentos. “Tenho mais alma que uma […]/ Sou somente o lugar / Onde se sente ou se pensa / Tenho mais almas que uma/ Há mais eus do que eu mesmo”. A própria figura de Fernando Pessoa é um dos exemplos dessa fragmentação da personalidade, em que se decompôs em vários heterónimos, cada um tendo a sua própria voz e estilo.
A psicologia, actualmente, chama isso de transtorno de personalidade múltipla (Transtorno de identidade dissociativa), em que um indivíduo apresenta duas ou mais identidades, basicamente. Acho que posso parar por aqui, pois sinto que vou na direcção contrária daquilo que o título e o primeiro parágrafo sugerem.
Na questão político-social, que é a interpretação mais provável e plausível da obra, o autor, ao meu ver, propõe duas perspectivas ligadas entre si: a inclusão de outras vozes para a construção do país e retrata a actualidade e/ou a realidade desse Moçambique, até porque o próprio quadro foi pintado em 2024.
Antes de muito, seria interessante dissecar um pouco a imagem. Vovo’s apenas pintando cabeças, não o faz, parece-me de uma forma vã e inconsequente. Pelo contrário, parece tratar-se de um puro linguista usando da pintura para explicar, implicitamente, a metonímia/ sinédoque (até para os próprios linguistas ainda há zonas de penumbras em que não se sabe bem onde uma termina e onde começa a outra).
As cabeças têm uma função referencial, numa primeira conotação. Ou seja, Vovo’s usa-as para tomar referência dos ‘pensamentos’. Não se trata de uma aula de figura de linguagens, mas acho imprescindível para desfazer essa interpretação. Entende-se por metonímia como uma parte pelo todo (essa definição é dada ao sinédoque, às vezes, mas Lakoff e Johnson tratam como se fossem a mesma coisa), isto é, nesse caso, toma-se cabeça por pessoas.
Contudo, há muitas partes que podem representar o todo. Por exemplo, poderia ter usado as mãos, as pernas, o peito, as costas, a barriga, mas usou as cabeças. Há uma razão para tal. Se usasse outras partes do todo além das cabeças, certamente teriam outras conotações porque “a parte seleccionada determina que aspectos do todo estamos enfatizando” (Lakoff e Johnson in metáforas da vida cotidiana, p. 93). Com isso diria que essa escolha das cabeças para representar as individualidades e singularidades traz aspectos como inteligência, erudição, raciocínio, ideias, opiniões ou, como sugere o autor, pensamentos.
Por aqui já se torna clara a intenção do autor com essa pintura, uma das duas: ou sugere ou retrata. Ou pode até ser as duas coisas em um. O importante a notar é que a obra pode retratar/sugerir um Moçambique que se torna, cada vez mais, um campo aberto de opiniões. Aqui, vou trocando opinião e pensamento indiscriminadamente, pois acho que um pensamento proferido já é uma opinião. As figuras, também, têm essas características, algumas figuras estão de oca aberta. Denunciando assim a fala, o discurso e o proferir, conferindo-me uma certa coerência. Contudo, outras figuras aparecem de bocas cerradas ou mesmo sem esse dispositivo que se parece com uma boca. Isso pode significar que alguns opinam e outros não. Isso pode parecer um tanto forçado, contudo há uma mensagem que conta da dualidade de critérios: uns podem falar e outros não.
Essa obra lembra-nos a democraticidade do nosso país, ou o que deveria ser (sugestão). Os novos democratas, não só reflectem esse termo etimologicamente, como demos (Povo) e Cratos (poder). Desde já, percebe-se que a música “Povo no poder”, do falecido Azagaia, é o ápice da insurgência artística contra um governo de poucos, que detém todos os privilégios. Esses novos democratas incluem no pacote o direito à informação (imprensa) e o direito à opinião. Essa luta de direito à opinião, em particular, faz-se opinando, e cria-se assim um ‘campo de forças opinativas’.
Não sei se deveria explicar isso, mas um jogo de opiniões nunca pode ser visto como neutro, há um jogo de poder, como fez crer Foucault. É por conta disso que vai sendo, para mim, sempre um campo de forças, onde cada um vai impondo a sua própria verdade, em forma de opinião. Como essa liberdade de opinião e democracia vai abrigando cada vez mais pessoas e seus pensamentos/opiniões, consecutivamente há esse cruzamento: opinião que vai a esquerda, que vai a direito, para cima, para baixo, para frente ou para trás. E esse facto nota-se na ‘não linearidade posicional’ das cabeças, cada cabeça parece que vai olhando para um único lado, criando essa confusão visual que significa miscelânea de opiniões.
As figuras são geométricas com ângulos e linhas de difícil definição, o que confere uma certa abstração (ou total abstração). Esse quadro lembra-nos o cubismo, cuja característica principal é a fragmentação das formas. Fragmentação da personalidade ou dispersão e miscelânea de opiniões? Ambos cabem, mas nos reservamos à fragmentação de opiniões no país. Também se revela uma sobreposição das formas cubistas patentes na pintura, apesar de ser característico do cubismo, se vestisse das analogias da Hermano diria que significam ou hierarquia das opiniões (num viés marxista na luta de classes) ou relações de poder/conhecimento (num viés “Foucaultiniano” na microfísica do poder). Em poucas palavras, a sobreposição de figuras cubistas ou significa que as opiniões nascem de classes sociais antagónicas (dominante – dominado), e que umas das classes possui a hegemonia, ou que há uma dispersão do poder que permeia todo o tecido social, cada um tendo um pouco para cada situação e momento. Sem tentar fazer um exorcismo filósofo, onde irei evocar espíritos dos mortos para me dar a luz nessa ensaio, digo que as duas linhas dão conta de um campo de forças opinativas.
Além dessa miscelânea de opiniões, na pintura vemos zonas de penumbra, de luz e de escuridão, representados por cores castanhas, brancas e negras, respectivamente. Isso vem reforçar essa miscelânea, onde as zonas brancas podem significar zonas de paz, ou acordos. Isto é, zonas onde as diferentes opiniões entram em convergência. E as zonas escuras mostram zonas de conflito e guerra, em que não há acordos possíveis, reflectindo a divergência que caracteriza esse actual Moçambique, principalmente no campo político.
Vovo’s traz-nos cá uma oportunidade ímpar de pensar o país. O seu quadro “Cruzamento de pensamentos”, com figuras cubistas, cores fortes e variadas, vermelho, azul, preto, branco, amarelo ou laranja, traz um movimento, ou um efeito visual dinâmico. Sente-se isso quando se olha por longo período o quadro. Mas também nos fica na mente a ideia de um país que é cruzado e atravessado por opiniões, convergentes e divergentes.