Em 2008, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou Moçambique livre da lepra. O parâmetro usado, na altura, foi de ocorrência de menos de um caso em cada 100 mil habitantes. 16 anos depois, quase todas as acções de luta contra a lepra foram relegados para o terceiro plano. Os casos que estavam ainda activos foram negligenciados e o país volta a estar a braços com a lepra. Só em 2021, foram diagnosticados 3135 novos casos.
Não é preciso andar muito. Basta sair da cidade de Nampula pela estrada Nacional N.°1 (em direcção à Zambézia) para encontrar o posto administrativo de Namaíta, no distrito de Rapale, a menos de 50 km da cidade de Nampula. O local é representativo em todos os sentidos: o distrito faz parte de um total de cinco que registam maior número de casos de lepra na província de Nampula, e Namaíta é um dos pontos onde funcionou uma das gafarias – nome que designa o local onde eram concentrados e tratados os leprosos.
Seguimos com um propósito concreto. Depois de uma viagem de menos de uma hora, encontramos um pequeno “comité de recepção” composto por idosos. Através de cânticos e danças, expressam o seu sentimento… é o chamado “grupo de autocuidado” que se reúne regulamente num local concreto para cuidar da sua saúde. No grupo, há homens e mulheres de diferentes idades, mas com algo em comum: alguma parte do corpo tem deformidade por causa da lepra.
Amisse Mopiha é um dos activistas e é membro do grupo. Explica-nos o que justifica a ocorrência de muitos casos de lepra naquele local: há muitos casos de lepra porque Namaíta, antes desse nome, era chamado de gafaria, porque traziam casos de lepra de outras províncias, assim como de outros distritos vizinhos. E sempre tinha concentração e tratamento, cá, em Namaíta. Por isso, sempre existem esses casos.
A lepra é uma doença transmitida através do bacilo de hansen. Foi descoberta em 1873 e, durante muito tempo, não tinha um tratamento eficiente. Os doentes sempre foram alvo de discriminação familiar e social. A sua transmissão é através de secreções, por via oral, tal como acontece com a tuberculose. A diferença é que a lepra é menos infecciosa e pode incubar-se no organismo durante dois a cinco anos sem apresentar manifestações visíveis.
Sentado num banquinho de madeira, com os pés imersos em meia profundidade numa cova que tem na base folhas de bananeiras para conservar a água (uma espécie de bacia que se improvisa para quem não a tem), Horário da Silva esfrega a base dos pés com uma pedra e molha-se com água limpa.
“Meu pai tinha, minha mãe tinha. Posso dizer que é natural”, abrevia o homem de 50 anos, com um olhar tímido que se estende no horizonte como se estivesse a rebuscar as memórias do seu passado dramático.
Há 37 anos que lhe foi diagnosticada a doença. Nessa altura, já estava no segundo grau, que é quando o paciente começa a registar perda de sensibilidade no corpo, atrofiamento e queda dos dedos das mãos e dos pés.
Uma das manifestações mais comuns da lepra é o ressecamento excessivo da pele, por isso, é importante a lavagem frequente e lubrificação com óleo cutâneo ou qualquer creme hidratante.
“Nós, que temos feridas, todos os dias, temos de as lavar e fazer o penso”, explica o homem que perdeu todos os dedos dos pés e parte dos das mãos. As sapatilhas que calça servem também de suporte para que possa ter estabilidade na marcha.
Horácio da Silva saiu do distrito de Mecubure, também em Nampula, em 1987, para ir à gafaria de Namaíta a fim de ter tratamento. Só que já era tarde; o mal já estava instalado – a perda dos dedos –, por isso, tudo quanto conseguiu com o tratamento foi evitar novas lesões graves. Não se assume um incapaz, pois consegue organizar a sua casa e praticar agricultura de subsistência. Todavia, há algo que não conseguiu superar: o estigma.
“Não tenho filhos porque não tenho mulher”, responde o homem quando questionado por nós sobre a sua vida familiar. A uma pergunta sobre o porquê de abraçar a solidão, a resposta é peremptória: não faço tudo o que os homens fazem.
Nas comunidades de Namaíta, a lepra tem rostos; a história é contada por personagens que a viveram. Os vestígios sustentam o que as palavras dizem.
É o caso Silvestre dos Santos Amadeu. No limiar da década de 70, foi-lhe diagnosticada a lepra, depois de uma suspeita de missionárias católicas numa comunidade do distrito de Mossuril (parte costeira de Nampula) que frequentava.
“Elas disseram: ‘É lepra isto!’. Levaram-me de carro e viemos aqui. Tiraram todos os meus dados na secretaria e estive internado por seis meses lá, em baixo”, narra o homem com o rosto já envelhecido, mas dono de uma memória extraordinária. A conversa acontece em movimento, enquanto percorremos o recinto e os compartimentos da antiga gafaria de Namaíta.
“Fui curado, sim”, responde, com firmeza, o homem alto e escuro. Lembra-se das datas como uma mãe se lembra dos aniversários dos filhos. “Desde 1974, com asulfona e com lambrena, até 1986 quando larguei”. Silvestre dos Santos é uma das provas vivas de que, quando o diagnóstico que é feito precocemente, tem cura e não leva à queda de dedos.
O tratamento da lepra é longo, tal como acontece com a tuberculose. Varia de seis a 12 meses, mas o sucesso depende muito do diagnóstico precoce.
“Por falta de sensibilidade dos pés das pessoas, eles vão sofrendo traumatismos nos pés e até mesmo queimaduras e vão tendo feridas que chamamos de úlceras perfurantes, e são essas úlceras que também podem evoluir com a amputação dos dedos, principalmente os dos pés”, explica o dermatologista Marcelo Banquimane. Marcelo faz parte do total de 15 dermatologistas moçambicanos que o país tem. Aliás, apesar de Nampula reportar maior número de casos, como viremos mais a baixo, existem apenas três dermatologistas: um moçambicano e dois estrangeiros.
Importa explicar que, sendo a pele a parte que mais sofre com a lepra, são os dermatologistas que cuidam dos pacientes.
O QUE FALHOU NOS ÚLTIMOS 16 ANOS?
Em 2008, a OMS declarou Moçambique livre a lepra. A partir daí, as organizações que trabalhavam nessa área cessaram a sua intervenção e o Ministério da Saúde não deu o devido seguimento aos casos que ainda estavam activos, tendo-se transformado em focos de novas contaminações nas comunidades.
“Quando se declara erradicada a doença, não significa que já não temos o problema. Estamos num período de controlo, digamos assim, mas a prevalência caiu. Naquela altura, tínhamos uma prevalência menor de um caso em cada 100 mil habitantes. A OMS assim ditou e tem sido assim. Nós estamos cientes de que o erradicar não significa que não vamos diagnosticar sequer um caso. E sempre que se erradica, há uma vigilância intensificada que deve ser feita a seguir para observar a ocorrência de novos casos”, esclarece Geraldino Avalinho, chefe do departamento de Saúde Pública no Serviço Provincial de Saúde em Nampula, para quem a nova vaga de casos prova que os casos que estavam activos na altura foram transformando-se em focos de propagação nas comunidades.
Em 2022, Moçambique foi classificado o terceiro país de África com maior número de casos, perdendo para Etiópia e República Democrática de Congo. Do levantamento feito em 2021, o país apresentou 3135 novos casos de lepra. Nampula (1395), Zambézia (769), Cabo Delgado (494) e Niassa (247) são as províncias com mais casos.
O que chama atenção é que 10% a 20% dos novos casos de 2021 foram em menores de 15 anos de idade, o que, mais uma vez, evidencia tratar-se de contágios que se registam depois de 2008.
“Sem fazer tratamento, estes músculos iam começar a atrofiar. Hipotrofia muscular da região do punho. É isso que provoca essas deformidades. Mas, como já está a tomar aquele medicamento prezerona, já está a começar a reduzir”, diz o médico e activista da organização não-governamental NLR, Domingos Nicala, enquanto tateia os braços de uma menina de 14 anos de idade que lhe foi diagnosticada a doença há três meses.
A adolescente vive na periferia da cidade de Nampula e sempre foi ao hospital, só que nunca teve um diagnóstico conclusivo dos clínicos, até que foi descoberta pelos activisvas da NLR no trabalho de busca por pessoas com sintomas sugestivos à lepra. É, aliás, esse trabalho que deixou de ser feito com frequência, por isso os casos foram sendo negligenciados.
“Depois de ter sido eliminada, algumas actividades, provavelmente, não tenham sido levadas a cabo, que é a vigilância epidemiológica forte, de modo a que a lepra começou a ressurgir em Moçambique, principalmente nas zonas onde sempre foi endémica, neste caso em Nampula, Niassa, Cabo Delgado e Zambézia. A lepra é uma doença que, mesmo nos currículos de formação, quer do ensino superior, ela escasseia; se for ao nível médio, praticamente ela já não existe. Então, os técnicos de saúde formados recentemente não têm esta componente. Consequentemente, se o doente aparece com os sintomas e sinais na sua frente, ele não vai reconhecer. Eu tinha um professor que dizia que ‘o que a mente não sabe, os olhos não vêem. Então, a falta de conhecimento dos técnicos que estão nas unidades sanitárias faz com que o paciente venha às unidades sanitárias e acabam por diagnosticar como sendo uma outra doença de pele banal e vai recebendo pomadas e cremes até à fase que vai tendo deformidades”, considera o clínico geral e coordenador provincial da NLR em Nampula, Hélder Rassolo.
É evidente que os 3135 novos casos de 2021 correspondem a uma proporção de 0,03 casos em cada 100 mil habitantes, o que, no parâmetro da OMS, ainda se considera o país livre da lepra. Todavia, facto preocupante é que esse número resultou de actividades de campanha de busca activa realizada essencialmente por organizações não-governamentais, o que pode levar a inferir que, num trabalho mais aturado, se pode identificar casos em números assustadores.
Celebra-se, no último domingo do mês de Janeiro, o Dia Mundial de Luta contra a Lepra e, no dia 30 de Janeiro, o Dia das Doenças Negligenciadas, das quais faz parte a lepra. Aliás, a lepra em Moçambique está a ser tão negligenciada de tal forma que, neste momento, apenas três organizações não-governamentais trabalham nessa área: a NLR, que actua em Nampula, Zambézia, Niassa e Cabo Delgado; a Missão Contra a Lepra, que desenvolve actividades em Cabo Delgado e Zambézia e a AIFO, que está em Nampula e Manica.