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Masingita ou a casa do pecado

Quem manda nas nossas vidas é a sociedade, o senso comum, e não o nosso mero querer,

o nosso livre arbítrio. A sociedade é quem nos tira a fotografia e exibe-a publicamente.

in Masingita ou a subtileza do incesto.  

 

Boa noite a todos.

Antes de me perder nesta tentativa de apresentar o livro, eu quero agradecer ao Juvenal por me confiar esta nobre tarefa. O Juvenal é um dos escritores de referência em Moçambique e dos que mais regularmente publica. Então, quando nos convida a apresentar uma obra literária da sua autoria, dá-nos uma falsa ideia de que somos importantes, até porque o nosso nome circula em cartazes de grandes centros culturais como o Camões.

Lembro-me de que o Juvenal convidou-me a apresentar a sua novela depois de uma entrevista que me concedeu, no programa Artes e Letras da Stv, mesmo a propósito dos 40 anos da AEMO. Nessa ocasião, disse-me assim: – Zé, eu tenho um novo livro que em breve será lançado pela Fundza no Camões. Mas ainda não tenho um apresentador.

Bem, nesse instante, vocês sabem, o Juvenal é uma pessoa serena e que fala muito devagar, o que nos dá a possibilidade de pensarmos mil e uma coisas enquanto ele ainda não terminou a ideia ou mesmo a frase… Não tendo o escritor um apresentador do seu mais recente título, preciptei-me a julgar que ele pretendia que o ajudasse a encontrar alguém para assumir essa função. Imediatamente, pensei em três nomes: Lucílio Manjate, Albino Macuácua e Léo Cote. Quando pretendia avançar para o quarto, eis que o escritor remata: – Gostaria que fosses tu a apresentar o meu livro. O que te parece?

Um convite desta natureza, feito por um autor como Juvenal, fundador da primeira revista literária de Moçambique depois da independência, a Charrua, e uma voz de vanguarda da Geração Charrua, é uma ordem e um privilégio. Por isso aceitei cá vir partilhar convosco as minhas leituras sobre a nova proposta do escritor.

Assim sendo, eu intitulei esta intervenção da seguinte maneira: Masingita ou a casa do pecado. Logo no princípio, o que me motivou a intitular parte desta minha intervenção, no caso a casa do pecado, foi o título do livro de Matilde Chabana, O perfume do pecado, apresentado por mim aqui no Camões, em Fevereiro deste ano. Na verdade, apropriei-me daquele título porque, em parte, o livro da Matilde, editado pela Kulera, dialoga com a novela de Juvenal Bucuane, editada pela Fundza. No primeiro caso, mesmo sendo poesia, O perfume do pecado é um mergulho na proibição, no que é vedado às mulheres, no pecado que, na realidade, funciona como uma espécie de reivindicação da liberdade numa sociedade machista.

Em segundo lugar, o que inspirou o título desta minha intervenção, a parte do pecado, foi a seguinte passagem. Para os que têm o livro, por favor, página 59:

 

Não suportavam mais aquele lugar que, durante o sono que lhes devia ser retemperador, agoiravam-nos esgares infames que habitavam os seus sonhos. Os pesadelos não tinham fim, perfilavam ao longo da noite. Já não tinham paz. O tecto de zinco da casa parecia estar a ruir, pelo barulho e miar incessante dos gatos, como se se aliassem ao ambiente sinistro dos habitantes das redondezas da casa pecaminosa.

 

Quanto ao termo masingita, nesta minha intervenção, claro está, resulta do facto desse termo compor a totalidade do título da mais recente obra literária de Juvenal Bucuane: Masingita ou a subtileza do incesto. Masingita é um termo ronga, entre vários significados, quer dizer sacrilégio em português. Mais à frente, iremos perceber porque a utilização do termo faz sentido neste livro.

Ora, Masingita ou a subtileza do incesto é uma história sobre as consequências que o amor não correspondido pode gerar nas pessoas. Tem-se dito que os filhos pagam pelos erros dos pais. E, desse ponto de vista, Juvenal Bucuane traz aqui uma novela interventiva, pisando, muitas vezes, terrenos movediços. Esta é uma história, fundamentalmente, de Marta e Pepuka, mãe e filho que, depois de cada um se separar do seu cônjuge, voltam a morar juntos. É uma aventura acutilante sobre a condição da mulher e sobre como certos hábitos e costumes conspiram para o que podemos considerar minimização do sujeito feminino, conforme ilustra o seguinte excerto. Por favor, os que têm o livro, página 21:

 

Depois de se concluir, no fervor da troca de palavras, que já não havia volta para a reunião do casal, esgrimidos que foram os argumentos, de ambas as partes, até à exaustão, à família M’Phumelo não restava mais que insistir no argumento de que, como Marta não tivesse sido lobolada e premiara a família Ndleleni com um filho varão, que era uma promessa de continuidade do seu nome familiar, o justo seria que esta família se redimisse, lobolando a sua filha, caso contrário, esta voltaria para casa paterna, passando, o filho do casal e sua prole – dois filhos menores, a serem, exclusivamente, novos elementos da família M’Phumelo, como se nenhuma relação tivesse existido entre as duas famílias.

 

O excerto que acabei de ler marca o episódio em que Marta e Plínio encontram-se no processo de separação. Marta não tem voz. Não se faz ouvir para dizer que não concorda com a separação ou com a contrapartida colocada pela família e muito menos é consultada sobre o que quer que seja. O marido e a família dele pretendem-na devolver ao lar paterno como mercadoria. Do mesmo jeito, a sua própria família pretende-a receber de volta como “coisa” inexpressiva. Os hábitos e os costumes colocam Marta numa situação difícil, de tal maneira que, ao nível da comunidade onde vive, ao invés de receber apoio pelas consequências enfrentadas antes e depois da separação, é praticamente discriminada, inclusive, por outras mulheres.

Há neste Masingita ou a subtileza do incesto o cuidado de Juvenal Bucuane no retrato da condição daquelas mulheres que, por exemplo, ao separarem-se, devido à forma como a sociedade moçambicana reage a isso, mesmo precisando, não voltam a casa dos pais. Para evitar certos olhares, certas perguntas e constrangimentos, colocam-se a alugar uma casa geralmente precária onde “recomeçar” não é um verbo tão auspicioso quanto deveria ser.

Masingita ou a subtileza do incesto é uma história de relações amorosas tensas e sobre a consequência das coisas. Quando as relações entre Marta e Plínio e Saquina e Pepuka falham, surgem danos colaterais. Logo, a ligação causa e efeito é tão necessária quanto indispensável. A causa e o efeito acompanham toda a narrativa como se Juvenal Bucuane pretendesse iluminar zonas de penumbra que, afinal, podem constituir determinadas formas de ler a realidade à nossa volta e, sobretudo, à volta dessas tantas mulheres que a percepção machista as destrói sem redenção.

Ao colocar o amor no princípio de tudo que move o enredo, Juvenal Bucuane questiona e questiona-nos sobre as nossas acções em prol do investimento naquele sentimento. Desse ponto de vista, claramente, o livro não nos dá respostas gratuitas, mas pode ser que nos ajude a chegar a algum lugar, a algum entendimento, a uma visão alargada de um mundo menos preconceituoso e mais sugestivo. Há-de ser por isso que o autor textual deste universo diegético preserva a introdução dessas relações familiares sempre em desgaste. Aliás, é devido a esse desgaste das relações de afecto que surge o incesto no enredo.

A vossa atenção a mais uma passagem do livro. Prometo que, depois desta, não leio mais nada. Por favor, página 37:

 

A madrugada ia profunda quando Pepuka, tentando encontrar uma posição melhor para acomodar o seu esgazeado sono, deu com um corpo de mulher ao seu lado, deitado desmazeladamente. A voz do despudor chamou pelos seus instintos vorazes de macho, bloqueando-lhe toda a razão. A correspondência, encapuçada no proporcional despudor, completou os actos várias vezes repetidos, naquele breve espaço temporal da noite.

A inconsciência do sono, misturada com a exaustão corporal, prevaleceu.

Quando, cerca das oito da manha, coincidentemente, despertaram, deram-se conta de que dormiram juntos, mãe e filho, na mesma cama, a cama do filho, como se contrariassem os tempos em que Pepuka, ainda infante, se refugiava, com medo do escuro e se deitava entre os seus pais. A nuvem entorpecedora da noite finda dissipou-se, trazendo-lhes, timidamente, a lucidez que, como num puzzle, completava, os revérberos misteriosos da noite finda. Nada poderia ser tão evidente ou esclarecedor do que a meia nudez em que se apresentavam um diante do outro.

Quem consegue voltar a recuperar o caldo entornado?

 

Nem o narrador consegue recuperar o caldo entornado e muito menos eu. Bem observado, a passagem incestuosa é tão arrepiante que o narrador nunca consegue entrar em pormenores. O narrador é covarde no seu discurso e fica ali a dar a volta às coisas. Mas essa estratégia não compromete o entendimento do episódio constrangedor. Longe disso, o discurso do narrador garante ao texto uma linguagem requintada e cuidada, conferido ao leitor a decisão de inventar imagens da circunstância incestuosa. Sob sua própria responsabilidade.

Segundo Freud, o primeiro objecto sexual do bebé é incestuoso, porque é mãe. Essa acção incestuosa, com efeito, acontece através da amamentação. Adler e Jung rebatem essa concepção do incesto porque, ainda que um bebé sinta prazer ao comer, isso não significa um prazer sexual. Seja como, no caso de Masingita, de Juvenal Bucuane, o incesto não está nada ligado ao que Freud sugere ou às contradições de Adler e Jung. Em Masingita, o incesto é inconsciente. Depois de Marta se separar de Plínio, recebe em sua casa o filho Pepuka, que se separa de Saquina. Mãe e filho, portanto, embriagados, perdem a noção das regras e a lucidez e mergulham fundo num caso irreversível. As duas personagens arrependem-se desesperadamente, dando azo à introdução de outro tema importante para esta história: o suicídio.

De acordo com o Ministério da Saúde, cerca de quatro mil pessoas tentaram resolver os seus problemas recorrendo à morte, ano passado. Quatro mil pessoas. Sobretudo em Maputo e em Manica. É muita gente! Se assumirmos que o suicídio é um problema social grave em Moçambique, então faz todo o sentido ler Masingita, de Juvenal Bucuane, porque esta novela nos permite compreender as causas de certas atitudes trágicas do nosso quotidiano. À literatura também cabe essa espécie de luz a iluminar-nos a nós próprios e aos outros.

Masingita ou a subtileza do incesto é tudo isso, uma novela riquíssima do ponto de vista temático; uma novela que não se perde em demasiados procedimentos técnicos no investimento da narrativa. Esta é uma novela progressiva, cujo discurso do narrador revela gradualmente o universo diegético e a essência das personagens que nos movimentam nesta viagem.

Portanto, nessa instauração do equilíbrio entre os fundamentos temáticos e a estratégia narrativa, Masingita ou a subtileza do incesto expia o lado imperfeito da mente humana, mas não para colocar a imperfeição num patamar alto. Logo se vê, a pretensão aqui é outra, despertar-nos para os sentidos da coexistência por via de uma ficção dilacerante e inevitável.

 

* Texto escrito de cor na sequência da apresentação do livro Masingita ou subtileza do incesto, dia 21 de Setembro, no Camões – Centro Cultura Português em Maputo.

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