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Mabjeca Tingana ou o poeta que sonha em changana

Chegou à Rua Timor Leste, número 108, Cidade de Maputo, como quem vai a uma sombra. O dia estava todo cinzento, com pingos de chuva, todavia Mabjeca Tingana levava à cabeça um chapéu de palha, desses que antes eram abundantes mas que, ultimamente, quase sumiram. Restou um, felizmente. Claro está, na posse do senhor Tingana. Homem franzino, calmo, comedido nas palavras. Dispensando a maquilhagem, entrou no estúdio do programa Artes e Letras, onde nunca antes esteve um homem de chinelos. Sentiu-se em casa. Por isso, ali falou de Ndzhutini, título do seu livro de estreia que funciona, de facto, como um lugar que permite efectuar viagens pela sua língua materna. O texto abaixo, na verdade, é o essencial dessa tentativa de entrevistar um poeta que sonha em changana.

 

Ndzhutini é uma proposta para nos reunirmos num lugar, de modo a pensarmos a expressão do poeta que se está a revelar a cada dia?

Ndzhutini é um lugar que eu procuro ter um refúgio, um lugar que eu procuro ter uma sombra para poder me libertar. Esta sombra é um lugar em que estando tudo limpo, acaba estando tudo sujo. Há coisas que não se podem traduzir sobre esta obra.

É por isso que não investiu numa edição bilingue, por entender que há coisas do changana que não se podem traduzir?

Pensou-se na possibilidade de fazer uma edição bilingue, mas eu não quis. Sou investigador de línguas moçambicanas. Faço poesia em changana e traduzo do português para o changana. Então, para mim, não faria muito sentido uma edição bilingue, porque as pessoas iriam apostar em português e não no changana. Assim consigo me libertar melhor, porque eu, quando estou a dormir, não sonho em português, sonho em changana. Changana é uma forma de poder estender aquilo que pretendo, segundo a minha forma de pensar. Nunca escrevo nada em português. Tudo começa em changa e, depois, é traduzido para o português. Mesmo os poemas.

Não lhe preocupa a ideia de que pouquíssimos leitores poderão ler-lhe e compreender a sua poesia?

Eu, quando comecei a produzir o livro, não pensei e nem penso no leitor. Penso em dar asas às línguas moçambicanas, às 23 línguas moçambicanas que temos. Para podermos estar independentes, temos de pensar nas nossas línguas como forma de educação, ao invés de investirmos nas línguas estrangeiras nesse sentido. Então, não pensei no público, no leitor, no mercado e em nada disso. Pensei numa forma de me libertar e esgrimir aquilo que tenho dentro de mim, em changana.

O que mais quis fazer deste Ndzhutini?

Esta é uma colectânea de poemas que fala de mitos e verdades de Moçambique. Este é um livro triste. Não tem nada de alegre. Reflecte um pouco do preconceito e da situação em Cabo Delgado. Tudo triste que tem a ver com a nossa sociedade.

Portanto, está a reconhecer que, quando escreve, deixa-se guiar por uma intensão além do estético?

Não existe um povo sem cultura e sem língua. Não existe um povo sem cultura para a libertação. No nosso país, as pessoas, às vezes, confundem as coisas. A cultura não deve ser partidária, mas cá é. A educação não deve ser partidária, mas ca é. Já agora, acho que não devia existir um Ministério da Cultura, mas uma agremiação que nos representasse. O Ministério da Cultura não nos representa porque é partidário.

A quem se refere quando diz não nos representa?

Não nos representa, a nós, sociedade moçambicana.

Não é um pouco presunçoso falar em nome da sociedade moçambicana?

Não nos representa porque o Ministério da Cultura que temos é partidário, tem preconceito linguístico, discrimina os artistas, que apenas são valorizados quando chega o momento da campanha eleitoral e mais outras coisas.

O seu livro também é sobre essas coisas que lhe permitem ler o contexto social, político e cultural, tudo resumindo na poesia. O que esse todo exercício significa para si como poeta?

O texto Ndzhutini diz tudo o que pretendo dizer e não consigo responder numa entrevista como esta. Se puderem ler, poderão compreender-me melhor.

Para si é mais fácil escrever do que falar?

É mais fácil libertar-me como uma forma de colocar questões em relação ao que me preocupa. Com ou sem dificuldades, temos de exprimir a nossa dor, de modo a influenciarmos a mudança para o melhor nas pessoas.

O que significa dizer svithokozelo?  

É uma forma de exercer a liberdade.

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País

Sugiro a obra Nghozini e Mhalo, de Porto Manhiça; Gungunhana, de Ungulani ba ka Khosa; e A longa marcha duma “educação para todos” em Moçambique, de Severino Ngoenha e José Castiano.

 

Perfil

Mabjeca Tingana nasceu em Maputo. É escritor, poeta e actor. Escreve e declama poesia em changana. É activista cultural, defensor de educação e valorização das línguas bantu. Tem seus textos publicados em várias antologias em Portugal, Argentina e Brasil. Tem um poema publicado no livro Lomuku, de Severino Ngoenha. É membro do Movimento Literário Kupaluxa e da ACLA – Academia Capanemense de Letras e Artes – Brasil. Recentemente, estreou-se em livro com Ndzhutini (Na sombra), poesia escrita inteiramente em changana.

 

 

 

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