Numa recente intervenção na Grande Conferencia do 130.º Aniversário do Jornal de Notícias (Português) realizada no dia 1 de Junho, no Porto, Daniel David, o patrão do Grupo Soico, não poderia ter sido mais claro: a língua portuguesa não é um activo estratégico porque não gera rendimento; pelo contrário, é um passivo que as empresas da comunidade lusófona têm de suportar. É que, segundo Daniel David, os negócios em português obrigam a traduções, dificuldades de mobilidade, sendo, por isso, “(…) preciso um sobressalto de inteligência que crie um ambiente favorável para que [os] empresários [façam] negócios”. Mas a língua portuguesa tem um enorme valor, ainda que simbólico, quanto mais seja por ser a nossa língua oficial. E esse simbolismo é importante e deve contribuir para a defesa dos (nossos) interesses nacionais. É inquestionável que a língua inglesa é conhecida por ser uma língua universal, uma língua de negócios. As palavras de Daniel David, ainda que discutíveis, pretendem ilustrar a importância de uma língua de negócios como o inglês. O ano que levo em trabalho fora do país não deixa margem para dúvidas sobre a importância e o uso do inglês como língua de trabalho, ainda que algumas organizações internacionais potenciem o uso de outras línguas como o Francês e o Espanhol. O facto de a nossa língua oficial ser o português é uma desvantagem, mas que devemos aprender a usá-la como vantagem. Moçambique tem feito um enorme esforço para atrair investimento estrangeiro, sendo, nesse âmbito, essencial conhecer o inglês, até porque isso facilita a (nossa) interacção com os investidores. Mas creio que isso não nos pode levar não só a minimizar a língua portuguesa, como a pôr em causa os nossos interesses nacionais. Os exemplos da resolução de litígios através da arbitragem comercial internacional ilustram esta situação. Tem sido comum definir o inglês como a língua que é usada nos casos de resolução arbitral de litígios entre entidades públicas nacionais e entidades públicas ou privadas estrangeiras. Basta olhar para os contratos publicados pelo Instituto Nacional do Petróleo (http://www.inp.gov.mz/pt/Politicas-Regime-Legal/Contratos-de-Pesquisa-Producao-de-Hidrocarbonetos) e o recentemente aprovado Modelo de Contrato de Produção e Pesquisa (Decreto n.º 46/2016, de 30 de Outubro e publicado em http://www.inp.gov.mz/pt/Politicas-Regime-Legal/Modelo-de-Contratos-de-Pesquisa-e-Producao). Nuns casos, os contratos até estão em duas versões – português e inglês – mas a que prevalece em caso de conflito é a versão inglesa. No caso do Modelo de Contrato, a situação é muito mais grave porque condiciona Moçambique nas negociações. Não pretendo defender que o inglês não seja usado, mas ilustrar que o não uso do português é prejudicial para os interesses do país. Regra geral, as negociações são feitas em inglês, até porque são áreas, como é o caso do petróleo e gás, onde o inglês é habitualmente a língua da indústria. Sucede que o mundo arbitral é dominado por países falantes de inglês, cujo sistema jurídico tem raízes na common law, enquanto no nosso país o sistema jurídico é de civil law. Não é uma questão de substituir este por aquele: qualquer um deles é um sistema sólido e que tem implicações culturais. Não cabe neste texto indicar as diferenças entre um e outro sistema, mas trata-se de realidades e culturas bem diversas, sendo o inglês uma língua da common law. Um dos argumentos que pode ser usado para defender o português é de natureza legal, mas os que são mais importantes são de outra natureza. Determinar que em caso de litígio a versão do contrato que prevalece é a inglesa, é, aliás, ilegal, uma vez que esses contratos estão sujeitos a fiscalização prévia do Tribunal Administrativo que só visa contratos em língua portuguesa. Assim, em caso de litígio, como estes contratos determinam que a lei aplicável ao fundo da causa, ou seja, a lei aplicável para resolver a questão concreta colocada ao tribunal arbitral (lei diferente das regras processuais aplicáveis para resolver o litígio) é a moçambicana, então a versão que deveria prevalecer é a moçambicana. Mas, infelizmente não é o que acontece. Basta ver os exemplos acima referidos. No momento da negociação de um contrato não se imagina que possam surgir conflitos, mas um bom negociador deve pensar nisso e precaver-se relativamente ao local ou sede da arbitragem, sobre as regras processuais aplicáveis para a arbitragem, sobre as regras e o processo de escolha de árbitros e sobre lei aplicável ao fundo da causa. É, aliás, por isso que a cláusula da arbitragem é designada por cláusula da meia-noite, justamente porque quando chega a altura de a negociar, não só as partes estão cansadas, como o essencial – na opinião delas – já está negociado, esquecendo-se da essencialidade dessa cláusula. Um negociador de um país da common law vai defender o uso de tribunais estaduais de um país da common law ou uma arbitragem em inglês, com sede num país falante de inglês, aplicando-se regras de instituições arbitrais internacionais inglesas. Sabe, à partida, como resolver as questões acima referidas e, mais do que isso, quer, porque conhece, as regras da common law. Diz-se que a capacidade negocial dos países da periferia como Moçambique não tem permitido que se imponham nessas negociações, exigindo, por exemplo, o português como a língua da negociação, a língua do contrato que prevalece em caso de litígio e a língua da arbitragem. Acrescento uma outra razão: o desconhecimento das consequências da escolha de uma língua diferente do português é um factor relevante. Só posso considerar que foi por ignorância que o Governo aprovou um Modelo de Contrato em que a arbitragem tem sede na Suíça, a língua da arbitragem é o inglês, a versão do contrato que prevalece em caso de litígio é o inglês. E o que não deixa de ser notável, é que a lei aplicável ao fundo da causa é a moçambicana. É isso tem enormes consequências, desde logo os enormes custos que resultarão das traduções que serão necessárias fazer, não só das leis nacionais, como também de outros documentos e dos depoimentos das partes, testemunhas ou peritos, considerando que estas, razoavelmente serão moçambicanas e estarão mais à vontade expressando-se perante o tribunal arbitral em português. É por isso que os contratos deveriam ser, se não forem negociados em português, pelo menos a versão que prevalece deveria ser a portuguesa; a língua da arbitragem deveria ser o português. As instituições arbitrais internacionais estão preparadas para responder a estas situações, tal como estão preparadas para responder a decisão do Brasil de impor o português como língua do contrato em assuntos de direito público. Uma das formas de defender o interesse nacional – permitindo que entidades públicas e não só nacionais estejam mais à vontade nessas situações – é obrigar o uso do português. O meu mandato como Membro da Corte de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI) foi renovado por mais 3 anos, por isso vou continuar a defender um maior uso da língua portuguesa na arbitragem internacional em defesa dos interesses do país. Como recentemente disse José Miguel Júdice numa conferência no Club Espanhol de Arbitrage, quando ninguém está familiarizado com a linguagem da lei aplicável e/ou com uma certa lei, pode haver uma tendência de conspiração que surge entre os envolvidos, porque aí descobriremos (muitas vezes tarde demais) que a lei que foi escolhida pelas partes para resolver o conflito, será substituída por um sistema ad hoc inventado e posto em prática pelo tribunal arbitral com elementos de várias jurisdições, experiências passadas dos árbitros, ideias subjectivas de justiça e uma disposição para resolver o conflito de uma vez por todas de uma maneira que muitas vezes parece um divórcio, independentemente das regras aplicáveis ??à situação. Quem está numa arbitragem internacional em defesa de Moçambique – o segundo de entre os países de língua oficial portuguesa, depois do Brasil, com o maior número de litígios na Câmara de Comércio Internacional – sabe das dificuldades e consequências do uso de outra língua que não seja o português.