“Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…
O Progresso caminha ao alto de um hemisfério
E tu dormes no outro o sono teu infindo…”
Rui de Noronha
Não é sempre que um escritor tem o privilégio de testemunhar, como padrinho, o nascimento de um talento literário. A sorte bafejou-me para ser eu o escolhido, mesmo que aleatoriamente, para proceder à apresentação da colectânea Liberta-te, Mãe África, de Ernesto Moamba.
Aceitei fazê-lo, com muito gosto, apesar de ter a consciência do quão difícil seja, penetrar no interior de uma obra que não é inédita, só porque parte do seu conteúdo já fora divulgada no círculo de amigos com quem Moamba compartilha, de entre muitas coisas, o seu trabalho literário, através das redes sociais, como é, por exemplo, o Facebook. Não é tarefa fácil dissecar, uma obra literária e explicá-la à medida do desiderato do autor. Ingarden, no seu livro A obra de arte literária, 1973[1], a dado passo das suas reflexões, enumera o que o leitor deve excluir na análise, explicação ou compreensão de uma obra literária, incluindo o autor e toda a sua mundi-vivência.
Acredito que ele seja um ilustre desconhecido no seio, não só dos nossos fazedores da literatura, como, em geral, do público aficionado às lides literárias, do nosso país!
Mas, indo ao livro, que é a razão principal da minha intervenção, trata-se de uma obra literária do género poético, com 65 composições poéticas, em verso livre e branco, em 113 páginas. Foi editado no Brasil pela Editora do Carmo, em Brasília.
Antes de folhear o livro, chamou-me a atenção o seu título e a pertinência da capa que o ilustra; uma criança negra, ainda chupando o dedo de meninice, mas já agrilhoada, carregando o peso da sina africana e feita escrava! É um simbolismo eloquente para definir o continente africano e estender a imagética ao sentido dos poemas deste livro. Do título, veio-me à memória, algo que tinha já lido antes, há muitos anos e, não tardou que me despertasse o nome de Rui de Noronha, o precursor da poesia moderna moçambicana, autor do soneto Surge et ambula, em que num dos versos, exorta: África: Surge et ambula (África: levanta-te e anda). Prosseguindo o folhear do livro, logo no poema que o inaugura, As pegadas no passeio do vento, deparo com a confirmação das minhas memórias. Mais adiante, em Sonho[2], Corpo sombrio[3], Prisioneiro da África[4], Misteriosa[5], Utopia do negro[6], Clamor do negro[7], fui reconfirmando as tendências evocativas dos dois autores quanto ao Continente Africano. Existe, em teoria literária, uma figura que se denomina Estética da Recepção que se traduz no poder perceptivo de uma obra literária, por parte do leitor/comunidade interpretativa, para completar o autor. Isto é, todo o esforço que devemos fazer para nos apropriarmos da mensagem de Ernesto Moamba nesta obra.
Pois, então, o Liberta-te, Mãe África e o Surge et ambula, em que está implícita a alusão a um continente sofrido, estamos, comparativamente, diante de uma clara intertextualidade, provocada pelo estro de Ernesto Moamba, que tratou de me assegurar, ao lhe confrontar com esta realidade, não ter lido, antes, o poema de Rui de Noronha. Isto, prova que a África, «país dos africanos» no entendimento afectado de alguns estrangeiros que, por se ocuparem, em demasia, de causas próprias, pouco tempo lhes sobra para esmiuçar o nosso continente e estudarem-lhe as entranhas, para compreenderem a razão dos seus filhos, desde os tempos imemoriais, exacerbarem o seu desejo em que ela e os seus habitantes, se libertem.
África: Levanta-te e anda, já dizia Rui de Noronha na década de 30 do século e milénio passados; Liberta-te, Mãe África, diz Ernesto Moamba, hoje, no início de novos século e milénio. Ambos, poetas moçambicanos, as suas exortações, para que a África se liberte das suas agruras, da noite em que é forçada a viver, distam mais de 80 anos.
Quantos africanos, neste intervalo temporal não cantaram, já, a sua Mãe África, numa reverberação que se fez ode a este sacrificado continente, à espera que alguém lhe estendesse a mão, não para lhe doar algo que lha fizesse continuar a dormir, mas para que ela se levantasse e andasse, desejando que ela desperte que o seu dormir já foi mais que terreno? Parafraseando o editor desta obra, Evan do Carmo, na sua nota elucidativa da proposição de Ernesto Moamba:
“A sua voz é a voz da verdade, da sua própria alma, que se debate nas paredes de uma prisão cultural em que um país que ainda não se libertou das algemas da escravidão social que priva os africanos da dignidade mínima que merece a alma humana.”.
Uma breve nota biográfica, no fim da obra, dá-nos elementos importantes para conhecermos o autor, as suas origens, o início e o desenvolvimento da sua paixão literária, as consequências dessa aventura, até hoje que se estreia em livro. Julgamos, que o gesto que Ernesto Moamba nos demonstra, não seja um salto para o abismo, mas para a glória, destino da projecção dos praticantes mais perseverantes e perspicazes desta arte.
Ele não é tanto debutante quanto parece, depois de se ter iniciado nas escolas por onde passou, escrevendo poesia, conto e crónica, o empenho desembocou em jornais, revistas e redes sociais, onde, amiúde, expôs o seu talento. Apesar do seu temário destilar dor, desespero que a si afecta grandemente, não deixa de ser um universo de amor e, sobretudo, de esperança no alcance da liberdade para e por que, quotidianamente se luta, nas lides literárias.
Consta em algumas antologias poéticas nacionais e internacionais, como são os casos de O mundo dos sonhadores – antologia nacional, editada pelo Grupo Intercâmbio dos Escritores de Língua Portuguesa; Desafio, O corpo negro e o Ninho – antologias internacionais, em que convergem países lusófonos, como, por exemplo: Angola, Brasil, Moçambique e Portugal. Consta no portal brasileiro de notícias O Monumental e na revista angolana, Kamba.
Este livro é resultado de trocas comunicacionais, através das redes sociais, pois, afoito a esse benéfico intercâmbio entre gentes de diversos quadrantes planetários, uma mão vinda do Brasil, como se a guiar-se por Rui de Noronha, diz: “Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno/ Ouve a Voz do teu Progresso, este outro Nazareno/ que a mão te estende e diz-te: África, surge et ambula!”
E assim foi editado este livro, fruto de solidariedade vinda de uma amizade que todos nós e a todo o momento, devemos demandar, porque temos capacidade para isso, através de trocas vivenciais que nos vão construindo como cidadãos dignos de Moçambique e do mundo.
Na textura do seu manto poético, nota-se que, aqui, ali e acolá, ao Ernesto Moamba, faltam algumas ferramentas para lhe completarem o engenho e a arte, mas a sua garra promete superação.
[1] [1] Roman Witold Ingarden (Cracóvia, 5 de Fevereiro de 1893 – 14 de Junho de 1970) foi um filósofo e teórico literário polonês.
[2] Liberta-te, Mãe África, Ernesto Moamba – 2016, p.33
[3] Idem, p.34
[4] Idem, p.45
[5] Idem, p.46
[6] Idem, p.50
[7] Idem, p.52