Breves notas iniciais
Apresentada ao público, recentemente, O Desamparo das flores é o livro com que Miguel Luís venceu o concurso literário Maria Odete de Jesus, promovido pela Universidade Politécnica. É uma obra literariamente bem conseguida.
Miguel Luís José é o nome completo do autor. Nasceu em Maputo e é mestrado em Estratégia de Investimento e Internacionalização; é formado em Direito e tem pós-graduações na área legal e financeira. Foi vice-presidente do Conselho Fiscal, na Associação dos Estudantes Moçambicanos em Portugal. É um indivíduo muito atento à sociedade na qual vive e, para além de activista ou de participar em movimentos associativos, faz da literatura uma das áreas, através da qual, desempenha o seu exercício de cidadania. Este tem sido o seu modo de procura de felicidade.
O Desamparo das flores: papel e caneta na mão para sair da cegueira
O Homem vive a maior parte do seu tempo à procura da felicidade. A utopia é parte do caminho que a ela nos leva. Essas são ilações tiradas de duas obras de Zygmunt Bauman, A Arte da vida e Tempos líquidos. Considerando esses pressupostos, a literatura de ficção, especialmente a infanto-juvenil, é, para mim, esse lugar para construir mundos imaginários e reais. Foi, também, através desse processo que “nasceu Moçambique”. José Craveirinha, nosso poeta mor, cujo centenário continuamos a celebrar este ano, é um dos heróis dessa causa.
Essas sugestões gravitaram a minha mente, quando terminei a leitura do livro acima referido e questionei-me, se haverá, mais do que uma obra literária infanto-juvenil, um lugar para fazer com que as crianças sonhem um mundo melhor? Um lugar no qual possam dar asas à sua imaginação e alargarem as suas competências (sejam de que índole forem) e habilidades para a vida? Uma das respostas a essas perguntas pode ser encontrada no livro O Desamparo das flores, entre as páginas 65 e 67 e cito: “uma caneta e um papel na mão de um menino que sabe ler e escrever sempre serão instrumentos para mostrar coragem.” É de coragem e de saber ler e construir mundos que todos precisamos, para habitar este planeta cheio de incertezas constantes e disso, o nosso país tem imensos exemplos.
O livro é a primeira obra literária de Miguel Luís. Contém ilustrações de Walter Zand e é um livro dirigido ao público infanto-juvenil e aos jovens e adolescentes existentes em cada adulto. Coloca-nos perante uma premente reflexão sobre a coragem, a (des)obediência, a atenção pelo meio no qual vivemos e a utopia ou engenho.
Trata-se de duas histórias entrelaçadas, contadas a partir da perspectiva de dois narradores que sabem sobre a vida de todas as personagens, ou seja, narradores omniscientes. São histórias centradas com um pano de fundo negro, o tráfico de crianças. Entre outras 14 crianças raptadas, se encontra o Carlitos, o protagonista.
Esse problema social transcende a qualquer controlo jurídico, em contexto real. Vários são os poderes, em diferentes países a lutarem contra esse mal, mas o desiderato continua. Ainda, muito recentemente, em Moçambique, o informe da Procuradora-Geral do país, Beatriz Buchile, era perentório em afirmar que o país ainda está por combater os raptos. Esse fenómeno é afim ao de tráfico de menores.
O título do livro, em apresentação, já anuncia esse pano de fundo nebuloso. Em princípio, flores deveriam trazer alegria, mas no caso são desamparadas, são murchas. E essas flores simbolizam as crianças narradas na história. A obra é literariamente bem conseguida, por levantar um assunto difícil e preocupante. Mas fá-lo de modo poético e com uma linguagem simples e seleccionada, o suficiente para ser compreendida por todos. Isso é o que prende o leitor ao livro. O que há de mais complexo na obra são as imagens poéticas e elas é que amparam o leitor para que não sucumba perante a dor narrada sobre o tráfico de crianças. A história tem um balanço equilibrado entre a ficção e a realidade.
Deixo alguns exemplos dessas imagens que podem ser encontradas em diferentes páginas: a violência só alimenta os problemas, engorda-os sempre; quis chorar, mas as lágrimas não lhe saíram, ou talvez lhe tenham jorrado do lado de dentro dos olhos; não passou muito tempo até que o carro parasse de cuspir as ruidosas buzinadelas e o vidro da porta do motorista se abrisse, como o sol rompendo por entre as nuvens; das suas duas narinas chovia um leite espesso e branco; gotas gordas e pesadas caíam-me pelos olhos e o meu corpo tremia como um carro velho com motor ligado.
Estas imagens, para além de atenuarem a provável tensão que o leitor poderia ter a partir do tema abordado, suavizam a parte utilitária subjacente nas obras de literatura infantil ou juvenil, a de educar e de inculcar valores e uma moral. Sim, porque o substrato desse tipo de obras é mais o da utilidade da sua mensagem, do que de prazer.
Tendo feito menção à parte do gozo que dá ler a obra, é importante, também, aludir a parte utilitária, que é um convite a um pensar e agir comuns na nossa sociedade. Um pensar de adultos que possam munir as suas crianças de habilidades para enfrentar este mundo que, como todos sabemos, tem muito de cruel. E nesta obra, como já o tinha referido, o convite é feito com recurso à uma luta através do intelecto: o educar.
Carlitos, o aludido protagonista, desobedecera aos seus pais, desviara-se do caminho da escola e pagou um preço caro por tal. Mas foram a sua coragem e o seu engenho que o salvaram. Sabia ler e escrever e essas habilidades deram-lhe a sagacidade necessária para fazer chegar à polícia para ter socorro; após outras engenhosas tentativas para escapar do cativeiro.
Uma caneta e um papel, ou seja, o saber ler e o saber escrever, mais a agudeza do seu engenho o salvaram, a si e mais outras crianças. É por causa disso que afirmo que a obra convida a um pensar e agir comuns: educar, obedecer e estar-se atento ao mundo que nos rodeia. Há uma sugestão da importância que existe em educar as crianças, deixando nelas o legado necessário para que possam sobreviver perante as diferentes adversidades da vida; porque sempre as haverá e, não importa o substrato social da criança. Elas, também, sabendo ouvir e ver ou sabendo ler, que é também outro convite feito pela obra, poderão aprender a construir novos mundos ou a fazer face aos que estiverem expostos.
Esta obra recorda-me a sugestão de José Saramago, em Ensaio sobre a cegueira, que diz: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. Isto desafia-nos a prestar atenção ao lugar no qual vivemos e, claro, a agir sobre ele. Que não vivamos às cegas. A literatura cumpre esse desiderato. E no livro em apresentação, há reflexão acerca de um olhar atento sobre um fenómeno social e o modo como este acontece, ao pormenor.
Mais ainda, sugere-nos a obra que temos que nos reinventar, escrever mais, publicar mais e não nos resignarmos ao que já está feito, porque a humanidade ainda não está civilizada. Já no-lo disseram os poetas José Craveirinha, no poema “Civilização”, no qual afirma: antigamente, os homens erguiam estádios e templos e morriam na arena como cães, agora constroem cadilacs…. E José de Almada Negreiros, em A invenção do dia Claro: quando eu nasci, já tinham sido inventadas todas as palavras que iriam salvar a humanidade; falta salvar a humanidade.
Um papel e uma caneta deverão dar-nos mais coragem para continuar a luta em busca da felicidade.
Notas finais sobre concursos literários
Por razões desconhecidas, em Moçambique, deixaram de existir três grandes concursos literários, nomeadamente: O FUNDAC-Rui de Noronha, O BCI e o TDM. Entretanto, o Concurso Literário Maria Odete de Jesus tem sobrevivido e coexistido com alguns concursos na praça Moçambicana, nomeadamente: o Dez de Novembro, ligado ao dia da cidade de Maputo; o prémio Nacional José Craveirinha (organizado pela HCB – Hidroeléctrica de Cahora Bassa/AEMO – Associação de Escritores Moçambicanos); O Fernando Leite Couto, da Fundação com o mesmo nome; nos últimos tempos surgiu um, o Carlos Morgado, homónimo da Fundação que o organiza; A editora Gala-Gala tem organizado o Prémio de Poesia Gala-Gala e a Alcance, o concurso literário Calane da Silva. Existem na Beira, ligados à Editorial Fundza, a chamada literária da Fundza bem como, os seguintes concursos literários da Associação Kulemba: Prémio de Literatura infanto-juvenil; Concurso literário do conto do FLIK (Festival do livro Infantil da Kulemba); Concurso de declamação de poesia do FLIK; Concurso de crónicas do FLIB (Festival do Livro da Beira) e o Concurso de redacção de contos tradicionais. Do Conselho Municipal de Quelimane, há que se destacar o Concurso 21 de Agosto, ligado ao dia daquela cidade. Parecendo muito, não são, para um país que pretende baixar a percentagem de analfabetismo de saber ler e escrever; o analfabetismo funcional, o analfabetismo de conteúdo e porque não o analfabetismo político.
Promover concursos literários é permitir o descobrimento de novos talentos; estimular os que já escrevem; incentivar o gosto pela leitura, pela escrita e pela literatura. Tudo isto tem um contributo imenso no desenvolvimento do país e dos próprios escritores, em várias áreas da vida. A par disso, os livros são um lugar de memória, de reflexão e sugestões sobre e para a vida, e são objecto de deleite. Alguns países desenvolvidos juntam, ao orçamento para a área da saúde, o que deve ir para a área de cultura, para o lazer e para a arte; porque estimular o gozo intelectual ou emocional é um meio caminho para a cura de determinadas doenças. Por isso e por muitas outras razões, há que os enaltecer e há que congratular quem ainda os organiza.
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