Em Moçambique, a esfera pública vive um momento de tensão e deformação. Longe de ser um espaço vibrante, plural e desinibido de ideias — como deveria ser numa sociedade aberta —, ela está cada vez mais ameaçada por forças que silenciam, distorcem e desqualificam o pensamento crítico.
Vivemos tempos em que pensar com liberdade é um risco, e dizer a verdade é quase um acto de desobediência. Neste contexto, emerge a figura do intelectual orgânico, cuja missão é hoje mais urgente do que nunca.
O conceito de intelectual orgânico, cunhado pelo filósofo Antonio Gramsci, remete-nos a um tipo de pensador profundamente ligado às estruturas sociais e políticas do seu grupo ou classe. Ao contrário do intelectual tradicional, que se pretende distante e neutro, o intelectual orgânico está inserido no processo histórico e político. Ele pensa com um lado — mas pensa. Reflecte, questiona, provoca e, acima de tudo, critica. E a sua crítica não é traição: é amor em forma de exigência.
Num país em mudança com o está Moçambique, com novos rostos no poder e novos desafios sociais, económicos e culturais, o intelectual orgânico é simultaneamente um aliado e um espelho do seu partido ou movimento político. Ele não se limita a aplaudir discursos, mas analisa os erros. Não se esconde às sombras da conveniência, mas ilumina as contradições. O intelectual orgânico é, ou deveria ser, o primeiro crítico da sua própria casa política — porque quer vê-la melhor, mais forte e mais justa.
Ora, em Moçambique, o silêncio tem sido confundido com prudência. O silêncio do intelectual orgânico na esfera pública é associado a um comportamento decente. É decente todo o intelectual orgânico que mantém o código do silêncio. Não fala porque é decente. E quem é decente ensinou-lhe a cultura do medo, não colocar em causa o bem-estar da sua família. Foi educado e socializado para proteger quem viola as regras — e não quem as denuncia. A sua lógica prefere preservar a aparência do que enfrentar a verdade. Por isso tem medo da cidadania, pois exercer a cidadania exigiria romper com a falsa decência e abraçar a integridade como valor superior. O medo de exercer a cidadania é generalizado.
A cultura política dominante ensinou-nos que ser leal ao grupo é mais importante do que ser íntegro com a verdade. E, assim, a integridade foi colocada abaixo da lealdade. Quem escolhe falar é tratado como traidor e/ou reaccionário. Quem silencia é tido como “companheiro confiável”. O resultado é um ambiente em que os intelectuais orgânicos — que deveriam ser a consciência crítica dos seus partidos — se tornaram os seus advogados de defesa incondicional, principalmente quando os erros são gritantes e os riscos de decadência institucional são evidentes.
E as consequências desta atitude não são abstractas: são o colapso progressivo da credibilidade pública, o afastamento das bases sociais – o bloqueio de novas ideias e a instalação de uma mediocridade crónica no pensamento político e estratégico.
Vale lembrar que quem exige silêncio aos intelectuais orgânicos, aqueles cuja vocação é pensar criticamente analisando com minúcia as estratégias e políticas, está a exigir que o país caminhe com uma bússula desparametrizada ou sem ela e isso não protege ninguém muito menos os próprios líderes.
Quando o intelectual troca a verdade pela conveniência, ajuda a cimentar a mentira como base da acção política e/ou governação — e, nesse processo, sabota silenciosamente o futuro do país.
Em Moçambique, as lideranças partidárias moçambicanas enfrentam hoje um dilema existencial: ouvir a verdade crua dos intelectuais orgânicos que pensam com responsabilidade histórica ou cercar-se de aduladores que falam o que agrada, mas destroem por dentro. O futuro dos partidos — todos, sem excepção — dependerá da postura corajosa e ética dos seus intelectuais orgânicos. Cabe aos intelectuaus orgâncicos tornarem-se agentes de transformação, ou serão os últimos a apagar a luz.
Não há desenvolvimento sem crítica. Não há renovação sem autocrítica. Não há poder duradouro sem verdade. Que os intelectuais orgânicos de Moçambique escolham ser mais do que decoradores de discursos. Que escolham ser construtores de uma nova cultura política, baseada na liberdade de pensamento, na responsabilidade moral e na coragem de contribuir para o bem comum — mesmo quando isso exige desconforto.
É também importante reconhecer que a nova cultura política não se materializará apenas com discursos sobre ética, meritocracia ou patriotismo. Esses valores não se implantam por decreto — exigem o engajamento firme e coerente dos intelectuais, dispostos a pensar e agir em conformidade com esses princípios. A luta que travamos é, acima de tudo, uma luta ideológica de visão de mundo. De um lado, os conformados, os “decentes”, que sempre viveram à sombra do status quo e se recusam a fazer diferente. Estes combatem de forma acérima toda a empreitada política tendende a lançar as bases para renovar Moçambique. Do outro, “indecentes”, que se recusam a silenciar, que analisam com objectividade os fenómenos, argumentam com ética e agem com sentido patriótico. O resultado desta luta ideológica – entre os “decentes” que acomodam e os indecentes que ousam – vai determinatr o nosso futuro imediato, como país.
A verdade dói, mas a verdade liberta (Jo 8:32).
Texto dedicado ao meu amigo JJM